11 julho 2007

Estes dias que passam 69


A imaginação nunca ultrapassa a realidade

De quando em quando, escrevo aqui umas balivérnias que leitoras condescendentes interpretam como frutos da minha imaginação. E, de facto, sob um fundo pesado de realidade lá vou vaporizando as minhas peças de alguma imaginação.
Hoje, todavia, renuncio de todo em todo à cavalgada imaginadora das minhas “pequenas células cinzentas”, como diria o inestimável Hercule Poirot. E se falo no belga filho da imaginação da senhora Christie é porque o tema de hoje lembra um mistério desses difíceis com que a velha dama nos divertia. É, na verdade, um mistério a boa imprensa de que gozam, entre nós, alguns países, ou melhor os governos de alguns países espalhados por essas vastas geografias de medo e infâmia.
Comecemos pela Venezuela, hoje dirigida por um antigo putchista da direita mais militarona e reaccionária. De facto o senhor Chavez, o arauto de uma rocambolesca revolução bolivariana, começou a sua discutível carreira de estadista, tentando levar a cabo um desditoso golpe nos anos 90 contra o presidente legal Carlos Andrés Pérez. A jogada deu para o torto, ele terá feito quase dois anos de prisão suave e, para espanto dos que ainda se espantam, conseguiu ganhar as eleições presidenciais em 98. Depois tem sido reeleito. E com margens importantes, há que dizê-lo. O dinheiro do petróleo (cujos preços estão desde há muito em alta) redistribuído em parte pelos mais pobres, pelos militares (ai não!) tem disfarçado a ausência de política e de clareza no discurso populista de Chavez. A América do Sul tem visto outros aprendizes de ditador, tem assistido ao corte crescente das liberdades, ao cantonamento das oposições (cuja inteligência política é inversamente proporcional ao amor ao poder e aos seus mais evidentes frutos) e à lenta edificação de um estado policial. Cá pelo burgo parece que alguém terá achado que Chavez é o Messias da esquerda. A idade não perdoa, é o que é. Genericamente os europeus vão dialogando com Chavez tanto mais que o seu petróleo é menos incerto que o da península arábica. Depois quando acordarem será tarde.
Não abandonemos este desamparado continente sem referir uma vez mais a infâmia que se representa nas florestas colombianas onde um partido “revolucionário” detém umas centenas de reféns. Desta vez há notícia da morte de uma série de políticos colombianos, que alegadamente terão sido vítimas das tropas governamentais. Digamos para já que, a ser verdade a autoria da tropa governamental, sempre haverá uma certeza: os reféns serviram de escudos humanos. Todavia não é difícil imaginar que estas mortes se reduzem a meros assassínios de futuros opositores das FARC se e quando estas forem um partido político legal.
Um passeio agora por África, mais precisamente por um país que, custa dizê-lo registava ainda há uns dez, doze anos, alguns índices de prosperidade: o Zimbabwe. Convirá esclarecer algum leitor desatento que, desta banda, nunca se louvou o senhor Ian Smith um dos aliados racistas de um Portugal antigo que não para de renascer. O senhor Smith conseguira todavia criar um país com uma sólida economia agro-industrial, nas mãos dos brancos evidentemente. Os negros faziam de paisagem, de boys, de trabalhadores agrícolas como é costume. A estrutura económica que passou intacta para as mãos rapaces de Mugabe pospunha a manutenção das grandes fazendas, mesmo se nacionalizadas. A sua divisão arruinou os trabalhadores agrícolas das antigas fazendas, destruiu a exportação, substituindo-lhe uma economia de subsistência que nem isso chega a ser. O Zimbabwe tem fome. Fome como nunca teve num passado recente e infame. E tem uma ditadura que deve fazer empalidecer de inveja o velho Ian Smith hoje exilado no Cabo. Mugabe vai liquidando metodicamente os opositores políticos, negros desta vez, enquanto o pais soçobra no caos. A Europa torce-lhe o nariz mas os africanos recusam-se a condená-lo. E convenhamos que os ingleses também não o molestam demasiadamente. Ao que parece os mortos actuais já não comovem as consciências democráticas como há anos. A diferença deve ser esta: agora são os negros que matam os outros negros. Logo está tudo bem. Não há colonialismo.
