(...) "Permitam-me que expresse aqui a minha indignação pelos processos infames que certos órgãos de comunicação social usam para conseguirem os seus objectivos torpíssimos, nomeadamente certos “tablóides”, particularmente o “24 Horas”.
Nunca pensei que se pudesse ir tão longe na perversidade e na hediondez. Eu já podia ter aprendido, uma vez que tenho alguma experiência nesta matéria, mas que querem? Também por causa dessa minha mania de que é preciso não ter medo dos meios de comunicação social (embora, aqui, o designativo “meios de comunicação social” seja um eufemismo), acabei por aceitar a solicitação de jornalistas, ou assim ditos, que, por telemóvel, me pediram para explicar a razão do abaixamento da pena neste caso de abuso sexual de crianças. Quando pensava que estava a esclarecê-los, estava era a ser indecentemente instrumentalizado para outros fins absolutamente repelentes.
No dia seguinte, sem que me tivesse sido comunicado previamente que tencionavam dar forma de entrevista à conversa, chaparam no jornal com uma grosseira montagem, em que puseram na minha boca afirmações que eu nunca fiz – afirmações aberrantes e idiotas, com ressaibos porno e gozos acanalhados, inclusive manipulando uma fotografia minha, de há muitos anos atrás, que arranjaram abusivamente, não sei por que processos, mas que eu calculo de onde provirá, porque estou lembrado de umas fotografias que tirei há anos no JN, por entre computadores e mesas de trabalho da Redacção, com o fim de escolherem uma para personalizar as crónicas que comecei a escrever regularmente para aquele jornal. Uma fotografia completamente destoante no tempo, no lugar e no modo, cuja inserção no dito tablóide – o “24 Horas” – com aquele enquadramento, não visava senão o meu achincalhamento. Não é verdade que pareço que estou a rir-me alarvemente daquelas palavras idiotas que me são atribuídas?
Confesso: nunca pensei que a pulhice desta comunicação social menosprezasse de forma tão ostensiva e criminosa todos os limites do decoro, da boa-fé, da deontologia profissional e da vivência comunitária. É para que conste e para que todos os meus leitores se ponham a recato em situações idênticas.
No que me diz respeito, o mal está feito, e bem o tenho sentido na quantidade de abordagens de que também sou alvo. Há muita gente que me conhece pela fotografia e de escrever durante anos a fio no JN, e nem quer acreditar no que viu no “24 Horas”. Mas já que o mal está feito, vou levar o caso até às últimas consequências. O que lamento é que haja uma quantidade de peritos (juristas, psicólogos, pedopediatras, sexólogos encartados) que se disponham sempre (eles vivem disso, do protagonismo na comunicação social) a darem um arzinho da sua graça, muito conspícuos, muito doutores, muito senhores dos seus ridículos papéis, sem, afinal, saberem o que estão discutir. Estamos no país-do-faz-de-conta."
03 junho 2007
Discurso directo
do Juiz Conselheiro Artur Costa, no Sine Die , a propósito, designadamente, disto.
Marcadores: justiça e comunicação social, kamikaze (L.P.)
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9 comentários:
O Cons. Artur Costa tem a minha total solidariedade neste episódio infecto.
Mas o caso alerta também para a necessidade de preparação específica dos magistrados que tenham que lidar com os media ou para a conveniência de esses contactos serem efectuados com o apoio profissional de assessores de imprensa.
No paradigma actual, a formação e a experiência de vida de um magistrado - ainda que dos mais notáveis - dificilmente o habilitarão a fazer passar uma mensagem não deturpável, em declarações - de evidente alto risco - a um tablóide com o posicionamento do "24 Horas".
A solução para retirar o poder que a comunicação social hoje dispõe passa por utilizar instrumentos que lhe diminuem ou retirem esse poder. Como fazê-lo se é preciso passar a mensagem? Hoje a maior parte das instituições públicas dispõem de sítios na Net onde podem colocar a mensagem que pretendem passar. Basta colocar aí o essencial, com mais ou menos pormenor. Estas mensagens apenas dirão o que o seu emissor pretende que digam. Ficam escritas e poderão ser utilizadas por toda a comunicação social para fazerem as respectivas notícias. O que nunca poderão é descontextualizar ou construir factos a partir de um texto escrito, objectivo e a que todos têm acesso.
Se em vez de conferências de imprensa e declarações avulsas utilizassem os respectivos sítios como ferramenta de comunicação, muito do ruído e das confusões que a comunicação social tem alimentado, que muitas vezes escondem o essencial, não teriam acontecido.
A Associação sindical dos Juízes, creio que já sob a batuta da actual direcção, começou a trilhar já o caminho preconizado pelo JSC.
