07 junho 2007

Au Bonheur des Dames 70



repegando no folhetim ainda que não exactamente

Mas que mal fiz eu aos deuses para, agora, estar, aqui, metido numa camisa de onze varas? Bem, alguma coisa fui fazendo, vida fora, que um homem não é de pau. Mas mal, mal mesmo, desse de dar cadeia, tribunal, artigo nos jornais a três colunas com chamada na primeira página, que diabo!, não me lembro.
O caso (bicudo), leitorinhas gentis, distintos cavalheiros, respeitável público, é que tenho a caixa do correio atafulhada de mensagens: gente que apela ao meu bom coração, antigos colegas do colégio, aliás dos vários colégios donde fui sendo mandado embora, pesem as boas notas, que as tinha, mas mandado embora à mesma; de um grupo de antigos amigos dos jogos de futebol na praia entre Buarcos e o Viso; de um parceiro de bridge; de um cavalheiro que jura ser escultor (será o arganaz do MSP, o escultor marceneiro que frequenta e dá má nota a estas páginas?), de um conhecido da tropa (esta é de mais: nunca andei na tropa!) do tipo que jogava à batalha naval nas aulas de Civil do Pires de Lima (essa é fraquinha: havia um bom quarteirão de jogadores, incluindo um tipo que ouvia rádio e fazia as palavras cruzadas do Diário de Lisboa!...), enfim um regimento de abraços, súplicas, ameaças, lembranças, mentiras, sei lá o que mais...
E o que é que estes marmanjolas todos querem? Pois serem o tipo que estava na fotografia com as meninas do playboy! Ó pá como é que tu não topaste que era eu? A miúda até se chamava Marlene! Frio, muito frio, caro Watson, as coelhinhas não usam nomes desses. Marlene dá para manicure, mas para bunnie nem pensar! Tu já estás de fora.
Eu nem vou contar os desenvolvimentos do caso Sanches porque este súbito correio vagamente sentimental, lembrou-me uma história muito coimbrã, coimbrinha mesmo, caso verídico ou quase, se non é vero c’é ben trovatto, enfim vocês dirão.
A coisa conta-se em três palavras: cenário finais de cinquenta, princípios de 60, largo dos Arcos do Jardim. Meio da tarde. Duas animosas equipas de estudantes vagamente universitários disputam uma renhida partida de futebol naquele largo que raros carros, um eléctrico – o 1 Universidade – e um trolley, o 5, atravessam. Dois polícias de giro, pouco dados ao desporto universitário, interrompem a partida e dão voz de prisão à bola. Protestos dos mancebos. Voz de prisão aos mesmos.
2º acto: forma-se um cortejo composto de dois polícias devidamente fardados, uma bola, e dez rapazolas vestidos de calça preta, camisa branca ou quase, gravata preta desapertada. Uns trazem o colete da capa e batina mas a maioria veste sobre a camisa um casaco de pijama. Naquele tempo era assim, não tenho culpa.
Para evitar escândalo, a autoridade resolve tomar a rua que fica entre a pensão Antunes e a republica Ay-ó-Linda. Mau começo porque destes dois locais sai mais uma dúzia de estúrdios que, solidariamente se consideram presos. No fim da rua, já também se aprestavam os do Ninho dos Matulões, a malta da Julinha, com o João Amaral à frente, enquanto se ouvia vindos do ACM os gritos do Chico Brito e mais irmãos que juravam que também estavam no jogo de futebol e por isso exigiam que lhes fosse dada voz de prisão.
A coluna obliquou para a praça da República para tomar a Avenida Sá da Bandeira. Péssima ideia porque do Mandarim, do Tropical, do Fontes e do Moçambique (capital de Angola, Fontes dixit) acorriam dezenas de fregueses que sem cuidar de pagar a conta ou guardar as sebentas entendiam ser seu direito “ir dentro”.
Nesta altura, a confusão é grande, há mais dois polícias e um bombeiro nas fileiras da repressão à juventude e de todos os lados, desde a Alta até aos arredores do Liceu acorrem rapazes que não sabendo bem o que se passa não querem perder a oportunidade de marchar entre as forças repressivas. Dos Corsários das Ilhas (Bretão, Germano de Sousa & compinchas vem pedido para se andar mais devagar. Os tipos da Pra-Kis-Tão resolvem vir de táxi, dada a urgência. Os dos Mil-y-onarius e do Palácio da Loucura, com muitos cabides à volta correm que nem gamos para não perderem o comboio.
