18 linhas no canto inferior direito
da página 14
da página 14
António Carlos, 65 anos de idade, editor. Um cancro no pâncreas. A morte.
Assim em dezoito linhas se escreve a biografia de um morto que não é tão anónimo porque ainda tem direito a dezoito linhas num canto perdido de uma página esquerda do jornal. A notícia à esquerda de uma morte de alguém que saiu da esquerda há um largo par de anos.
Comecemos pelo princípio. Pelo rapazinho de onze anos que, por ser o mais baixo de todos os rapazinhos da fornada 52/53 do 1º ano do “Liceu Municipal da Figueira da Foz”, era o número 9 da turma B. A turma A era de meninas e sobraram oito ainda para a B. Ao todo no liceu (só com o primeiro ciclo) éramos 133, se não erro. Eu, mais alto, muito mais alto era o nº 13. O Mário Neto era o 18, o Bartolomeu o 10 e o Carlos Cruz o 11. Os primeiros dias foram difíceis. Eu vinha da escola de Buarcos, era aliás o único que vinha daí, o Bartolomeu vinha de Ponte da Barca porque tinha um tio cabo do mar na Figueira que por acaso era vizinho nosso e os outros eram da Figueira ou de concelhos a sul do rio. Estas origens geograficamente diferentes significavam um monte de desconfianças para os trinta caloiros do liceu. Demorou um par de semanas a homogeneizar a turma, a começarmos a tratar-nos pelos nomes e não pelos números que nos foram dados consoante a altura. A altura e um pouco a idade. porque para lá do 19 ou 20 havia colegas mais velhos, que teriam perdido anos na escola ou estariam a repetir o 1º ano. Naquele tempo, chumbava-se com alguma facilidade
Maus tempos comentarão alguns pedagogos actuais que acham natural um aluno não saber nada mas passar. Bons tempos dirão outros que vêm o passado com óculos de oiro fino. Tempos difíceis, atrevo-me eu. Tempos de fome, de miséria generalizada que eu, filho do médico de Buarcos bem a vi na escola, na rua, na aflita notícia de um naufrágio, de um incêndio num armazém de redes, ou num simples acidente da mina de carvão do Cabo Mondego.
Tempos difíceis até para a família do médico que era pago muitas vezes com um sentido e angustiado “Deus lhe pague” ou em peixe (ai o peixe, bom, fresco o peixe da gratidão nunca faltou lá em casa...E mais tarde, já os tempos eram um pouco melhores, quando regressei de Moçambique, ou quando frequentava a universidade e me calhava voltar à terra da infância quantas vezes fui recebido como um rei, um rei republicano e pescador, “ai meu rico filho do dr Marcelo, o teu pai é que pôs estes dois cá fora. E apontava para uns marmanjos da minha idade, nascidos em casa, à luz de um candeeiro de petróleo com os parcos meios do médico parteiro, obstetra, pediatra & similares que o meu pai tinha, naquela praia à sombra da serra da Boa Viagem, terra de pescadores e mineiros de carvão.
Mas eu cheguei aqui, à Figueira dos perdidos anos 40/50 pela mão do António Carlos Manso Pinheiro, editor, viúvo, e morto por um cancro. E da minha exacta idade.
Os rapazinhos bisonhos da turma B do primeiro ano, tornaram-se amigos, correram juntos as ruas da pequena cidade balnear, faltaram juntos à missa dominical das 11 como manda a boa regra, intimaram juntos um outro qualquer menos afoito a esperá-los à saída da missa ao pé da Tulmar para lhes dizer de que cor eram os paramentos do monsenhor Palrinhas (juro que é este o nome!) e o tem do sermão, digo do longuíssimo sermão que o monsenhor Palrinhas era um palrador do catorze, olá se era. E como é que o sabes, ó meu caramelo?, pergunta o inefável Pereira a ver se me caça numa mentirola. Ora, ora, Manecas, então tu não sabes que na Páscoa e no Natal nem o melhor se escapa de uma missa com a família au grand complet? Até o meu pai ia. E os avós paternos e a prima Fernanda. Nesse dia não havia baldas para ninguém. E o monsenhor excedia-se. Aquilo não acabava. Eu e o meu irmão olhávamos em volta e víamo-los todos, desde o patusco que nunca falhava até aos faltosos habituais, lavadinhos, penteadinhos roupinha melhor olhando para os lados numa cumplicidade que só a desmemória de pais e mães não percebia.
