Olhando para longe, melancolicamente
É uma quase do citação do Osborne, este título, ponhamos uma cópia indecente mas, como dizia o Manuel Sousa Pereira quando um professor das Belas Artes achava que ele modelava muito á Brancusi, copiar por copiar antes os grandes mestres, não acha professor?
O título é, pois, tomado de empréstimo mas a melancolia essa é mesmo minha, própria, antiga, recidivante (ou recidivista, sei lá como é que isto se diz, sente-se e já é suficientemente difícil, portanto não vale a pena começar a ver se a palavra existe) que aparece mansamente, de quando em quando, sem data certa.
Hoje foi assim: o João Vasconcelos Costa anda a pôr em dia os velhos discos revolucionários e manda a um grupo de amigos alguns dos resultados em curtas gravações. Eu propus-me mandar-lhe umas coisas italianas “ci ragiono, ci canto”, um espectáculo cantado sob a batuta do Dário Fo e, na passada, uma cópia de uns “canti rivoluzionari italiani” que me pus a passar de LP para CD, uma aventura! E foram estes os culpados deste meu estado de alma ou de desalma.
O dia até tinha corrido bem. Fui ler os jornais para o molhe, quase deserto, pude escolher a mesa, não havia ninguém em frente a tapar-me o mar e a rebentação, o dia tinha sol suficiente e entre mim e as ondas havia uma poalha finíssima, talvez as últimas lágrimas da chuva da noite a evaporar-se, ou espuma trazida por uma brisa amável, sei lá, uma perfeição. Depois, a CG mandou a Ana telefonar prevenindo que estava numa orgiástica sessão de cabeleireiro que ameaçava demorar. Almocei sozinho numa casa de pasto simpática onde caímos quase todos os sábados. E comi as primeiras sardinhas do ano. Sardinhas em Março! E estavam boas, ó lá se estavam, claro que não são as do fim do Verão mas comiam-se muito bem. E eu sou de uma terra sardinheira, fui desmamado a sardinhas, linguados, robalos e outras maravilhas de Deus, não me deixo enganar sem mais nem menos, pelo que, acreditem, estas sardinhas de 31 de Março, Março marçagão, de manhã sol de verão, de tarde cara de cão, estavam excelentes.
E a meio da tarde munido de uma chaleira de chá meti-me na árdua tarefa de gravar. E de repente, ao som de La Lega a melancolia entrou sem pedir licença. Foi, tenho a certeza, quando li na capa do disco “Verão de 75, Milão”...
E vieram ao de cima, as imagens de um curso de direito do trabalho comparado, em Ljubljana e Trieste e mais uns dias de empréstimo em Arezzo em casa da Carlotta que eu conhecera anos antes em Berlin, no Goethe Institut. Uma italiana bonita e cheia de genica, muito do “pottere operaio”. A Carlotta e eu tínhamos trocado direcções nesse longínquo 71 mas nenhum de nós se lembrara do outro até Março de 75, quando recebo, via tia Néné, uma carta a perguntar o que é que se passava. Respondi num italiano mascavado com a ajuda de uma amiga do Instituto italiano que ao telefone me soletrava as palavras de que precisava, e a verdade é que lá fomos mantendo uma correspondência periclitante até à minha ida para Itália. Quando desembarquei em Milão, a caminho de Trieste, a Carlotta lá estava com um par de amigos e almoçámos numa trattoria que ainda hoje recordo. Foi a primeira vez que comi um risotto milanês e isso fez com que passasse a respeitar e a gostar da cidade dos Sforza.
No regresso, parei em Arezzo e demos umas voltas pelas pequenas cidades toscanas antes de rumar a Milão. Quando me dispunha a embarcar, a rapaziada da Alititalia entrou em greve e à conta disso estive mais três dias em Milão com a Carlotta que foi uma guia excepcional e me apresentou a uma fornada de tranquilos revolucionários italianos ligados ao pottere operaio. Naquele tempo, este grupo, antes radical, já tinha sido ultrapassado pelas Brigate rosse, Prima Línea, Stella rossa e não sei quantos mais. Com eles segui consternado boa parte do verão violento em Portugal: os jornais italianos traziam títulos deste género: “Portogallo colonnello falce e martello”. A Itália começava a parecer-me um excelente sítio para ficar mais uns tempos, que eu, das tontices de 75 já estava mais que farto. E trinta e tal anos depois o dr Salazar ganha uma votação merdosa na televisão ao dr Cunhal subitamente travestido em nº 2 do seu inimigo mais tenaz. (E note-se que já aqui, neste blog escrevi que do século XX português passavam à história Salazar, Cunhal, Soares e... Afonso Costa se entretanto se desfizesse a nuvem histórica que paira e amaldiçoa a aventura da 1ª Republica). Portanto, estávamos em 75, na Itália, em Milão, à custa da greve.
