18 outubro 2007

Au Bonheur des Dames 94



Carta aberta à malta daquele tempo

Isto de uma pessoa desatar a escrever aos seus amigos e companheiros de há quarenta e tal anos, por muito que se desculpe com a importância do tema, parece um tanto ou quanto balofo, serôdio, tonto, para não dizer coisa pior. Todavia, insisto. O caso é sério, pelo menos para (e eu a dar-lhe...) todos os que viveram os anos de vinho e rosas, de chumbo e nevoeiro, raio de mistura, que ocorreram por Coimbra entre sessenta e setenta.
Uma prevenção: estes anos não terão sido melhores nem piores do que tantos outros. Foram contudo os que nos couberam, a nós, os amigos e colegas do Adriano Correia de Oliveira, pretexto desta escrita. Dele e de mais uns tantos, é claro, mas vamos deixar a coisa só nele, por economia e porque convém, tantos anos depois (o Adriano há-de ter morrido há vinte e cinco, mais ano, menos ano) fazer justiça.
É que, a propósito deste redondo aniversário da morte, desencadearam-se por aí um par de manifestações que parecendo sinceras e homenageantes podem, nalgum caso, encobrir um par de malfeitorias.
E o caso é que uma organização (nem vale a pena citá-la, et pour cause) a que o Adriano deu muito, se é que não deu tudo, que o tratou nos últimos anos da vida como um pestífero, negando-lhe o pão e a salvação, entendeu agora numa pirueta (em mais uma pirueta) dialéctica, repescar os ossos do cadáver, organizar-lhe um funeral atrasado e triunfal, como se as lágrimas de crocodilo de hoje lavassem a porcaria que ainda ontem lhe atiraram para cima.
Convém dizer a esses urubus que ainda há quem se lembre e quem se indigne do que se passou e da abusiva beatificação que agora encenam. O Adriano não é Santinha da Ladeira, nem nós os lorpas do costume dispostos a comer gato por lebre com a desculpa de que se homenageia um amigo.
É por isso que se deve saudar a edição da obra completa do Adriano, mesmo correndo o risco, assaz inócuo, diga-se de passagem, de fazer propaganda a um jornal diário. É por isso que se deve, já, mandar um abraço ao Niza mais velho, o de Medicina, o músico, como se dizia naquele tempo, por ter escrito os textos que acompanham as cantigas do Adriano.
É por isso, companheiros e amigos, daquela Coimbra, a preto e branco, a sair esforçadamente, duma década cinzentona, a re-inventar a liberdade e a alegria, é por isso que entendo ser de saudar esta re-edição da obra do Adriano que aqui no bairro foi um ver se te avias: mais discos houvesse mais teriam sido vendidos num ápice. É verdade que alguns de nós se encarregaram de avisar os restantes. Provavelmente estes avisaram outros nesse boca a boca que funciona melhor do que as inspecções do ministério do interior, perdão, da administração interna, como é que me deu para lhe chamar do interior, isso era no tempo da outra senhora, por alturas da nossa mocidade que bem sentiu nos costados jovens e imprudentes a cachaporra da polícia. Agora felizmente eles batem menos, quase nada, limitam-se a ir aqui e ali, uma fábrica ou um sindicato, só para pedir à malta “maneiras” e uns papelitos para ler enquanto estão de plantão lá na esquadra. Eu disse pedir e não exigir. A nossa polícia democrática obedece a chefes democratas e não anda por aí a assustar o pagode. Nem os seus chefes deixariam. Sabe-se, bem sabido, que estas excelsas criaturas preferem arrostar com mil manifestações ululantes e insultuosas a impedir a “festa da democracia”.
Lá me perdi eu, outra vez, é a velhice, não há volta a dar-lhe, eu só aqui vinha para falar do Adriano e, já agora, do António Portugal, vocês, companheiros e amigos daqueles anos alucinados, sabem de quem falo, o Portugal que tocava guitarra e que musicou poemas do Alegre, outro que também devem ter conhecido, quem é que o não conhecia com aquele vozeirão nas Assembleias Magnas, mas este ainda está vivo portanto não conta na nossa saudade, em vez dele falemos do Bretão, lá da Terceira, um dos que introduziu os cantares açorianos, se calhar até ensinou algum ao Adriano. E poderia prosseguir assim, com tantos outros nomes, que a nossa geração já anda há muito a pagar o tributo à da gadanha, e é por isso que Vos escrevo, companheiros e amigos, aproveitemos esta “gentil maré” para festejar o Adriano e o mesmo é dizer festejarmo-nos a nós todos que fomos amigos dele, que sempre lhe falámos e o estimámos e por isso podemos agora rir e recordá-lo como ele merece.
Com alegria, muita. E orgulho q.b.

Na fotografia, Luísa Feijó, Adriano e o cronista a comerem um croquete (1964, Figueira da Foz, digressão do CITAC com a peça “A nossa cidade” de Thornton Wilder, encenação de Jacinto Ramos)
A

12 comentários:

o sibilo da serpente disse...

Gostava, meu caro, de ter estas histórias e de saber contá-las assim. Quanto ao mais, gosto muito de ouvir Adriano Correia da Oliveira.

M.C.R. disse...

Meu caro JM,

Você nem vai acreditar mas garanto-lhe, a fé de quem sou, que na forte multidão dos meus destinatários, V. constava também. Para isso bastou relembrar o delicioso jantar em casa da Guilhermina e do Joaquim e as suas histórias, mais recentes, claro, mas enformadas pelo mesmo espírito da velha frátria coimbrã.
Um abraço portanto

josé disse...