Depois do exame do segundo ano, dispersámo-nos. Eu fui exilado para Coimbra onde sonhava com o sábado, dia em que vinha a casa passar o pequeníssimo fim de semana que começava à tarde porque na parte da manhã havia mocidade portuguesa (pata que a pôs!). E o comboio nunca mais chegava, às vezes apetecia sair e empurrá-lo... Domingo, ao fim da tarde, zás, aí vinha eu com o coração amargurado para uma Coimbra estrangeira, uma casa de uma tia de quem nunca gostei, um massacre. E muita sorte, porque nos dias em que a Académica jogava em casa, era o meu pai que vinha a Coimbra e eu que me amolasse a ver um jogo odioso e a não ver a terra de infância, a praia e os amigos.
Isto não quer ser um exercício de ajuste de contas com o passado de um rapazito chamado mcr mas quem me conhece já sabe o que a casa gasta.
António Carlos outra vez: eu já em Coimbra e ele, mais cabulão, num estudo de trazer por casa, na Figueira. A ler alucinado os surrealistas, a começar a ter contactos políticos do 3º grau, partido comunista, claro. Aceitei de bom grado os surrealistas, mas o pc e toda a sua parafernália moscovita e stalinista dava-me uma azia tremenda. Fiquei-me pelas bordas, compagnon de route e depois, parvo e radical, entrei no cenóbio maoísta! Ficaram famosas as nossas discussões na Sacor em frente ao mar, com uma plateia de amigos mais novos que se dividiu irmãmente pelos dois. Claro que a polícia não dormia, e mais cedo ou mais tarde todos passámos pelos incómodos habituais de quem se metia naquelas alhadas.
Entretanto, enquanto o pau não nos acertava nos lombos idealistas e viçosos, salvávamos o mundo em imensas noitadas que começavam pelas nove da noite e só acabavam às seis ou sete da manhã. Rondávamos pela cidade, acordando os gatos vadios, vendo sair as traineiras da doca, acabando a madrugada na “Trancozense” onde, por meia dúzia de escudos, se comia um bife com batatas frita, na companhia de jogadores do casino, prostitutas e gente de empregos nocturnos que comia uma bucha antes de se ir deitar.
Quando o 25 de Abril chegou, o António Carlos estava entre os presos que saíram de Caxias. Comunista e orgulhoso por o ser. E excelente editor: ainda hoje a Editorial Estampa é uma referência.
Os nossos caminhos é que já não se cruzavam: eu no MES, no Porto e pouco inclinado ao delírio do PREC. Ele, guardador da ortodoxia num primeiro tempo, e depois dissidente até dizer chega. Quando nos voltámos a ver já não bastavam as comuns admirações por O’Neil ou Herberto Hélder, pelos grandes clássicos russos ou por uma boa centena de outros autores. Eu já andava a fazer a apologia do primeiro Soares candidato enquanto o António Carlos se inclinaria por Freitas do Amaral.
Curiosamente foi mais ele que se afastou. Não admira, fora mais radical e isso não passa como o sarampo. Ainda me recebeu fidalgamente em casa, quando a Ana Maria Alves ainda era viva. Escrevi-lhe uma sentida carte pela morte dela e ele agradeceu-me, delicada mas secamente.
Depois nunca mais nos vimos. Até hoje, quando em dezoito merdosas linhas, da página 14, ao fundo, o vejo. Morto, pequenito, com dez onze anos, a piscar-me o olho cúmplice da carteira do nº 9 para a do 13 imediatamente atrás e à direita. Era o sinal arriscado e difícil para o começo de um dos muitos jogos de batalha naval que travámos durante dois anos perante o olhar invejoso da Jacinta, a nº 8 e do Mário Neto, o 18 exactamente atrás de mim. Para a pequena história não fica a contabilidade das vitórias e derrotas de cada um mas este outro recorde: nunca fomos apanhados. Apanhou-o agora a morte.
Quem ganhou?, quem perdeu, António Carlos, querido amigo?
Na gravura: Figueira da Foz, anos 40, forte de Santa Catarina, onde todos nós brincámos aos polícias e ladrões, aos índios e cow-boys enfim a tudo o que os meninos desses anos brinncavam. Esta fotografia com mais 17 é uma gentileza do caríssimo leitor Ferreira. Obrigado e um abraço.
Assim em dezoito linhas se escreve a biografia de um morto que não é tão anónimo porque ainda tem direito a dezoito linhas num canto perdido de uma página esquerda do jornal. A notícia à esquerda de uma morte de alguém que saiu da esquerda há um largo par de anos.
