13 fevereiro 2007

O leitor (im)penitente 11

Um metro de estante, um

Foi o meu caríssimo confrade JCP quem, pela primeira vez, aqui chamou a atenção para a colecção “Reis de Portugal” editada pelo Círculo de Leitores. Também não admira: o JCP, aparte o defeito de ser um portista ferrenho, daqueles que vão às Antas (“A Catedral”) e põem como o sócio o filho acabadinho de nascer, tem fortes qualidades: é bem disposto (e isto meus caros é hoje em dia um bem precioso), trabalha desalmada e desinteressadamente na Assembleia Municipal da sua terra, fuma charutos gigantescos desses que ainda são enrolados nas pernas morenas e pecadoras das charuteiras cubanas (e nisto vai um tsunami de pecados os mais variados mas seguramente todos capitais) e é um bom conhecedor de História, disciplina onde se licenciou. Também é um bom garfo e um homem de espírito! Compreende-se melhor o seu entusiástico anúncio da colecção. Aquilo dizia-lhe respeito e vinha colmatar uma forte falha das edições históricas grande público em Portugal.
Ora, agora que já só falta a rainha Maria Iª convém avisar o estimado público, as senhoras e senhores da assistência, as excelentíssimas autoridades religiosas civis e militares de que estamos perante empreendimento digno, mesmo que, num ou noutro volume, se possam apontar fragilidades, discrepâncias e tudo o mais que vos vier à cabecinha mimosa. A verdade é que o portuga interessado, culto e moderno tem aqui ao seu alcance uma boa carrada de história pátria. Exactamente um metro de livros na estante. É obra: um metro de livros, medidos tant bien que mal cá pelo cronista. Já tirei a bissectriz a um par de exemplares e estou a babar-me perante a hipótese de umas férias calmas, muito mar, muito peixe, marisco q.b., umas cervejinhas para aviar esta encomenda. Do que folheei fiquei com boa impressão ainda que tenha a clara ideia de que me irei enfurecer com certas teses aqui e acolá. É bom um leitor enfurecer-se, é sinal que está vivo e não come gato por lebre. De todo o modo, leitoras excelentes, força na história dos nossos reis.

2 Ele há escritores assim, subterrâneos como certos rios no deserto. Volta e meia, dão um arzinho da sua graça, mostram-se, criando um oásis e depois mais uns quilómetros de metropolitano. São escritores, cujo nome, passa de boca em boca, de amigo em amigo, como um segredo só revelado a quem merece. Raras vezes os citam, mas a gente vai de casa em casa e descobre maravilhado e comovido, na estante o livro, os livros do autor em causa. Puxa-se por um e notam-se claras marcas de leitura.
Dantes as leitoras do estilo da avó Dora Heinzelmann (leitora de poetas parnasianos franceses e italianos) punham uma folhinha, um flor seca a marcar o trecho que as comovera. Algumas anotavam a lápis qualquer coisa, como um balão de S. João enviado para o futuro e para outros olhos e outro entendimento semelhantes. A avó fazia ainda mais: na sua letra elegante poetava à volta do trecho, umas vezes em francês outras no espanhol aprendido na Buenos Aires da sua infância. Eu, burro velho mas chorão, comovo-me com estas imperceptíveis marcas, esta herança que ela me deixou e perdoou-lhe mesmo o exacerbado romantismo com que baptizou o meu pai que, claro me pôs o mesmo nome. Tu Marcellus eris, cantava Virgílio (Eneida VI, 861-887) mas não seria este sobrinho favorito de Augusto o causante dos nossos nomes. A avó Dora acharia simplesmente que o nome era prometedor e ainda por cima italiano.
Deixemos este devaneio com a antepassada e voltemos à vaca fria: petas reincidentes, recorrentes. Falo, claro do O’Neil (Alexandre) de que agora saiu uma biografia. A autora é Maria Antónia Oliveira e a acreditar na fotografia, além de inteligente será bonita. O cavernoso Manuel Sousa Pereira já vai quase no fim da biografia e ontem confidenciou-me que estava deliciado. O MSP é bom leitor, valha a verdade, tem bom gosto, mas agora anda a surpreender-me com as leituras avulsas que vai fazendo. Óptimas todas, claro mas bem reveladoras: aliás anunciou-me meio envergonhado que começou a ler o Proust (outro Marcelo!) e “sabes uma coisa, Tio? Estou a gostar!” - Claro Manecas, claro, só um tonto é que não gostaria. Dele e de mais uns tantos, olha, o Musil para não ir mais longe, mas isso fica para outra ocasião...
Leitoras e leitores, façam um favor a vós próprios e rapem do O’Neil (ele mesmo na Assírio e Alvim) e da biografia da Oliveirinha que está bem esgalhada.