Cerca do Avenida são centenas os estudantes que se declaram presos. A polícia entretanto reforça-se com um piquete da guarda republicana enquanto um par de agentes da pide embiocados em gabardinas segue o cortejo e tenta fixar caras. Em frente à Marques, a multidão recebe ordens de parar enquanto as autoridades parlamentam sabe-se o quê. As meninas do lar em frente estão todas à janela, fazem adeus, batem palmas. A Academia (quando em Coimbra se juntavam mais de trezentos tipos havia sempre um que aproveitava para urrar em tom trágico qualquer coisa sobre a ACADEMIA. Em maiúsculas e voz cava.)
Antes de avançar velozmente para o 3º e definitivo acto, convém aqui esclarecer que a polícia coimbrã, coitada!, tinha uma banda. E que essa banda, em dia mal inspirado (ou dias que a polícia é assim chata até dizer chega!) percorreu a cidade a horas mortas e durante uns feriados tocando com a afinação que se reconhece aos agentes da autoridade, a “marcha da Rio Kway”. Quem ouviu nunca mais deixará de lembrar a sanfona policial a atroar as ladeiras da “cidade de lavados ares” com a sua, deles, peculiar e cele(b)rada versão.
E agora, asinha, asinha, ao terceiro acto. Situação: embaraçosa. Ou sai carga de pau, coisa de criar bicho, com possível retorsão da mocidade estudiosa, ou as coisas resolvem-se sem desprimor para qualquer das partes. Da parte desportista, alguém tem a ideia grandiosa de começar a assobiar a marcha do rio Kway. Quem ouviu jura que era uma versão serbo-croata na voz passiva. Não interessa. Foi assobiada, isso sim, com muito sentimento e igual dose de desafinação. Quem não assobiava dizia from fom frrom na parte do estribilho. Palmas das meninas do lar, das vendedeiras do mercado, de vários “futricas” uma vez sem exemplo irmanados na luta contra a repressão. E da parte da “bófia”, quid júris?
Pois da parte da psp, um oficial inteligente, também os há, resolveu mandar apitar qualquer coisa e em voz estentórea, intimou a multidão a dispersar sob, pasme-se, pena de libertação à chanfalhada. Perante o argumento da autoridade, a população estudantil deu meia volta e perdeu-se por cafés e tascos da cidade para beber qualquer coisinha que aquilo de assobiar a marcha do rio qualquer coisa em coro dá cá um secâo das Antígonas, como diria Esquilo (Jorge Bretão, sic).
Eu estou daqui a ver o meu amigo e colega blogueur João Tunes (blog Agualisa6.blogs.sapo.pt: um diário exercício de inteligência e cidadania) a fazer uma careta a esta coimbrice, que tem um pequeno mérito: os factos narrados são verdadeiros ou quase. E de certo modo, relata o melhor e o pior desse nosso estouvado tempo.

Vai esta para algumas leitoras recentes (há que apaparicar a clientela senão ela foge): Gazolina, por ser de Coimbra, Milu Assis por ter lá estado e continuar irónica e inteligente, Ni porque pediu mais folhetim e Joëlle porque é a primeira francesa que me lê. Salut J.
A gravura é a da vera ponte do rio Kwai, que deu um fime com Alec Guiness, Jack Hawkins e William Holden, realizado por David Lean

2 comentários:

Gasolina disse...

Adorei (voltar a)passear por estas ruas. E que bela companhia!
Adorei o texto. Como sempre.
Recordei o filme.
E agora faço dois pequenos reparos: sou "cliente"recente, identificada; e não nasci em Coimbra.
(mas bem que podería ter nascido, pois se cheguei lá ao colo, anos 60...)
Parece-me a mim que V.Exa. estará a ser vitima dos papparazi...até o tropa, imagine-se!

:~D

Um abraço, 2 beijos.

PS. Obrigado pela nota de rodapé, quanta honraria!

carteiro disse...

fabulosa a sua memória de Coimbra, MCR! Eu, que passei por lá bastante mais tarde e que vivi a coisa com muita intensidade, já não me lembro de tantas coisas. Talvez me lembre de outras, mas menos interessantes.