mcr endoidou de vez?
A ver vamos: não serei quem pode responder a esta pergunta, está bem de ver. Ao fim e ao cabo, sou parte interessada. Ou, se calhar nem isso. Com o que vejo lá fora, temo bem que só com uma boa dose de insanidade é que se aguenta o tempo que nos está a ser dado viver.Aproveitando o facto de termos neste blog uma psiquiatra (uma bonita psiquiatra diria o Coutinho Ribeiro que nisto não tem rival, há que confessá-lo sem mágoa mas com inveja) deixemos que ela decida ainda que para isso necessite, eventualmente, de alguma explicação suplementar.
E agora pratiquemos neste mistério gozoso: três livros aparecem hoje como mote a esta crónica: “O seu a seu poema” de José Valle de Figueiredo, “As campanhas coloniais de Portugal (1844-1941)” de René Pélissier e “Portuguesismo(s)” de João Medina. Nada os reúne nesta crónica a não ser o azar da compra em simultâneo.
Azar? Só isso? Ou haverá nestas três compras algo mais do que a vontade do leitor? Acaso a poesia de José Valle, tão tributária dos azares da história recente, da intervenção do autor a contra-corrente, não terá que ver afinal com a meditação de Medina sobre as imagens identitárias portuguesas ou, enfim, sobre o conjunto de factores que explicam essa intenção sempre adiada por falta de condições de construção de um império colonial depois da perda do Brasil?
Comece-se com José Valle de Figueredo meu colega e amigo de liceu em Coimbra, contemporâneo na Universidade, adversário para não dizer inimigo desde os anos em que eu ia ancorando à esquerda enquanto ele deslizava para o “Jovem Portugal” de que iria ser senão um dos principais ideólogos seguramente dos mais convictos e dos que mais se comprometeram. Ponhamos que JVC levou até ao fim a sua paixão de extrema direita. As vagas notícias que fui tendo dele, nestes últimos quase cinquenta anos, davam-no como conselheiro do marechal Spínola, como artesão do golpe de estado(?), como ideólogo de todos os grupos de extrema direita que floresceram no após o 25 de Abril. Dizem-me que agora, envelhecido e sossegado, mas sempre na extrema direita, é assessor cultural numa Câmara Municipal do norte. Esperaria mais, mas se calhar isso acontece mas eu não o sei, a quem se entregou com tanta paixão ao combate “nacionalista”.
De todo o modo, não é da biografia que vinha falar mas apenas da saída da sua mais ou menos completa obra, “O seu a seu poema” (Imprensa Nacional Casa da Moeda, Dezembro de 2006). Comprei-o, movido por essa imprecisa recordação de uns largos meses de camaradagem, de entrada no mundo da cultura, quebrado pela deriva contraditória de ambos e pela militância assumida por cada um a partir do primeiro ano da universidade. Lembrava-me vagamente de alguns poemas do primeiro livro de JVF e da impressão de modernidade que na altura me produziram. A obra total, quiçá um centena de poemas, não desmerece dessa antiquíssima percepção. Trata-se de um conjunto honrado, equilibrado, de uma voz diferente mas é disso que (também) se faz a literatura de um país. Nesta apressada nota de pré-leitura cabe uma palavra sobre a pergunta que alguém me fará: nota-se a opção ideológica de JVF nos escritos apressadamente vistos? Pois direi que é discreta tal presença, e porventura só perceptível a quem conhece o autor. E querem saber mais? Estou a ler os primeiros poemas com algum prazer e sobretudo uma ternura antiga e leve, lembrança dos rapazes que fomos e dos sonhos que tínhamos. Estou definitivamente velho ou então...
Portuguesismo(s) de João Medina é um saudável exercício sobre algumas ideias feitas outros tantos narizes de cera e demais emblemas em circulação entre nós. E também um inventário de alguns mitos (con)formadores da nossa (ir)realidade nacional. Também não são, porque não podem ser, grandes as notas apressadas duma leitura que está quase toda por fazer. Todavia do lido e respigado fica a ideia muito clara de um sólido e interessante esforço por tornar perceptíveis alguns desvãos da nossa cultura identitária.