E foi isso tudo que me desabou em cima á segunda xícara de chá. Um rosto oval, uns olhos claros, pensativos, a loja dos discos, as explanadas generosas de Milão, as trattorie baratas, um concerto inolvidável e eu a decidir regressar à pátria madrasta malgrado as notícias dos jornais de esquerda italianos que falavam em pré guerra civil. Que se lixe, terei dito ou pensado, vou ver o que se passa e se as coisas estiverem mesmo beras, ala que se faz tarde, fronteira de Melgaço e pernas para que te quero. É claro que este “discorso” foi amplamente debatido com a Carlotta e o resto dos compagni italianos em noitadas monumentais em casa de A e de B, muito cigarro, bastante vinho e eu meio apaixonado. O dever chama-me, pensei ou disse, um tipo em estado de graça diz burrices infames, ou nem isso. Claro, ter-me-ão apoiado, de resto já sabes, tens cá uma casa e amigos.
Mas isto, leitora gentil que até aqui chegaste, isto, é chuva de Verão, mesmo que seja Março ainda, e a verdade é que a terra natal tem visgo, e eu regressei com um disco debaixo do braço, perdendo aliás dois voos, um de Barcelona a Madrid e outro de Madrid a Lisboa. Duas semanas depois estava a caminho de Madrid para mais um curso, desta vez sobre instituições europeias, outro longo mês e meio fora, e novamente a ideia que, depois de anos a aturar um regime cadaveroso, valia a pena ver como a ele se regressava por excessos revolucionários. Ficaram assim para trás Arezzo e a Carlotta, ficou mais um bocado de mim perdido entre a Toscânia e a Úmbria, e ficou também esta visita ao som do “ si ben che siamo donne/ paura non abbiamo...” que resiste a tudo, mesmo ao exorcismo de um litro de chá bebido devagar, sentado no chão com uma “furtiva lágrima” a correr por uma face que já viu melhores dias, madame nostalgie, “madame nostalgie... avec vos yeux de brume ...tes douceatres litanies” ...pourquoi me parlez vous de l’Italie?
E é com esta modificação à bela canção de Reggiani que vos deixam
mcr e a sua solitude.
na gravura "Melancolia" de Chirico
É uma quase do citação do Osborne, este título, ponhamos uma cópia indecente mas, como dizia o Manuel Sousa Pereira quando um professor das Belas Artes achava que ele modelava muito á Brancusi, copiar por copiar antes os grandes mestres, não acha professor?
O título é, pois, tomado de empréstimo mas a melancolia essa é mesmo minha, própria, antiga, recidivante (ou recidivista, sei lá como é que isto se diz, sente-se e já é suficientemente difícil, portanto não vale a pena começar a ver se a palavra existe) que aparece mansamente, de quando em quando, sem data certa.
Hoje foi assim: o João Vasconcelos Costa anda a pôr em dia os velhos discos revolucionários e manda a um grupo de amigos alguns dos resultados em curtas gravações. Eu propus-me mandar-lhe umas coisas italianas “ci ragiono, ci canto”, um espectáculo cantado sob a batuta do Dário Fo e, na passada, uma cópia de uns “canti rivoluzionari italiani” que me pus a passar de LP para CD, uma aventura! E foram estes os culpados deste meu estado de alma ou de desalma.
O dia até tinha corrido bem. Fui ler os jornais para o molhe, quase deserto, pude escolher a mesa, não havia ninguém em frente a tapar-me o mar e a rebentação, o dia tinha sol suficiente e entre mim e as ondas havia uma poalha finíssima, talvez as últimas lágrimas da chuva da noite a evaporar-se, ou espuma trazida por uma brisa amável, sei lá, uma perfeição. Depois, a CG mandou a Ana telefonar prevenindo que estava numa orgiástica sessão de cabeleireiro que ameaçava demorar. Almocei sozinho numa casa de pasto simpática onde caímos quase todos os sábados. E comi as primeiras sardinhas do ano. Sardinhas em Março! E estavam boas, ó lá se estavam, claro que não são as do fim do Verão mas comiam-se muito bem. E eu sou de uma terra sardinheira, fui desmamado a sardinhas, linguados, robalos e outras maravilhas de Deus, não me deixo enganar sem mais nem menos, pelo que, acreditem, estas sardinhas de 31 de Março, Março marçagão, de manhã sol de verão, de tarde cara de cão, estavam excelentes.
E a meio da tarde munido de uma chaleira de chá meti-me na árdua tarefa de gravar. E de repente, ao som de La Lega a melancolia entrou sem pedir licença. Foi, tenho a certeza, quando li na capa do disco “Verão de 75, Milão”...
