11 fevereiro 2007

Estes dias que passam 48

763 de pressão, tempo variável

O senhor que conserta barómetros olhou-me muito sério e disse: “Sabe o que tem aqui?” – “Um barómetro –respondi-lhe. – Um barómetro mais velho do que eu, se calhar até mais do que o meu pai, se fosse vivo.” O senhor –repontou-me – tem aqui uma máquina fabulosa. Estas letras PHBN indicam uma marca fora de série. O J.A. Ribeiro Lisboa é apenas o comerciante que os importava. Nunca tinha visto um barómetro destes. Fazia-me jeito para a minha colecção.” “E para a minha - retruquei, a fechar conversa. - É uma herança. Juntamente com um samovar lindíssimo, uma fruteira arte nova e um guache de Diogo Macedo, oferecido pelo autor à minha avó Dora. Coisas que irão para os sobrinhos com a condição de não saírem da família, sabe como é?”.
O senhor dos barómetros sabia. E mostrou-me peças magníficas que, também ele, não venderia por preço nenhum.
Já restam poucos destes homens que atrás de um pequeno balcão trabalham peças delicadíssimas, inventam ferramentas (não estou a fantasiar) e amam o trabalho bem feito. – “Olhe para este astrolábio” – disse-me – tem cento e tal anos, talvez cento e cinquenta. Repare na perfeição da gravação dos décimos de grau, na beleza dos números...”
E nesta loja modesta, da rua Mousinho da Silveira, quase em frente da bolsa, respirava-se (respira-se) um gosto cidadão e civilizado pelo trabalho bem feito, pelo bom gosto. Respira-se orgulho profissional. Quase nem acreditamos que isto é o Porto melancólico e em perda de velocidade. Há aqui eco do velho espírito da cidade burguesa e pouco inclinada à autoridade de bispos ou fidalgos.

2 Senti o mesmo hoje de manhã quando fui votar. Maldisse vinte vezes o sítio para onde me mandaram, tanto mais que da mesma freguesia há aqui a duzentos metro um par de secções de voto. Só que estas são as mais recentes enquanto a velhada onde me conto foi transferida para cascos de rolha. Mas passemos: na escola secundária Maria Lamas (olha houve quem se recordasse dessa grande senhora, dessa figura tutelar da resistência e da democracia!... às dez de um dia de nevoeiro cerrado e sebastiânico havia já muitos votantes. Gente maioritariamente idosa que gosta de cumprir o seu dever cedo e depois descansadamente ir á missa ou até um café para ler o jornal.
E havia nessa centena e meia de pessoas, vestidas com algum cuidado, com o ar sério de quem se preparou para um acto solene e cidadão como é do voto popular, uma gravidade e uma solenidade que comovem o mais pintado. Estas mulheres e estes homens, quase tudo classe média baixa, trazem no olhar a expressão concentrada de quem sabe que foi chamado por um único e irrepetível momento à governação da polis. E por isso, porque sabem isso, o seu ar é sério. A cidadania sabe que esta é a festa possível da democracia e da liberdade. Mesmo que a pergunta que lhes fazem seja mal feita, quase abstrusa, elas e eles sabem. Cabe-lhes escolher e elas e eles não cedem a sua voz ao conforto da casa quente, da cama preguiçosa. São dez horas da manhã, o nevoeiro é de cortar à faca, há mesmo uma chuvisca miúda e massacrante mas elas e eles estão aqui, pacientemente nas bichas das secções, à espera da sua vez. Serão muitos? Serão poucos? Não tem importância: elas e eles estão aqui, serenos, a cumprir um dever cívico. Isto meus caros leitores e leitoras é Portugal no seu melhor. Como é também o senhor dos barómetros, atrás do seu balcão a fabricar uma ferramenta impossível para consertar um velho microscópio feito em Jena na Alemanha há mais de setenta anos. Essa ferramenta que lhe moeu a cabeça durante dias e dias até uma madrugada triunfante (“aí pelas três da manhã acordei e dei com a solução” –contou-me) vai permitir consertar uma velha peça de grande precisão e salvar um pouco, um poucochinho, do passado.

3 A Maria Manuel manda-me uma mensagem brevíssima: o Eduardo é hoje operado. Que seja depressa e bem, desejamos os de cá de casa. Que tudo isto não tenha passado de um susto, secundam a minha mãe e o meu irmão e o resto da tribo lisboeta.
Quem for religioso que reze uma ave pelo restabelecimento do Eduardo, que bem merece. Os restantes, fazemos figas como quem não quer a coisa mas, durante breves momentos, a voz sai-nos embargada pela comoção.
Força Eduardo!
Força Maria Manuel!

4 Depois de votar, fui num salto até à foz. Não que quisesse ver o mar que mais se adivinhava do se via. Fui até lá só para ouvir a ronca. A ronca do nevoeiro da minha infância descuidosa e feliz, em Buarcos, terra de peixeiras e pescadores da pesca longínqua. E por um breve instante, ao ouvir a ronca, vi, claramente visto, com estes que a terra há-de comer, um mulher antiga e grave persignar-se. Nossa Senhora da Encarnação, olha pelos nossos que andam no mar!
E por este incréu comovido à beira água! E pelo Eduardo à espera de um fígado novo! E pelos homens e mulheres que afrontaram o nevoeiro, a morrinha e o frio para votar porque essa é a tarefa dos cidadãos, na Atenas antiga ou no Porto, hoje.

3 comentários:

M.C.R. disse...

Este texto pertence à série "estes dias que passam" e tem o nº 54.
destina-se a substituir o texto abaixo que é igual mas não está formatado.
requere-se a quem de direito essas pequenas modificações que eu não consigo fazer por não ter acesso ao Edit
Obrigado
mcr

M.C.R. disse...

suponho que já resolvi o problema e que já eliminei o texto de baixo que não estava formatado. tudo isto se deve ao facto de estar a usar uma nova (e melhor?) versão do firefox!!!

jcp (José Carlos Pereira) disse...

O Porto é uma cidade de gente digna e surpreendente!
Caro MCR, já li sobre o Eduardo de que nos fala e espero que tudo corra pelo melhor. Sinto falta das suas letras diárias.