Daqui até à Líbia vai um salto. Por cima do Darfur e do seu imenso desastre. Curiosamente, o meu primeiro sogro, Jorge Delgado ofereceu-me ainda nos anos 60 uma brochura sobre o Darfur, comprada na “Joie de Lire” do François Maspero. Um escândalo que dura vai para cinquenta anos já o não é. O que me admira é que ainda aí haja gente para morrer. Os pretos têm a pele dura, dizia-me um amigo também negro, angolano, assassinado pelos nitistas, em Angola. Teve sorte: provavelmente o MPLA também lhe trataria da saúde, mais tarde.
E a Líbia? Pois a Líbia é o que sempre foi: Kadafi um iluminado sentado em cima do petróleo (que tanta falta faz) continua a sua “revolução verde” (esta gentinha adora falar de revolução!) e faz-se rogar pelos ocidentais. Desta feita é um processo kafkiano que me traz este personagem à caneta. Meia dúzia de enfermeiras búlgaras e um médico palestiniano acusados de inocularem vírus mortais a umas centenas de crianças líbias, viram confirmadas pelo Supremo Tribunal as penas de morte. Agora, dizem os nossos jornais, resta apelar a Kadafi. O que vai ser feito, obviamente. Ou seja a campanha de branqueamento do cavalheiro entra numa fase superior, como se dizia nos velhos tempos de “análise concreta da situação concreta”. Vai uma apostinha em como ainda veremos Kadafi ser recebido como benfeitor da humanidade em Bruxelas?
Ou em Varsóvia, já agora e para terminar. Eu confesso que nada tenho contra os polacos, bem pelo contrario, adoro Chopin e fui principescamente recebido pelos meus amigos de Varsóvia quando, in illo tempore, fui visitar uns colegas do Direito Comparado. Detestei a atmosfera política, o medo, a pobreza, o desespero dos meus amigos, tanto quanto apreciei a gentileza deles, a cultura, a amizade demonstrada e a dignidade de um povo que não se submetia.
Que esse povo seja agora governado por uma parelha de gémeos abaixo de qualquer classificação é coisa que me consegue ainda espantar. É que a coligação que governa a Polónia e que ostenta aquelas duas criaturas à frente do Estado e do Governo não é sequer conservadora, mas retintamente reaccionária. Eu nem falo da homofobia, coisa que ainda conseguiria vagamente perceber dada a profunda religiosidade polaca que além do mais é um factor de unidade nacional e lhes permitiu sobreviver ao período soviético. Isto não significa que não condene as perseguições de rua e legais à minoria sexual, claro. Não consigo entender as leis sobre as provas de cidadania reiteradas à caça de antigos polícias, de colaboradores do antigo regime, de gente que se calou ou que não se manifestou (como se isso fosse possível!...). Actualmente o ambiente tem piorado: os gémeos não só se recusam a aplicar fartas doses de legislação comunitária como entendem chantagear a Europa, desenvolver uma campanha inaudita contra a Alemanha e tentar obter para o seu país (que entretanto assinou com uma mão distraída os tratados que agora alegremente pretende modificar a seu favor) condições de privilégio que nada fundamenta. Os manos Kakzinsky conseguiram o impossível: nomearam uma senhora mediadora para os direitos da infância cuja primeira missão foi despistar “a publicidade subliminal da homossexualidade nuns bonecos infantis – os teletubbies – porque um usava um saco vagamente feminino...
Uma Europa onde esta gente tem entrada não é só triste. É ridícula.
Espero que ao escrever isto num blog não esteja a infringir uma regra de ouro inventada por uma senhora Secretária de Estado que entende que o humor (aqui dolorosamente em falta, mas enfim...) sobre personalidades fica bem em casa, eventualmente numa rua escusa, na praia (se deserta) ou num campo de concentração. Esperemos que os blogs hoje tão na mira dos zelotas e dos filisteus entrem nessas categorias de inocência confirmada.

a gravura: será preciso explicar?

1 comentário:

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Assim vai (mal) o mundo.