31 outubro 2007

Estes dias que passam 82


Os “indígenas”

Mais dia menos dia tinha que acontecer. As boas almas ocidentais choram baba e ranho sobre as desgraças do terceiro mundo e, particularmente, África. Choram que se desunham mas esquecem, com a mesma candura, a meiguice com que olham os tiranos e tiranetes (estava a lembrar-me desse cavalheiro Mugabe que fará o favor de nos visitar proximamente e que será recebido com as honras que não foram prestadas ao Dalai Lama, enfim uma mão não tem de saber o que faz a outra mas, que diabo, a desvergonha tem limites...) a quem acarinham, a quem vendem armas, a quem escondem os tesouros nos bancos de cá et j’en passe.
As ONG multiplicaram-se como coelhos. Há ONG para tudo numa profusão tal que, às vezes, um cristão confunde-se com tanta generosidade à solta. Depois vais-se a ver e há umas ONG mais ong que as outras. Ele é os seus dirigentes bem pagos (coitados, abandonaram tudo para se dedicar ao amor pelo próximo...), os métodos nem sempre escorreitos, a intervenção por vezes desastrada, e nem vale a pena prosseguir.
Desta feita foi uma Arca de Zoe que lançou o olho cúpido sobre o desgraçado Darfur (para quem não me tenha lido com atenção, o Darfur, repito agora, dura desde os anos sessenta. Digamos que já vai na terceira geração de combates, de misérias, de latrocínios e violações, de mortes. Lá a excepção é a vida, mesmo curta.) e entendeu dever salvar um milhar de órfãos dos desastres da guerra. Por acaso nem o Chade nem o Sudão aceitam que cidadãos seus de menor idade possam ser alvo de adopção. Por acaso a ARCA em causa disse, por interpostos responsáveis, que se estava nas tintas para estas leis provavelmente “celeradas”. Disse igualmente que os fins justificavam os meios. E não me venham com fosquinhas que eu vi e ouvi com estes e estas que me hão-de acompanhar até á cova.
Vai-se a ver e os órfãos não vinham da zona de guerra. E também não eram órfãos. Mas eram pretinhos e pequenos, o que já é um princípio. E já tinham à espera deles uns centos de putativos adoptantes, brancos, ricos e sem filhos. A Europa agora está cheia de casais estéreis ou será que preferem um produto mais colorido e já nascido e desmamado?
E esses casais ou alguns deles já tinham até adiantado uns milhares de euros para as despesas da ONG... A generosidade e o altruísmo estão pela hora da morte!
E agora o Chade num ataque de mau humor e ingratidão quer julgar estes abnegados missionários laicos! Mas o mundo está de pernas para o ar! Então agora os antropófagos, os selvagens, os “indígenas” ousam levantar a pata imunda contra quem os ensinou a comer (quando comem) com garfo, contra quem lhes revelou a história gloriosa dos “nossos antepassados os gauleses”?
A França, num primeiro tempo, reconheceu que a ONG em causa era um pouco expedita, um pouco extravagante, um pouco “estranha”. Parece até que o Quai d’Orsay preveniu o governo chadiano e a própria embaixada de que achava a Arca um pouco “heterodoxa”. Mas, ao mesmo tempo, e isso disse-se hoje no parlamento francês, foi em aviões fretados pelo governo francês que os funcionários da ong apareceram no Chade.
Entretanto, depois do sentimento de vergonha vem um outro mais escondido, et pour cause, mais clandestino, menos confessável. Não seria melhor repatriar os da ong e julgá-los em França?, perguntam agora. É que, provavelmente no Chade não há juízes, procuradores, prisões, tribunais, sei lá, dignos de receber cidadãos europeus, caucasianos, arianos, o que se queira, enfim não pretos.
O mundo está cheio de histórias sórdidas como esta. Não foi a primeira e não será a última. Mas podiam pelo menos poupar-nos ao insuportável espectáculo da bondade que se exporta para os confins de um deserto onde só há fome, pretos e calor.

6 comentários:

Luís Bonifácio disse...

Lá foram os descontos no IRS

JSC disse...

As ONG são cada vez mais uma forma de organização económica, que capta recursos de privados bem intencionados, que obtém financiamentos de entidades públicas e que em alguns casos até servirão para lavagem de dinheiro e outras coisas menos aconselháveis.

Como é que aparece uma ONG? Basta que um grupo de amigos se decidam a formar uma associaçãozinha, vão a um notário e publicam no diário da república os estatutos (basta 1/4 de página). A partir daí podem iniciar a sua actividade de bem-fazer. Podem começar a dar emprego a familiares, amigos e até a imputarem umas despesas próprias para a contabilidade da sua Associação. Em alguns casos até pode ser uma forma de criar o próprio emprego, sem necessidade de fazer qualquer investimento.

O Presidente da Associação até pode vir ser designado Comendador, passa a ter assento em todos os actos oficiais da paróquia e assim sucessivamente. A probabilidade de serem fiscalizados, por quem quer que seja, é próxima de zero, a não ser que deixem algum sinal menos recomendável ou tenham azar, como parece ter sido o caso daquela ONG.

Note-se que aprecio o trabalho de muitas dessas organizações, nacionais e estrangeiras. Contudo, o que é demais é moléstia e começa a haver ONG.s a mais. De qualquer modo há muito que passei a ver estas organizações mais como unidades económicas, que deveriam ser tratadas como tal, do que como instituições de inspiração humanista, ainda que esta tenha sido a sua génese. Mas isso foi há muito, muito tempo.

Kamikaze (L.P.) disse...

Brilhante post, excelentes(s) comentário(s).

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Completamente de acordo com MCR e com JSC. Também eu olho com crescente desconfiança para os propósitos humanitários de muitas ONG's e outras agências que ocupam a cena mediática.

Silvia Chueire disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Silvia Chueire disse...

Aqui estamos às voltas com o mesmo problema.
É uma pena as coisas terem se desvirtuado assim, porque há ONGs que fazem um fantástico trabalho e há muitos anos.

Abraços,

Silvia