Comecemos pelo princípio. Pelo rapazinho de onze anos que, por ser o mais baixo de todos os rapazinhos da fornada 52/53 do 1º ano do “Liceu Municipal da Figueira da Foz”, era o número 9 da turma B. A turma A era de meninas e sobraram oito ainda para a B. Ao todo no liceu (só com o primeiro ciclo) éramos 133, se não erro. Eu, mais alto, muito mais alto era o nº 13. O Mário Neto era o 18, o Bartolomeu o 10 e o Carlos Cruz o 11. Os primeiros dias foram difíceis. Eu vinha da escola de Buarcos, era aliás o único que vinha daí, o Bartolomeu vinha de Ponte da Barca porque tinha um tio cabo do mar na Figueira que por acaso era vizinho nosso e os outros eram da Figueira ou de concelhos a sul do rio. Estas origens geograficamente diferentes significavam um monte de desconfianças para os trinta caloiros do liceu. Demorou um par de semanas a homogeneizar a turma, a começarmos a tratar-nos pelos nomes e não pelos números que nos foram dados consoante a altura. A altura e um pouco a idade. porque para lá do 19 ou 20 havia colegas mais velhos, que teriam perdido anos na escola ou estariam a repetir o 1º ano. Naquele tempo, chumbava-se com alguma facilidade
Maus tempos comentarão alguns pedagogos actuais que acham natural um aluno não saber nada mas passar. Bons tempos dirão outros que vêm o passado com óculos de oiro fino. Tempos difíceis, atrevo-me eu. Tempos de fome, de miséria generalizada que eu, filho do médico de Buarcos bem a vi na escola, na rua, na aflita notícia de um naufrágio, de um incêndio num armazém de redes, ou num simples acidente da mina de carvão do Cabo Mondego.
Tempos difíceis até para a família do médico que era pago muitas vezes com um sentido e angustiado “Deus lhe pague” ou em peixe (ai o peixe, bom, fresco o peixe da gratidão nunca faltou lá em casa...E mais tarde, já os tempos eram um pouco melhores, quando regressei de Moçambique, ou quando frequentava a universidade e me calhava voltar à terra da infância quantas vezes fui recebido como um rei, um rei republicano e pescador, “ai meu rico filho do dr Marcelo, o teu pai é que pôs estes dois cá fora. E apontava para uns marmanjos da minha idade, nascidos em casa, à luz de um candeeiro de petróleo com os parcos meios do médico parteiro, obstetra, pediatra & similares que o meu pai tinha, naquela praia à sombra da serra da Boa Viagem, terra de pescadores e mineiros de carvão.
Mas eu cheguei aqui, à Figueira dos perdidos anos 40/50 pela mão do António Carlos Manso Pinheiro, editor, viúvo, e morto por um cancro. E da minha exacta idade.
Os rapazinhos bisonhos da turma B do primeiro ano, tornaram-se amigos, correram juntos as ruas da pequena cidade balnear, faltaram juntos à missa dominical das 11 como manda a boa regra, intimaram juntos um outro qualquer menos afoito a esperá-los à saída da missa ao pé da Tulmar para lhes dizer de que cor eram os paramentos do monsenhor Palrinhas (juro que é este o nome!) e o tem do sermão, digo do longuíssimo sermão que o monsenhor Palrinhas era um palrador do catorze, olá se era. E como é que o sabes, ó meu caramelo?, pergunta o inefável Pereira a ver se me caça numa mentirola. Ora, ora, Manecas, então tu não sabes que na Páscoa e no Natal nem o melhor se escapa de uma missa com a família au grand complet? Até o meu pai ia. E os avós paternos e a prima Fernanda. Nesse dia não havia baldas para ninguém. E o monsenhor excedia-se. Aquilo não acabava. Eu e o meu irmão olhávamos em volta e víamo-los todos, desde o patusco que nunca falhava até aos faltosos habituais, lavadinhos, penteadinhos roupinha melhor olhando para os lados numa cumplicidade que só a desmemória de pais e mães não percebia.
Depois do exame do segundo ano, dispersámo-nos. Eu fui exilado para Coimbra onde sonhava com o sábado, dia em que vinha a casa passar o pequeníssimo fim de semana que começava à tarde porque na parte da manhã havia mocidade portuguesa (pata que a pôs!). E o comboio nunca mais chegava, às vezes apetecia sair e empurrá-lo... Domingo, ao fim da tarde, zás, aí vinha eu com o coração amargurado para uma Coimbra estrangeira, uma casa de uma tia de quem nunca gostei, um massacre. E muita sorte, porque nos dias em que a Académica jogava em casa, era o meu pai que vinha a Coimbra e eu que me amolasse a ver um jogo odioso e a não ver a terra de infância, a praia e os amigos.
Isto não quer ser um exercício de ajuste de contas com o passado de um rapazito chamado mcr mas quem me conhece já sabe o que a casa gasta.
