Longa deriva para o centro
Eu sou um antigo e orgulhoso leitor de Salgari (Emílio) e de Verne (Júlio). Isto assim dito não tem qualquer importância nem significado especial excepto se vocês aí desse lado do ecrã me aceitarem como pessoa de certa imaginação. Imaginação temperada por mil aventuras de que os dois autores, por cá tão estupidamente esquecidos (porque nem se imagina o número de sites a eles dedicados por essa internet fora) foram, aceitarão inexcedíveis por muito Harry Potter que por aí ande a mostrar habilidades. Verne e Salgari nunca recorreram a artes mágicas para fazer os seus heróis vencerem as adversidades. Pelo contrario puseram em cena gente normal mas teimosa, destemida mas prudente que com paciência, bom senso e alguma ciência enfrentavam e venciam os desafios com que se deparavam.
Como já disse estes autores caíram numa certa obscuridade neste risonho país, ainda que eu saiba, por experiência própria, quão disputadas são as suas obras no chamado mercado alfarrabista. Sinal que os verno-salgarianos andam por aí como o nunca assaz lamentado dr. Santana Lopes, o inventor da política bola de sabão.
Mas a que vem tudo isto, esta divagação por autores que os nossos políticos lamentavelmente ignoram, como aliás suponho que ignorarão Marx ou Tocqueville, Bobbio ou Montesquieu ou, mais nacionalmente, o falecido Dr. Oliveira Salazar, pessoa detestável mas que deixou algumas pistas interessantes sobre o anestesiamento dos cidadãos e o valor da propaganda na imagem dos regimes?
Ora tudo isto vem dessa frase de somenos pronunciada pelo senhor Primeiro Ministro sobre o que é a essência do P.S. (ou pelo menos do PS que ele governa com mão de ferro e luva de veludo), S.ª Ex.ª deixou cair sem escândalo dos seus correligionários, ou se o houve não teve pública manifestação, que o partido era de centro-esquerda.
Convenhamos: ninguém se admirou muito, se é que, sequer, em algum cérebro mais confuso, algum laivo de surpresa perpassou. A acção governamental tem-se pautado por um principio simples e prático do ponto de vista de ocupação do espaço do poder: o governo tem feito o que a direita tentou mas não soube fazer. Ou receou fazer temendo que a confundissem com o finado (?) Estado Novo. Ou seja, o PS governa à direita retirando o tapete ao pobre dr. Marques Mendes que a nada é poupado. Roubam-lhe o parco programa, ocupam-lhe o território e deixam-no mu e inerme à mercê do dr Meneses, o tal que se celebrizou por ser contra os elitistas, sulistas e não sei que mais. Com essa frase de que chorosamente se arrependeu, mal sabia o dr. Meneses que ela o projectaria para a luz forte dos holofotes da opinião pública que viu nele, ligeiramente remodelado, um daqueles brigadeiros que Eça descrevia numa polémica com Pinheiro Chagas. A partir desse momento o dr. Meneses deixou de precisar de ideias, de que de resto não há sinal no que vai debitando. Ficou com uma fama de político que é contra os políticos e com isso, apenas com isso, ameaça o dr. Mendes. E corre o risco de ganhar. Teríamos assim na direita, no centro direita, se faz favor, uma anti-Sócrates à medida, com a mesma falta de ideias mas aureolado com o prestígio que, desde sempre, Portugal tributa a este género de criaturas que põem na ordem os senhores, os elitistas, os licenciados das grandes universidades, os “bem educados”, os “bem nascidos”, enfim os oriundos do “establishment”.
Porque é isso, no fundo, o que Sócrates anuncia com o tal “centro-esquerda” a que vota o PS, partido que ainda há bem pouco tinha no Estatutos umas referências (inócuas e para inglês ver) ao marxismo e à luta de classes. Sócrates veio dizer, preto no branco, o que, desde há muito (desde a sua eleição pelo menos, dentro do PS), era mais que visível. O PS é um partido de centro-esquerda, ou seja uma espécie de ala esquerda do centrão cinzento que boa parte dos seus actuais militantes quer. A bem dizer estes esforçados cavalheiros que enchem por estas alturas as secções e federações do PS sempre entenderam que boa parte das palavras de ordem antigas eram meras balivérnias que podendo servir para ganhar eleições não serviam de modo algum como bússola para a acção política. Direi mesmo mais, fosse Sócrates o primeiro ministro em vez de Barroso e também ele teria ficado na fotografia dos Açores com o casal Bush-Blair e o menino das alianças Aznar.
Temos pois a confirmação oficial da deriva do partido do dr. Sócrates. Oficial repito porque oficiosamente a coisa vinha de bem mais longe, por muita margem esquerda e outras ilusões que iam vegetando dentro do partido. A linha maioritária, e aqui a palavra maioritário deverá significar uma fortíssima percentagem que não dará à esquerda sequer os 16% que a candidatura Alegre obteve na ultima pugna intra-partidária, há muito que vinha defendendo o recentramento do partido ainda que isso torne inútil o qualificativo “socialista” como de há muito se mostrou inútil o “social democrata” do PPD ou o CDS do PP.