Mesmo a propósito:
Entrevista de Rogério Alves, Bastonário da OA:
Tem estado a ser muito discutido um acórdão do Supremo que diminui a pena a um abusador de um jovem de 13 anos. Parece-lhe que o escândalo que se criou se justifica?
Creio que é muito útil que se discutam as decisões dos tribunais. As pessoas aceitam-nas tanto mais quanto as compreendam. Durante muitos anos, a discussão dessas decisões estava muito reservada aos juristas e às revistas técnicas da especialidade. A mediatização da justiça transportou para o público a discussão. É natural que uma frase ou outra possam causar mais comoção. Mas é fundamental dizer que só devíamos discutir os acórdãos dos tribunais depois de os lermos... E é muito costume discutir-se acórdãos por dois ou três extractos. Além disso, acho que se podem discutir acórdãos sem se entrar numa espécie de histeria, que foi um pouco o que sucedeu neste caso. O crime de abuso sexual de menores é sempre um crime gravíssimo e repugnante. E o tribunal, apesar de ter diminuído a pena, não disse em momento algum que tinha de se contemporizar com o crime, que é o que por vezes parecia resultar da discussão.
O caso teve a particularidade muito incomum de se ter visto um juiz do Supremo a justificar um acórdão que assinou. O que, aliás, pode vir a ser considerado uma quebra do dever de reserva pelo Conselho Superior de Magistratura. Como vê esta atitude do juiz?
Parece-me bem, saudável. Muitas regras da justiça portuguesa estão fora do tempo e do mundo. Se toda a gente está a discutir uma coisa, não pode ser o gerador da coisa que fica fora da discussão. Claro que podemos questionar se deve ser o próprio magistrado a fazê-lo ou deve haver outra fórmula. É preciso encontrar formas de pôr a justiça a comunicar. Os juízes não estavam habituados a comunicar, nem bem nem mal. Proferiam decisões. Mas hoje abre-se a TV e o A e o B estão a comentar decisões judiciais. E isso impeliu um pouco os tribunais a virem explicar-se. Isso parece-me positivo. O problema é que as formas como isso é feito têm geometria variável.
Muito variável... O Conselho Superior de Magistratura (CSM) não tem gabinete de imprensa, os tribunais também não... A comunicação faz-se por várias vias e muitas vezes ínvias.
O CSM deveria claramente ter um gabinete de imprensa a funcionar eficazmente, que pudesse esclarecer qualquer dúvida em casos de debate público. Porque é impressionante a quantidade de imprecisões que se dizem sobre os casos judiciais. É fundamental que se possa esclarecer antes de se instalar a confusão. E se talvez não se justifique um gabinete de Imprensa em cada tribunal, com certeza que o Supremo e as Relações deveriam tê-los. Para que o debate, o questionamento das decisões, seja esclarecido e permita fazer avançar a jurisprudência.
Acha que é isso que se tem passado?
Acho que uma maior abertura e permeabilidade entre o mundo judiciário e outros mundos... Tem de ouvir as opiniões exteriores.
E as interiores. Tem havido juízes a criticar sentenças que levam processos disciplinares por esse facto. O que parece dar a ideia de que existe um acantonamento corporativo das instituições que representam os juízes...
Pode acontecer, e tem acontecido haver esse tipo de processos... Mas creio que se tem evoluído nessa matéria. Agora o que é preciso também é adaptar o sistema para acabar com este divórcio entre os cidadãos e a justiça. Os juízes achavam que estavam numa torre de marfim, e agora já não há torre de marfim. Mas creio que os magistrados são, em regra, julgados com enorme injustiça. Os juízes julgam muito melhor do que são julgados.
Ainda a propósito da geometria variável da forma como a Justiça comunica, no caso Madeleine assistimos a conferências de Imprensa quase diárias da Polícia Judiciária, divulgação do retrato robô de um suspeito... Como vê esta forma de as instituições se moldarem às exigências mediáticas?
Em primeiro lugar, revela uma coisa: a força absolutamente arrasadora, abrasiva e imparável da comunicação social. É uma força brutal, de ciclone. E ninguém consegue ser-lhe indiferente. O que é que se criticava à PJ? Não dizer nada das investigações. E então a polícia alterou um pouco a sua conduta, e passou a ter um porta-voz.
Bom, não é verdade que a PJ não costume dizer nada sobre as investigações. O que se passa é que a informação passa por certos canais, sem transparência, e muitas vezes sem garantias de rigor.
