Poucas coisas são novas debaixo da roda do sol
Eu não sei se a nossa memória é curta porque não poderíamos viver com a notícia contínua e esmagadora das desgraças presentes e passadas ou se, pura e simplesmente, nos estamos nas tintas para o que se passa à nossa volta ou, à volta da nossa volta.
Digo isto porque dois dos assuntos que têm prendido a atenção dos cidadãos e dos jornais, ou vice-versa, são o Darfur e a Birmânia. Ora vejamos:
O problema do Darfur vem praticamente desde os inícios da descolonização do Sudão Anglo-egípcio. Se sob a férula conjunta dos ingleses e do Quediva o Sudão parecia amortecido e os antigos rebeldes do Mahdi domados, a verdade é que nunca fora resolvido o problema do sul cristão ou animista e negro em oposição ao norte muçulmano e profundamente arabizado. A independência não só trouxe qualquer solução para o problema étnico, religioso e político mas é até bastante provável que os tenha aumentado exponencialmente. Nos finais de sessenta já havia notícia duma Frente de Libertação do Darfur e sucediam-se os recontros cada vez mais sangrentos entre sulistas e nortistas. Esse problema portanto existiu desde que existe uma República do Sudão. A passagem dos anos e a islamização forçada e radical do país, imposta por Cartum só agravou a situação. O Sudão é um Estado em guerra civil larvar permanente. Nem sequer se pode dizer que agora morre mais gente de fome de doença ou de balas. A única diferença é a publicidade que se dá à situação. E o facto de os media se terem desenvolvido e democratizado ao ponto de qualquer deslocação de populações, qualquer conflito aberto ter hoje muito mais visibilidade.
Também é verdade que hoje em dia, a comunidade internacional e a opinião pública aceitam com muito maior facilidade a “ingerência” nos problemas internos de um país. E isso reflecte-se na súbita dimensão da tragédia do Darfur. Que já fora precedida por tragédias semelhantes no Chade ou na Republica Centro Africana. Com menores dimensões, sem dúvida, mas com causas conexas e actores não muito diferentes. Seria fácil dizer que se trata de problemas herdados da época colonial. Mas também são. Não vale a pena fingir que antes estava tudo bem e que agora está tudo mal “porque eles nem se sabem governar". Deixámos em quase toda a África uma herança pesada e um vírus temível: as fronteiras artificiais. Felizmente aquele pitoresco bispo moçambicano de que aí em baixo se fala não se lembrou disto. Ou achou conveniente não se lembrar. As estruturas políticas post-coloniais e a intangibilidade das fronteiras foram em seu tempo denunciadas por muito boa gente (e entre todos relembro René Dumont) logo que as independências começaram a cair em catadupa. E o mito teve tal força que só agora, depois da separação da ex-checoslováquia ou do desastre balcânico no território da antiga Jugoslávia, é que nos começamos a aperceber da complexidade da coisa. Tarde e com demasiados mortos.
A Birmânia, que até já deu um Secretario Geral à ONU, parecia ser um pais sossegado e sem história. Uma população maioritariamente budista e uma tradição de auto-governo estimulado pelos ingleses do vizinho Raj pareciam fazer antever um futuro sem grandes problemas. Todavia a realidade teve mais força e um punhado de generais apoderou-se do país. E apoderou-se porque alguém, por comissão ou omissão, os deixou à solta. Parece que não convinha uma Birmânia neutral. Isto da neutralidade naquela zona do globo era um descaramento sobretudo quando vigorava a ideia do “containment” do comunismo e estava viva e bem viva a recordação da guerra da Coreia e os desastres muito próximos do Vietnam.
Poucos se comoveram com o golpe militar. Menos ainda com a palhaçada semântica da mudança de nome do país. Ou com a transferência da capital. Rangun, para a generalagem, era demasiado cosmopolita e tinha demasiados (maus) hábitos democráticos.