A nau Portugal vai vogando para o no man’s land da desideologia em nome do pragmatismo, da realpolitik e do combate aos abusos e desvios revolucionários. Mesmo se esses abusos já só forem uma mera lembrança, mastigada por vinte anos de normalização, por mais um par de anos de união europeia. E pela desqualificação acentuada das organizações putativamente á esquerda do partido socialista. Também delas só resta uma vaga recordação. O partido comunista enquistou-se numa tristonha e defensiva hagiologia de Álvaro Cunhal, o último bolchevique, e o chamado bloco de esquerda, tem tão pouco de bloco como de esquerda: basta ver a ânsia com que se coligou em Lisboa e a pobreza das propostas que apresenta. É folclórico, provavelmente anti milho transgénico e socialmente fracturante mesmo que isso diga pouco ou nada aos “trabalhadores” portugueses. É mesmo, a nível de direcção política visível, outro símbolo de uma certa elite que desde sempre se associou à detenção do poder.
Neste teatro de sombras que é a política nacional, a frase de Sócrates tem pelo menos um mérito: indica um caminho. Não o caminho futuro mas o caminho já feito. Daqui para a frente tudo é possível, por exemplo vir a ser o partido centro-central.
E não se preocupem os que pensam o mundo como algo em que há horror ao vazio. Em Portugal é perfeitamente possível haver centro, direita e até extrema direita sem necessidade de esquerda. Nalguma coisa havíamos de ser originais.
PS: no “Manifesto” diz-se de entrada que um fantasma aterroriza a Europa: o fantasma do comunismo. Ora aqui está uma coisa em que Marx e Engels tiveram razão: o comunismo (que não era o que depois Lenin e os seus amigos dele fizeram, convém dizer), e com ele o socialismo e a esquerda começam cada vez mais a ser meros ectoplasmas. Pelo menos em Portugal, país de que Marx, pelo que me lembro, não fala. Mal ele sabia que, exactamente cento e sessenta anos depois do Manifesto, este, pelo menos nesta parte, seria tão profético...em Portugal.
d'Oliveira
(que jura a pés juntos não ser proletário nem nada que se pareça nem membro de qualquer associação política, religiosa ou social. E que ao nome de Marx também responde Groucho. Mas nem sempre.
Eu sou um antigo e orgulhoso leitor de Salgari (Emílio) e de Verne (Júlio). Isto assim dito não tem qualquer importância nem significado especial excepto se vocês aí desse lado do ecrã me aceitarem como pessoa de certa imaginação. Imaginação temperada por mil aventuras de que os dois autores, por cá tão estupidamente esquecidos (porque nem se imagina o número de sites a eles dedicados por essa internet fora) foram, aceitarão inexcedíveis por muito Harry Potter que por aí ande a mostrar habilidades. Verne e Salgari nunca recorreram a artes mágicas para fazer os seus heróis vencerem as adversidades. Pelo contrario puseram em cena gente normal mas teimosa, destemida mas prudente que com paciência, bom senso e alguma ciência enfrentavam e venciam os desafios com que se deparavam.
Como já disse estes autores caíram numa certa obscuridade neste risonho país, ainda que eu saiba, por experiência própria, quão disputadas são as suas obras no chamado mercado alfarrabista. Sinal que os verno-salgarianos andam por aí como o nunca assaz lamentado dr. Santana Lopes, o inventor da política bola de sabão.
Mas a que vem tudo isto, esta divagação por autores que os nossos políticos lamentavelmente ignoram, como aliás suponho que ignorarão Marx ou Tocqueville, Bobbio ou Montesquieu ou, mais nacionalmente, o falecido Dr. Oliveira Salazar, pessoa detestável mas que deixou algumas pistas interessantes sobre o anestesiamento dos cidadãos e o valor da propaganda na imagem dos regimes?
Ora tudo isto vem dessa frase de somenos pronunciada pelo senhor Primeiro Ministro sobre o que é a essência do P.S. (ou pelo menos do PS que ele governa com mão de ferro e luva de veludo), S.ª Ex.ª deixou cair sem escândalo dos seus correligionários, ou se o houve não teve pública manifestação, que o partido era de centro-esquerda.