Sim, as coisas chegam por fugas cirúrgicas. Claro que prefiro a fórmula oficial, em que a polícia, se é do interesse público, deve pronunciar-se, respeitando obviamente o que não deve ser divulgado. Sou aliás um crítico acérrimo do segredo de justiça, que, tal como está formatado, é uma coisa absolutamente imprópria, que caiu no ridículo nacional e é um símbolo do achincalhamento das instituições, porque parece que só existe para ser violado. Claro que há casos em que se justifica. O problema é que se aplica nesses e nos outros todos. O segredo de justiça só serve para duas coisas: proteger a qualidade da investigação e a identidade das pessoas. Mais nada.
Precisamente, no caso Madeleine a identidade dos suspeitos não só não foi protegida como foi exposta de forma que o representante da secção de Direitos Humanos da OA, Carlos Pinto de Abreu, considerou inaceitável.
Compreendo a posição de Carlos Pinto de Abreu.
Mas não sei se, malgrado os custos incríveis para o visado, era evitável a divulgação da imagem do suspeito. Isso não deve servir para desculpabilizar ninguém, mas há situações em que a viabilidade prática dessa protecção é nenhuma.
A comunicação mais frontal por parte da PJ aconteceu desta vez mas nada garante que seja a regra daqui por diante.
Esperemos que o precedente não seja fechado. A nossa justiça não tem mostrado jeito para as relações públicas. Espero que os casos recentes a façam perceber que deve comunicar oficialmente, de rosto descoberto, com a população. O que evitaria muitas confusões e muitas calúnias.
LER MAIS no DN on line
Relativamente a esta sentença confesso que me deixei arrastar por uma leitura apressada das notícias. Não consigo ter uma opinião completamente formada neste momento. Não deixo no entanto de pensar que a decisão funcionou como um sinal negativo para a sociedade.
A questão da comunicação social, sendo uma questão central na nossa sociedade, deve ser objecto de tratamento particular nas organizações, sejam elas de que tipo for. A justiça, sendo tão apetitosa para a comunicação social tem que saber defender-se, por um lado, e ser transparente, por outro. Com os meios próprios e profissionalizados.
Não se penalize "o meu olhar"... um juiz desembargador, de resto já com um processo disciplinar em curso por alegada violação estatutária - comentários na "praça pública" sobre decisões de colegas - escreve hoje no Correio da Manhã, num contexto de onde se retira que parte do princípio que o que leu em certos jornais corresponde a declarações do relator do Acórdão comentado:
"É arrepiante ouvir dizer, nos media, que o menor abusado teve prazer e que ninguém tem ejaculações à força."
Não obstante, objectividade oblige, o mesmo juiz diz também algo que me parece merecedor de atenção:
"Estas afirmações vão ao arrepio do que nos ensinam as ciências médicas. É preciso distinguir as funções mecânicas das funções psicológicas. Prazer com violência psicológica gera angústia e depressão na vítima. O prazer não afasta a brutalidade do abuso sexual. Não se deve confundir manifestação fisiológica de prazer com a emoção do sentimento do prazer. Trata-se de uma tentativa de homicídio psicológico que mata uma parte muito íntima da criança, seja ela um menor de cinco, seis ou 13 anos."
Com todo o respeito, admiração e amizade que me merece o Magistrado em causa, gostava de dizer o seguinte:
Quantas pessoas haverão neste país a sentirem-se injustiçadas pela forma como foram tratadas por jornalistas?!...
Será que alguém pode arrogar-se no direito de ter o privilégio de não sofrer duma má interpretação jornalística?!...
Noticiar, comentar, etc. é dar uma interpretação. Os conflitos de interpretação são inerentes à liberdade de escrever ou pensar.
No meu entender, estes conflitos resolvem-se com o direito à resposta e não com restrições que acabam sempre por cair na censura.
Penso mesmo que um conflito de interpretação traz uma grande vantagem: obriga a que erros sejam corrigidos. Hoje, o “Público”, na segunda página trata a questão, em comentário, de uma forma que pode ajudar a compreender que não há ninguém com a sabedoria toda e quem julga (pelas consequências, por vezes terríveis, do seu acto) tem de ter isto bem presente. Os antigos, associavam a humildade á verdade.
A propósito, talvez seja de ler o oportuno post de Catarina de Albuquerque, intitulado "Sexo, Crianças e Tribunais", no: http: //www.causa-nossa.blogspot.com/
Todos os que são"achincalhados" pela comunicação social têm direito a reagir, para além do direito de resposta.
è um ponto. Uma verdade incontestável.
Todos os Juízes devem ter uma preparação para além da técnica.
E todos os Juízes, mal ou bem decidem em consciência
E todos têm o direito de ter uma opinião sobre todos os assuntos.
E todos têm o direito de a manifestar livremente.
Sem ferir a liberdade e os direitos dos outros.
É só esse direito que Todos queremos ver reconhecido.
Será que me fiz entender ou está um pouco confuso?
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