Menos gente ainda se impressionou com a selvática repressão da minoria Karen, que ainda hoje alimenta focos de guerrilha nos confins birmaneses. O status quo dos militares não foi posto em causa durante muito tempo. Demasiado. Agora é o que se vê. Estão os generais mais agressivos? Estará a população mais revoltada? Ou estaremos, apenas e outra vez, a sofrer os efeitos da nova visibilidade que os recentes meios de comunicação propiciam?
Seja como for, ainda bem que alguém se lembrou de começar a olhar para este país e este povo à mercê dum bando de gangsters fardados e corruptos até à moela. A pergunta seguinte é esta: se, de facto a China defende os generais e por consequência ofende os birmaneses e a as nossas boas consciências, que medidas estaremos dispostos a tomar para fazer recuar a China e propiciar assim a queda da junta?
Vamos boicotar os jogos olímpicos, como em tempos não muito longínquos foi tentado por altura da olimpíada de Moscovo? Vamos impor sanções comerciais à China?
Porque “essa treta” de cortar investimentos na Birmânia é apenas uma cortina de fumo. Tirante o gás natural são escassos os capitais ocidentais por lá. E mesmo que de lá saíssem os nossos parcos investidores, isso pouco se reflectiria na (desgraçada) situação birmanesa. Eles já são pobres e provavelmente nunca viram um ceitil do dinheiro pago pelas empresas estrangeiras. Outro bolsos mais fundos e melhor armados terão apanhado os rendimentos. Provavelmente estes estarão até a dormir num banco suíço, do Liechtenstein ou dessas ilhas paradisíacas das Caraíbas menos conhecidas mas igualmente ricas.
E já agora, a mãozinha que armou os generais, deixa-se ficar ou oferece-se uma luva ao seu possuidor?
a ilustração: batalha entre tropas do Mahdi e ingleses (Abu Klea, 1895)
Eu não sei se a nossa memória é curta porque não poderíamos viver com a notícia contínua e esmagadora das desgraças presentes e passadas ou se, pura e simplesmente, nos estamos nas tintas para o que se passa à nossa volta ou, à volta da nossa volta.
Digo isto porque dois dos assuntos que têm prendido a atenção dos cidadãos e dos jornais, ou vice-versa, são o Darfur e a Birmânia. Ora vejamos:
O problema do Darfur vem praticamente desde os inícios da descolonização do Sudão Anglo-egípcio. Se sob a férula conjunta dos ingleses e do Quediva o Sudão parecia amortecido e os antigos rebeldes do Mahdi domados, a verdade é que nunca fora resolvido o problema do sul cristão ou animista e negro em oposição ao norte muçulmano e profundamente arabizado. A independência não só trouxe qualquer solução para o problema étnico, religioso e político mas é até bastante provável que os tenha aumentado exponencialmente. Nos finais de sessenta já havia notícia duma Frente de Libertação do Darfur e sucediam-se os recontros cada vez mais sangrentos entre sulistas e nortistas. Esse problema portanto existiu desde que existe uma República do Sudão. A passagem dos anos e a islamização forçada e radical do país, imposta por Cartum só agravou a situação. O Sudão é um Estado em guerra civil larvar permanente. Nem sequer se pode dizer que agora morre mais gente de fome de doença ou de balas. A única diferença é a publicidade que se dá à situação. E o facto de os media se terem desenvolvido e democratizado ao ponto de qualquer deslocação de populações, qualquer conflito aberto ter hoje muito mais visibilidade.
Também é verdade que hoje em dia, a comunidade internacional e a opinião pública aceitam com muito maior facilidade a “ingerência” nos problemas internos de um país. E isso reflecte-se na súbita dimensão da tragédia do Darfur. Que já fora precedida por tragédias semelhantes no Chade ou na Republica Centro Africana. Com menores dimensões, sem dúvida, mas com causas conexas e actores não muito diferentes. Seria fácil dizer que se trata de problemas herdados da época colonial. Mas também são. Não vale a pena fingir que antes estava tudo bem e que agora está tudo mal “porque eles nem se sabem governar". Deixámos em quase toda a África uma herança pesada e um vírus temível: as fronteiras artificiais. Felizmente aquele pitoresco bispo moçambicano de que aí em baixo se fala não se lembrou disto. Ou achou conveniente não se lembrar. As estruturas políticas post-coloniais e a intangibilidade das fronteiras foram em seu tempo denunciadas por muito boa gente (e entre todos relembro René Dumont) logo que as independências começaram a cair em catadupa. E o mito teve tal força que só agora, depois da separação da ex-checoslováquia ou do desastre balcânico no território da antiga Jugoslávia, é que nos começamos a aperceber da complexidade da coisa. Tarde e com demasiados mortos.
