16 agosto 2007

Diário Político 62


Foi assim há tanto tempo? Não tinha dado por isso...

Pois se não dei, devia ter dado, que já não atravesso uma piscina debaixo de água, já não visto calças nº 40 de cintura, já não corro mais de cinquenta metros sem me cansar. O tempo, eterno sedutor, finge que não passa e nós, de tão habituados ao espelho, não conseguimos ver o velho nesse rosto sempre igual que nos olha, irónico e triste, mesmo á nossa frente.
Tudo isto porque, subitamente, descubro que Elvis Presley morreu há 30 anos. Isto das efemérides tem muito que se lhe diga. Em boa verdade, Elvis, morrera muito antes, dez, doze, quinze anos antes. De facto, em 62 ou 65, como queiram ele já criara todas as belíssimas canções que conhecemos. E que canções! Dispenso-me de fornecer aqui essa longa e gozosa litania porque Elvis tinha o toque de Midas. Vivi esses anos atormentado. Encantavam-me aquelas canções ( e não só as dele. Os meus últimos anos de liceu foram preenchidos por Bill Haley, Little Richard, Jerry Lee Lewis, Gene Vincent, Chuck Berry, Fat’s Domino, eddie Crochram, Platters, four Tops, Buddy Holly e dois cavalheiros estranhos a este universo, ou não tanto: Harry Belafonte e Nat King Cole. Desculpem a lista mas eu tinha esta dívida por pagar. A eles, aos meus amigos e à minha juventude). entretanto diziam-me, um bom revolucionário não liga a essas ninharias, a música americana e particularmente o rock é um produto do capitalismo e destina-se a fazer esquecer a consciência de classe, a urgencia da revolução e mais um par de patacoadas do mesmo género. Daí o meu desconcerto.
Os discos ainda eram em 45 rotações, lado A (o bom) lado B (assim, assim). E nem todos traziam duas canções em cada lado. No Colégio dos Carvalhos, uma prisão educacional igual a outras tantas, um dos nossos colegas tinha um gira-discos (um luxo) e não passava uma semana sem comprar um disco, às vezes dois (uma blasfémia capitalista num tempo em que o dinheiro estava contado para o tabaco, o cinema de domingo e pouco mais). Chamávamos-lhe o “Discóbulo”, num misto de inveja e espanto. Ele não se importava mas antes de dar a ouvir a preciosidade comprada, ouvia-a sozinho um par de vezes, para a decorar. Estava no seu direito de pernada. Ao fim e ao cabo fora ele que ardera com os cacaus para comprar mais esse disco.
Cinquenta anos depois, vejo-o distintamente, o Discóbulo, alourado, cara de pássaro, cabelo cuidadosamente abrilhantinhado e ligeiramente comprido a imitar sei lá que cantor.
Mas tudo isto vem a propósito do maior, do King, de Elvis. Deixemo-nos de coisas. O homem mudou, não o mundo, mas isso ninguém muda, mas muito, muito do que éramos, aqui, à beira mar plantados, pasmados, fartos de Fado de futebol e de Fátima, por muito que isto desgoste algum leitor menos generoso. O rock começou a nossa revolução e nisso incluo não só a música mas também as letras. Muitas delas serão ingénuas, repetitivas mas basta fazer o sacrifício de comparar o que se cantava à volta com os do rock e estes últimos parecem Bach.
E, último apontamento, última homenagem: Elvis trouxe a música negra, o gospel, o primeiro soul e sobretudo o rhythm’n’blues para o palco da América. Fez mais pela causa do anti-racismo que vinte leis anteriores. Deu uma boleia a muitos grandes criadores negros, tornou-os visíveis, eles que como bem dizia Ralph Ellison, constituíam o “Invisible Man”, livro grandioso que me abriu insuspeitos horizontes para já não falar dos autores que na esteira dele li. Mas isso fica para outra história.
Agosto acaba por ser um mês de múltiplas efemérides. Relembremos apenas que Woodstock se celebrou justamente no meio do mês e deu, também ele o bilhete de identidade definitivo à grande música popular americana. Já sei que me virão falar de Monterey dois anos antes (em Junho-Julho dessa vez). Convém porém dizer que se bem que importante e inaugural foi ainda um encontro minoritário (pese embora a aparição da Janis Joplin ou de Otis Redding para não citar Hendrix ou os Mamas and Papas).
Nesta onda mansa de efemérides relembre-se que a União Indiana se tornou independente neste mesmo mês mas em 48 e que ainda por lá tem uns centos de milhões de mulheres e homens à espera da independência, e que as bombas atómicas fizeram a sua aparição sempre em Agosto mas de 45. Afinal naquele tempo a silly season não era assim tão silly.

Terminemos com uma lembrança: hoje 16 de Agosto cumprem-se 2.000 dias de prisão de Ingrid Betancourt, senadora e candidata à presidência da Colômbia. Haja alguém que me explique qual a utilidade revolucionária do acto canalha desse grupo grotesco e gangsterizado que dá por FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

1 comentário:

josé disse...

Mais uma vez, um texto delicioso. Não se arranja uma imagem do Discóbolo?
Deve andar por aí à solta, na net.