João Medina tem uma vasta obra e é reconhecidamente um bom especialista do nosso século XIX. Recordo-o de leituras muito antigas, talvez de meados dos anos sessenta quando colaborava na Vértice. Escrevia bem, acertava bastante e tinha humor. Também aqui há obviamente alguma cumplicidade geracional mas isso não impede o q.b. de rigor quando se trata de chamar a atenção para um livro ou um autor. É um sólido calhamaço dividido também numa boa centena de itens que podem ser lidos em desordem e sem preocupações de continuidade.
Finalmente, e porque eu agora, olho mais para a extensão dos textos que vou cometendo, fica outra nota sobre Pélissier e as suas “Campanhas coloniais de Portugal...” O autor é já conhecido e é tido (com justiça) como um especialista da nossa história africana. Pessoalmente, por toda uma série de razões, em que avultam as familiares e as políticas, estou entusiasmado na leitura deste livro. De facto, mesmo que já conhecendo a traço grosso as desventuras da criação e morte do nosso Terceiro Império, vale a pena ler este livro porquanto é das primeiras (pelo menos para mim) tentativas para dar uma visão de conjunto da aventura africana. Já aqui tentei, graças ao desafio de dois leitores, explicar as raízes do mito da nossa presença multi-secular nas colónias africanas. Se não me falha a memória tentei explicar a precariedade da ocupação das colónias africanas, a falta de incentivos, de gente, de investimentos, bem como a tardia ocupação dos hinterlands de Angola e Moçambique. De resto quem, por exemplo, tenha lido os textos de propaganda republicanos sobre a missão colonial portuguesa (e são imperdíveis os “Cadernos coloniais” Cosmos ed. vários autores ou a colecção de textos “Pelo Império”, Agência Geral das Colónias, 1935 até aos fins dos anos quarenta porquanto no afã de exaltarem o sacrifício colonial dão também a melhor prova da tardia ocupação efectiva dos territórios. E note-se que estamos perante autores de diferente formação e posicionamento político) vai encontrar, agora mais elaborada mas igualmente interessante, a história global dessa aventura. A aventura de um pais pobre que nunca teve o dinheiro suficiente para rentabilizar o esforço desmedido que dezenas e dezenas de campanhas de ocupação mereciam. E que muitos soldados, oficiais coloniais talvez merecessem. Recalco o “talvez”... Também não teve gente, gente para se estabelecer nas terras africanas. O Brasil, mesmo independente, primeiro e a Europa, muito mais tarde, atraíram a grande maioria dos emigrantes portugueses. E isso, esse pouco apego à colonização africana, exaltada por republicanos e salazaristas constituiu a mais forte resposta à agora renovada mitologia da “África Portuguesa”. E às acusações de “liquidação do império” apressadamente feitas por quem nunca lá pôs os pés. Por quem nunca amou aquelas terras, as suas culturas nativas, as línguas lá faladas. E eu sei do que falo e falo porque sei e posso falar.
Tenho por certo que a maior parte dos leitores vai ter motivo para se surpreender com a leitura deste livro. E, julgo, não darão por mal gasto o seu dinheiro.
nota: esta farmácia leva um número bem inferior às passadas. Agora com a introdução dos marcadores só foram consideradas como farmácia as crónicas que tinham esse título ficando as adendas e similares com os nomes que tinham no limbo da produção fora das séries deste escriba. As minhas desculpas ao leitor MSP, infatigável coleccionador destas páginas. E um abraço sincero aos meus contrincantes sobre África.
A gravura: mácara Makonde (cerca de 1930) Moçambique.
2 comentários:
Nem menos uma Farmácia de serviço, já bastam as "urgências" a meos, ora!
se é por causa do nome, muda-se o dito! Vou ver isso.
abraço,
Liliana
Sim, sim, MCR, se à fama correspondesse o proveito, até eu escrevia um livro :-)
abraço
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