3 O novo Público. Estou um bocado embaraçado com a nova apresentação do Público. Valha a verdade que a gente demora a habituar-se, sobretudo se é um leitor desde o nº 1. Para já uma perda tremenda: o Vasco Pulido Valente não consta da lista dos comentadores. Isto é, simplesmente, um terramoto. VPV escreve um português admirável, tem vigor, substância e invulgaríssima qualidade. Eu, volta e meia, fico pior que uma barata, ao lê-lo. Porque o safado com aquele estilo insuperável e aquela inteligência cortante, é um perigo público. Mas, depois, acalmo e penso, cá para os meus botões, que bom que seria haver mais um forte quarteirão de VPV a estragar a festa da mediocridade e da bem pensância!
4 Entretanto, e já que se fala no Público, atenção à colecção que está a sair sobre a história do blues. Muita atenção mesmo que aquilo é bom até dizer chega!

Nota: a minha ex-cunhada nº1, a Zé Albarran, manda-me um mail sentido sobre a morte do Manuel João Gomes, critico de teatro e homem de cultura. Choro com ela esta morte injusta. Como aliás foi a da Luísa Neto Jorge, mulher do MJG e poeta excelente. Ora aqui está outra “subterrânea”. Apanhem-na se puderem e depois façam o favor de me agradecer esta dica. A Luísa sabia o que fazia e fazia-o muito bem. Senão vejam:
a alegria redundando nisso, um no outro, violação
das fronteiras onde poisar vivo.

(in “O Ciclópico Acto”, Paris, Galeria 111, Lisboa, 1972. Ah, ah, ah, está esgotadíssima esta edição maravilhosa que em seu tempo me custou dez brasas! Oferecia-a a mim mesmo pelos meus 48 aninhos).
Ou:
O poema ensina a cair
sobre os vários solos/...
Numa curva delgada e subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
In Os sítios sitiados, Plátano ed. Lisboa 1973

3 comentários:

josé disse...

A correr:

O VPV continua no Público, caro VPV.
E subscrevo o que disse do nosso iconoclasta-mor.
Aliás, foi por causa dele, que pedi e recebo hoje mesmo, três volumezinhos da Círculo: as biografias de D. Carlos, D. e D. Afonso V já cá cantam.

Ah! E o Littel também. Desde há uns tempos.
Já ouviu falar num certo Daniel Kehlmann?
Não? Vai ouvir.

Cumprimentos a correr.

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Caro MCR, já o vejo debruçado sobre os mares da Galiza a entreter-se com os nossos grandes e pequenos Reis.
É verdade que VPV continuará a ocupar a última página do "Público", de sexta a domingo. Concorde-se ou não com as suas posições, é uma escrita de enorme qualidade.

M.C.R. disse...

Ó Meus Caros Amigos:
eu deveria dar-vos alviçaras pela boa nova do VPV continuar. Não sei como é que não vi mas a verdade é que sofri um baque neste pobre e desgastado coração quando pensei que ele se tinha ido. Mais fé!

Sei quem é o Littel mas não o Daniel Khelmann. Ilumine-me caro José, ilumine-me que eu não posso nem quero saber tudo. Para isso lá está á mão direita de Deus o extraordinário Pico della Mirandola.

Um abraço a ambos