E vieram ao de cima, as imagens de um curso de direito do trabalho comparado, em Ljubljana e Trieste e mais uns dias de empréstimo em Arezzo em casa da Carlotta que eu conhecera anos antes em Berlin, no Goethe Institut. Uma italiana bonita e cheia de genica, muito do “pottere operaio”. A Carlotta e eu tínhamos trocado direcções nesse longínquo 71 mas nenhum de nós se lembrara do outro até Março de 75, quando recebo, via tia Néné, uma carta a perguntar o que é que se passava. Respondi num italiano mascavado com a ajuda de uma amiga do Instituto italiano que ao telefone me soletrava as palavras de que precisava, e a verdade é que lá fomos mantendo uma correspondência periclitante até à minha ida para Itália. Quando desembarquei em Milão, a caminho de Trieste, a Carlotta lá estava com um par de amigos e almoçámos numa trattoria que ainda hoje recordo. Foi a primeira vez que comi um risotto milanês e isso fez com que passasse a respeitar e a gostar da cidade dos Sforza.
No regresso, parei em Arezzo e demos umas voltas pelas pequenas cidades toscanas antes de rumar a Milão. Quando me dispunha a embarcar, a rapaziada da Alititalia entrou em greve e à conta disso estive mais três dias em Milão com a Carlotta que foi uma guia excepcional e me apresentou a uma fornada de tranquilos revolucionários italianos ligados ao pottere operaio. Naquele tempo, este grupo, antes radical, já tinha sido ultrapassado pelas Brigate rosse, Prima Línea, Stella rossa e não sei quantos mais. Com eles segui consternado boa parte do verão violento em Portugal: os jornais italianos traziam títulos deste género: “Portogallo colonnello falce e martello”. A Itália começava a parecer-me um excelente sítio para ficar mais uns tempos, que eu, das tontices de 75 já estava mais que farto. E trinta e tal anos depois o dr Salazar ganha uma votação merdosa na televisão ao dr Cunhal subitamente travestido em nº 2 do seu inimigo mais tenaz. (E note-se que já aqui, neste blog escrevi que do século XX português passavam à história Salazar, Cunhal, Soares e... Afonso Costa se entretanto se desfizesse a nuvem histórica que paira e amaldiçoa a aventura da 1ª Republica). Portanto, estávamos em 75, na Itália, em Milão, à custa da greve.
E foi isso tudo que me desabou em cima á segunda xícara de chá. Um rosto oval, uns olhos claros, pensativos, a loja dos discos, as explanadas generosas de Milão, as trattorie baratas, um concerto inolvidável e eu a decidir regressar à pátria madrasta malgrado as notícias dos jornais de esquerda italianos que falavam em pré guerra civil. Que se lixe, terei dito ou pensado, vou ver o que se passa e se as coisas estiverem mesmo beras, ala que se faz tarde, fronteira de Melgaço e pernas para que te quero. É claro que este “discorso” foi amplamente debatido com a Carlotta e o resto dos compagni italianos em noitadas monumentais em casa de A e de B, muito cigarro, bastante vinho e eu meio apaixonado. O dever chama-me, pensei ou disse, um tipo em estado de graça diz burrices infames, ou nem isso. Claro, ter-me-ão apoiado, de resto já sabes, tens cá uma casa e amigos.
Mas isto, leitora gentil que até aqui chegaste, isto, é chuva de Verão, mesmo que seja Março ainda, e a verdade é que a terra natal tem visgo, e eu regressei com um disco debaixo do braço, perdendo aliás dois voos, um de Barcelona a Madrid e outro de Madrid a Lisboa. Duas semanas depois estava a caminho de Madrid para mais um curso, desta vez sobre instituições europeias, outro longo mês e meio fora, e novamente a ideia que, depois de anos a aturar um regime cadaveroso, valia a pena ver como a ele se regressava por excessos revolucionários. Ficaram assim para trás Arezzo e a Carlotta, ficou mais um bocado de mim perdido entre a Toscânia e a Úmbria, e ficou também esta visita ao som do “ si ben che siamo donne/ paura non abbiamo...” que resiste a tudo, mesmo ao exorcismo de um litro de chá bebido devagar, sentado no chão com uma “furtiva lágrima” a correr por uma face que já viu melhores dias, madame nostalgie, “madame nostalgie... avec vos yeux de brume ...tes douceatres litanies” ...pourquoi me parlez vous de l’Italie?
E é com esta modificação à bela canção de Reggiani que vos deixam
mcr e a sua solitude.
na gravura "Melancolia" de Chirico
1 comentário:
Permita-me...
A sua melancolia foi a minha alegria ao ler mais uma bonita crónica.
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