António Carlos outra vez: eu já em Coimbra e ele, mais cabulão, num estudo de trazer por casa, na Figueira. A ler alucinado os surrealistas, a começar a ter contactos políticos do 3º grau, partido comunista, claro. Aceitei de bom grado os surrealistas, mas o pc e toda a sua parafernália moscovita e stalinista dava-me uma azia tremenda. Fiquei-me pelas bordas, compagnon de route e depois, parvo e radical, entrei no cenóbio maoísta! Ficaram famosas as nossas discussões na Sacor em frente ao mar, com uma plateia de amigos mais novos que se dividiu irmãmente pelos dois. Claro que a polícia não dormia, e mais cedo ou mais tarde todos passámos pelos incómodos habituais de quem se metia naquelas alhadas.
Entretanto, enquanto o pau não nos acertava nos lombos idealistas e viçosos, salvávamos o mundo em imensas noitadas que começavam pelas nove da noite e só acabavam às seis ou sete da manhã. Rondávamos pela cidade, acordando os gatos vadios, vendo sair as traineiras da doca, acabando a madrugada na “Trancozense” onde, por meia dúzia de escudos, se comia um bife com batatas frita, na companhia de jogadores do casino, prostitutas e gente de empregos nocturnos que comia uma bucha antes de se ir deitar.
Quando o 25 de Abril chegou, o António Carlos estava entre os presos que saíram de Caxias. Comunista e orgulhoso por o ser. E excelente editor: ainda hoje a Editorial Estampa é uma referência.
Os nossos caminhos é que já não se cruzavam: eu no MES, no Porto e pouco inclinado ao delírio do PREC. Ele, guardador da ortodoxia num primeiro tempo, e depois dissidente até dizer chega. Quando nos voltámos a ver já não bastavam as comuns admirações por O’Neil ou Herberto Hélder, pelos grandes clássicos russos ou por uma boa centena de outros autores. Eu já andava a fazer a apologia do primeiro Soares candidato enquanto o António Carlos se inclinaria por Freitas do Amaral.
Curiosamente foi mais ele que se afastou. Não admira, fora mais radical e isso não passa como o sarampo. Ainda me recebeu fidalgamente em casa, quando a Ana Maria Alves ainda era viva. Escrevi-lhe uma sentida carte pela morte dela e ele agradeceu-me, delicada mas secamente.
Depois nunca mais nos vimos. Até hoje, quando em dezoito merdosas linhas, da página 14, ao fundo, o vejo. Morto, pequenito, com dez onze anos, a piscar-me o olho cúmplice da carteira do nº 9 para a do 13 imediatamente atrás e à direita. Era o sinal arriscado e difícil para o começo de um dos muitos jogos de batalha naval que travámos durante dois anos perante o olhar invejoso da Jacinta, a nº 8 e do Mário Neto, o 18 exactamente atrás de mim. Para a pequena história não fica a contabilidade das vitórias e derrotas de cada um mas este outro recorde: nunca fomos apanhados. Apanhou-o agora a morte.
Quem ganhou?, quem perdeu, António Carlos, querido amigo?
Na gravura: Figueira da Foz, anos 40, forte de Santa Catarina, onde todos nós brincámos aos polícias e ladrões, aos índios e cow-boys enfim a tudo o que os meninos desses anos brinncavam. Esta fotografia com mais 17 é uma gentileza do caríssimo leitor Ferreira. Obrigado e um abraço.
4 comentários:
Excelente, M.C.R., para não variar.
Mais um amigo que a galdéria imperativa, que não admite cedências, levou.
Todavia do seu texto pode concluir-se , á semelhança de Yannis Ritsos,... que a infância transfigura a morte e nunca parte.
Um abraço
Um abraço, Marcelo.
Um grtande abraço de gratidão a ambos. um muito sentido abrço. doi-me esta morte e doi-me não ter estado com este meu amigo de há 55 anos (!!!) nestes últimos tempos...
Há um ano li este post sobre o António Carlos e não fui capaz de escrever nada. Acabara de me despedir do corpo que partira, no crematório. Fui assistente editorial de António Carlos nos últimos anos da sua vida. Fui às feiras de livros em LOndres e em Frankfurt, no último ano da sua vida, porque ele não podia ir, apesar de o querer, devido à doença. E com que bravura combateu a doença maldita...Ia à EStampa todos os dias, sempre que podia, ver os contratos, assinar papéis, ver os livros que lhe interessaria editar, corrigir, e com que elegância e fino português, os textos que eu escrevinhava para os textos de contracapa.Enfim, trabalhou sempre, até ao último dia. Tenazmente e com um sorriso. Algo triste, pr sinal... Antes da última operação, da qual ele acreditou sair incólume, despediu-se: «Então, até daqui a quinze dias.»...
Obrigada ao autor do texto por me fazer lembrar esse olhar, que eu não conheci de infãncia, mas que tive a bênção de conhecer durante os sete anos que trabalhei na EStampa. Então, António Carlos, «até daqui a quinze dias...»
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