Como sabe, um dos meus cavalos de batalha, porventura o alazão mais folgado e resistente, é o que luta contra a ideia de Esquerda que tomou conta não só do discurso político, mas principalmente do cultural e social.
É uma tese que empiricamente tenho vindo a desenvolver e a enchouriçar de argumentos até que se possa degustar como convém: defumada e com gosto a leve picante de pimenta da índia.

Isso, porém, não me distrai da extraordinária importãncia que concedo a estes artistas, com A grande, da música e da letra conjugadas para fazerem canções de brilho fantástico.
A voz de Adriano Correia de Oliveira, era realmente um portento e as músicas do tal José Niza que V. conhece e devia contar mais histórias acerca de, são também de alto gabarito.

Já escrevi que José Niza devia ser mais conhecido e divulgado o que foi fazendo pela música popular portuguesa, principalmente pela popularucha porque até aí, a qualidade é ornamento.

Quanto ao relato pessoal, continua impagável e a imagem da moça que hoje deve ser uma respeitável senhora, permite-me dizer que tinha muito, mas muito bom gosto, meu caro- em se fazer assim acompanhar, claro. ( e que a visada não leve a mal porque o cumprimento é genuíno e de bom tom).

M.C.R. disse...

A moça caro José era muito mais bonita em pessoa do que aqui se revela. É uma grande, uma enorme amiga minha e, na altura, namoriscava o Adriano. Eu só estou de pau de cabeleira...
É de facto agora uma avó de dois impagaveis meninos que, para os de cá de casa, é como se fossem sobrinhos-netos. Eu, aliás sou amigo dos Feijó, a cpmeçar pelo Rui, um grande senhor, que foi o primeiro delegado regional de cultura no Norte. Mais do que isso é um intelectual respeitado e foi um excelente crítico literário nos primeiros anos da Vértice. O resto da familia afina mais ou menos pelo mesmo tom e são, "da família"se isso se pode dizer. V. uma vez perguntou-me se o Alvaro Feijó era alguma coisa ao António Feijó, autor das Bailatas e e estátua em Ponte de Lima. Claro. É tudo da mesma fornada. Esse António poeta e diplomata de grande qualidade é tio do Álvaro e do Rui que são irmãos e a Luisa é filha deste último e irmã de um outro Rui (Graça) Feijó de quem hoje vou apresentar um livro bem interessante. Como vê o mundo é pequeno...

quanto à esquerda dominante na cultura isso eventualmente deveu-se ao facto de durante os anos sombrios esta ser um refúgio de muitos, vedada que lhes estava a política... mas a gente fala-se... um dia destes sobre isso.

O meu olhar disse...

MCR, obrigada pelas palavras relativas ao jantar. Já agora gostava de lhe dizer que podia ter sido melhor ao nível do repasto. Eu fiquei um pouco preocupada com a vossa visita e a vontade de agradar fez-me querer fazer várias coisa e, quando assim acontece, vira um pouco confusão. Outras oportunidades mais tranquilas virão certamente.
Quanto à conversa depois do jantar só posso dizer que adorei. Adorei é o termo certo. As histórias foram muitas e cada uma mais interessante que a outra. Então as suas, as do Carteiro e as do Mocho Atento foram impagáveis!
Um abraço

o sibilo da serpente disse...

Bem, reconheçamos que o jantar foi fraquinho, ao ponto de, a seguir, termos ido todos comer uma francesinha. Mas, enfim, eu sei que O Meu Olhar não deixará de rectificar e que para a próxima será melhor. Sim, porque eu posso garantir, que apesar do primeiro falhanço, estamos dispostos a dar uma nova oportunidade :-)

Olhe, caríssima, mesmo que tivesse sido assim - e definitivamente não foi - teria sempre valido pelo convívio. Mesmo quando é certo que não estava nos meus melhores dias.

o sibilo da serpente disse...

Coimbra, meu caro Marcelo, marcou quase todos os que por lá passaram. Por motivos diferentes, é certo, porque também os tempos, as motivações e as prioridades se vão modificando. Obrigado por ter-se lembrado de mim, quando escreveu. Ah, e V. está igualzinho ao que era :-)

M.C.R. disse...

Carteiro!

(boa malha!) sobre aquela fotografiapassaram quarenta e três anos e vinte cinco quilos!

Meu olhar: eu achei óptimo aquele jantar. E não serve dizer que sendo da praia de buarcos, eu gosto de sardinhas. Gosto, claro.
Mas aqui (ali) juntaram-se ás sardinhas. umas belas entradas, um bom vinho, uma roda fe amigos alegres e bem dispostos, um gato folgazão, um casal de hospedeiros como já não há, tudo isto numa noite cálida de veraõ, num jardim que mete inveja. enfim foi uma noite como Deus manda. Poderá pedir-se mais?
Haverá melhor?

O meu olhar disse...

MCR e Carteiro, vocês são uns verdadeiros cavalheiros. Gostei das vossas palavras.
Um abraço

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Subscrevo o que os outros comensais disseram sobre o jantar numa bela noite de Julho. A modéstia da anfitriã não está de acordo com o excelente convívio que nos proporcionou.

JSC disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
O meu olhar disse...

Olá Jcp. Aquele foi o meu sentimento. Ainda bem que não é o vosso. Fico contente.
Um abraço