A Birmânia, que até já deu um Secretario Geral à ONU, parecia ser um pais sossegado e sem história. Uma população maioritariamente budista e uma tradição de auto-governo estimulado pelos ingleses do vizinho Raj pareciam fazer antever um futuro sem grandes problemas. Todavia a realidade teve mais força e um punhado de generais apoderou-se do país. E apoderou-se porque alguém, por comissão ou omissão, os deixou à solta. Parece que não convinha uma Birmânia neutral. Isto da neutralidade naquela zona do globo era um descaramento sobretudo quando vigorava a ideia do “containment” do comunismo e estava viva e bem viva a recordação da guerra da Coreia e os desastres muito próximos do Vietnam.
Poucos se comoveram com o golpe militar. Menos ainda com a palhaçada semântica da mudança de nome do país. Ou com a transferência da capital. Rangun, para a generalagem, era demasiado cosmopolita e tinha demasiados (maus) hábitos democráticos.
Menos gente ainda se impressionou com a selvática repressão da minoria Karen, que ainda hoje alimenta focos de guerrilha nos confins birmaneses. O status quo dos militares não foi posto em causa durante muito tempo. Demasiado. Agora é o que se vê. Estão os generais mais agressivos? Estará a população mais revoltada? Ou estaremos, apenas e outra vez, a sofrer os efeitos da nova visibilidade que os recentes meios de comunicação propiciam?
Seja como for, ainda bem que alguém se lembrou de começar a olhar para este país e este povo à mercê dum bando de gangsters fardados e corruptos até à moela. A pergunta seguinte é esta: se, de facto a China defende os generais e por consequência ofende os birmaneses e a as nossas boas consciências, que medidas estaremos dispostos a tomar para fazer recuar a China e propiciar assim a queda da junta?
Vamos boicotar os jogos olímpicos, como em tempos não muito longínquos foi tentado por altura da olimpíada de Moscovo? Vamos impor sanções comerciais à China?
Porque “essa treta” de cortar investimentos na Birmânia é apenas uma cortina de fumo. Tirante o gás natural são escassos os capitais ocidentais por lá. E mesmo que de lá saíssem os nossos parcos investidores, isso pouco se reflectiria na (desgraçada) situação birmanesa. Eles já são pobres e provavelmente nunca viram um ceitil do dinheiro pago pelas empresas estrangeiras. Outro bolsos mais fundos e melhor armados terão apanhado os rendimentos. Provavelmente estes estarão até a dormir num banco suíço, do Liechtenstein ou dessas ilhas paradisíacas das Caraíbas menos conhecidas mas igualmente ricas.
E já agora, a mãozinha que armou os generais, deixa-se ficar ou oferece-se uma luva ao seu possuidor?
3 comentários:
O mundo anda cego. E os seus donos só veêm euros, dólars e petróleo.
O resto só interessa se servir de carne para canhão!
O Mundo é um facetado espelho onde nos revemos magnificamente favorecidos...outras vezes, não.
Abraço
Paulo
Cada vez acredito mais que o que caracteriza os tempos actuais é ter-se a “memoria curta” e o estar-se “nas tintas para o que se passa à nossa volta”. Acontecimentos como os que descreve e outros igualmente antigos e chocantes, acontecem demasiado longe da nossa porta, de tal modo que apenas recebemos breves notícias a darem uma pálida ideia da desgraça que se abate sobre essas gentes, mas a realidade de que falam fica bem longínquo.
Não há dúvida que os dias de hoje se caracterizam por uma profunda hipocrisia sócio-política, com a qual, todos nós, de uma forma ou de outra, acabamos por pactuar e legitimar, mesmo que seja pela inacção.
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