Convenhamos: ninguém se admirou muito, se é que, sequer, em algum cérebro mais confuso, algum laivo de surpresa perpassou. A acção governamental tem-se pautado por um principio simples e prático do ponto de vista de ocupação do espaço do poder: o governo tem feito o que a direita tentou mas não soube fazer. Ou receou fazer temendo que a confundissem com o finado (?) Estado Novo. Ou seja, o PS governa à direita retirando o tapete ao pobre dr. Marques Mendes que a nada é poupado. Roubam-lhe o parco programa, ocupam-lhe o território e deixam-no mu e inerme à mercê do dr Meneses, o tal que se celebrizou por ser contra os elitistas, sulistas e não sei que mais. Com essa frase de que chorosamente se arrependeu, mal sabia o dr. Meneses que ela o projectaria para a luz forte dos holofotes da opinião pública que viu nele, ligeiramente remodelado, um daqueles brigadeiros que Eça descrevia numa polémica com Pinheiro Chagas. A partir desse momento o dr. Meneses deixou de precisar de ideias, de que de resto não há sinal no que vai debitando. Ficou com uma fama de político que é contra os políticos e com isso, apenas com isso, ameaça o dr. Mendes. E corre o risco de ganhar. Teríamos assim na direita, no centro direita, se faz favor, uma anti-Sócrates à medida, com a mesma falta de ideias mas aureolado com o prestígio que, desde sempre, Portugal tributa a este género de criaturas que põem na ordem os senhores, os elitistas, os licenciados das grandes universidades, os “bem educados”, os “bem nascidos”, enfim os oriundos do “establishment”.
Porque é isso, no fundo, o que Sócrates anuncia com o tal “centro-esquerda” a que vota o PS, partido que ainda há bem pouco tinha no Estatutos umas referências (inócuas e para inglês ver) ao marxismo e à luta de classes. Sócrates veio dizer, preto no branco, o que, desde há muito (desde a sua eleição pelo menos, dentro do PS), era mais que visível. O PS é um partido de centro-esquerda, ou seja uma espécie de ala esquerda do centrão cinzento que boa parte dos seus actuais militantes quer. A bem dizer estes esforçados cavalheiros que enchem por estas alturas as secções e federações do PS sempre entenderam que boa parte das palavras de ordem antigas eram meras balivérnias que podendo servir para ganhar eleições não serviam de modo algum como bússola para a acção política. Direi mesmo mais, fosse Sócrates o primeiro ministro em vez de Barroso e também ele teria ficado na fotografia dos Açores com o casal Bush-Blair e o menino das alianças Aznar.
Temos pois a confirmação oficial da deriva do partido do dr. Sócrates. Oficial repito porque oficiosamente a coisa vinha de bem mais longe, por muita margem esquerda e outras ilusões que iam vegetando dentro do partido. A linha maioritária, e aqui a palavra maioritário deverá significar uma fortíssima percentagem que não dará à esquerda sequer os 16% que a candidatura Alegre obteve na ultima pugna intra-partidária, há muito que vinha defendendo o recentramento do partido ainda que isso torne inútil o qualificativo “socialista” como de há muito se mostrou inútil o “social democrata” do PPD ou o CDS do PP.
A nau Portugal vai vogando para o no man’s land da desideologia em nome do pragmatismo, da realpolitik e do combate aos abusos e desvios revolucionários. Mesmo se esses abusos já só forem uma mera lembrança, mastigada por vinte anos de normalização, por mais um par de anos de união europeia. E pela desqualificação acentuada das organizações putativamente á esquerda do partido socialista. Também delas só resta uma vaga recordação. O partido comunista enquistou-se numa tristonha e defensiva hagiologia de Álvaro Cunhal, o último bolchevique, e o chamado bloco de esquerda, tem tão pouco de bloco como de esquerda: basta ver a ânsia com que se coligou em Lisboa e a pobreza das propostas que apresenta. É folclórico, provavelmente anti milho transgénico e socialmente fracturante mesmo que isso diga pouco ou nada aos “trabalhadores” portugueses. É mesmo, a nível de direcção política visível, outro símbolo de uma certa elite que desde sempre se associou à detenção do poder.
Neste teatro de sombras que é a política nacional, a frase de Sócrates tem pelo menos um mérito: indica um caminho. Não o caminho futuro mas o caminho já feito. Daqui para a frente tudo é possível, por exemplo vir a ser o partido centro-central.
E não se preocupem os que pensam o mundo como algo em que há horror ao vazio. Em Portugal é perfeitamente possível haver centro, direita e até extrema direita sem necessidade de esquerda. Nalguma coisa havíamos de ser originais.
PS: no “Manifesto” diz-se de entrada que um fantasma aterroriza a Europa: o fantasma do comunismo. Ora aqui está uma coisa em que Marx e Engels tiveram razão: o comunismo (que não era o que depois Lenin e os seus amigos dele fizeram, convém dizer), e com ele o socialismo e a esquerda começam cada vez mais a ser meros ectoplasmas. Pelo menos em Portugal, país de que Marx, pelo que me lembro, não fala. Mal ele sabia que, exactamente cento e sessenta anos depois do Manifesto, este, pelo menos nesta parte, seria tão profético...em Portugal.
d'Oliveira
(que jura a pés juntos não ser proletário nem nada que se pareça nem membro de qualquer associação política, religiosa ou social. E que ao nome de Marx também responde Groucho. Mas nem sempre.
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