08 outubro 2007

Estes dias que passam 79



Outubro, mês de castanhas ao lume


Uma piedosa hagiografia laica (?) teima em chamar “Revolução de Outubro” à de Novembro. De facto foi em Novembro que os bolcheviques (maioritários no Partido Operário Social-Democrata Russo e minoritários no conjunto das forças revolucionárias) assaltaram o Palácio de Inverno e destruíram os frágeis mas prometedores equilíbrios duma eventual democracia russa. Assim, a secas, que já basta de titubeios envergonhados quanto a esta data. Um punhado de bolcheviques (“maioritários” na terminologia especial do labirinto da esquerda russa) chefiados por Vladimir Ilicht Ulianov, “Lenin” (o homem do Lena) fez tábua rasa de anteriores acordos e liquidou a revolução. No seu seio, há que dizê-lo, duas vozes foram contra o golpe de mão: Kamenev e Zinoviev. Praticamente denunciaram a conspiração, alto e bom som. Esse “crime”, esquecido durante alguns anos, viria a ser brandido mais tarde quando ambos foram liquidados por Stalin (um pouco) e pela máquina trituradora e infernal do centralismo democrático (muito), lido de viés. Tudo isto e muito mais se pode ler até em John Reed, primeiro biógrafo piedoso da “revolução de Outubro ” (“Dez dias que abalaram o mundo”). E, obviamente em centenas de historiadores bem mais sérios mas indiscutivelmente menos entusiastas do que Reed. Historiadores marxistas, entenda-se. Não é preciso recorrer aos fundibulários da direita “russo-branca” ou aos “chiens de garde” do costume. Isto para não falar nos testemunhos de actores directos da revolução, que os há, dos assassinados (que os há e muitos) membros dirigentes do “PCR (b)” - partido comunista russo (bolchevique)”- um dos primeiros nomes do PCUS, e de mais uma infinidade de autores que só começaram a ver a luz do dia já em plena decomposição da esclerótica URSS, nos anos 70 e seguintes.
Hoje em dia, anda por aí muito lampeirinho a bater no peito e a protestar virtuosamente que não sabia de nada. Mentira: sabia-se de tudo desde os anos 30, desde, por exemplo, o admirável “Retour de URSS” de Gide esse incensado autor que caiu em desgraça logo que aplicou à realidade “soviética” (nome blasfemo) o mesmo olhar que aplicara ao Congo (“Retour du Congo”).
O golpe de mão bolchevique, a luta sem tréguas que se lhe sucedeu, a liquidação sistemática das oposições de esquerda, ou situadas também na esquerda, são normalmente esquecidas por não terem o mesmo carácter heróico da batalha contra os “brancos” e contra a estúpida e miserável intervenção estrangeira que em muito beneficiou os bolcheviques. Primeiro porque a guerra por estes travada contra os invasores capitalistas uniu (como é costume naquelas partes do mundo onde o patriotismo pan-russo nunca foi palavra vã) opositores. Depois porque, os “brancos” se distinguiram (e não era fácil numa guerra que assumiu foros de crueldade incomparáveis) pela repressão cega dos adversários, pela violência sem precedentes contra as populações e por uma absoluta incapacidade de apresentar uma alternativa política aos “revolucionários. Aliás, a “intervenção” (que nunca teve militarmente pernas para andar) conseguiu ainda federar ou mesmo unir, em diferentes países europeus (França, Alemanha e Bélgica, nomeadamente) as diferentes componentes dos ricos e multifacetados partidos socialistas que esqueceram divergências para salvar a revolução que, depois da publicação das 21 Condições de adesão à Internacional Comunista (3ª Internacional), se sabiam condenados ou ao desaparecimento ou à cega obediência ao Bureau da Internacional, isto é aos bolcheviques russos e seus apoiantes.
O que depois foi sucedendo, desde a revolta dos marinheiros de Cronstadt até à ilegalização progressiva dos partidos de esquerda, à domesticação dos sindicatos, à limpeza feita dentro dos “sovietes” (em nome dos quais “Outubro” se fizera mas contra os quais na realidade se fez) em tempos de Lenin (convém não esquecer que o ilustre embalsamado da Praça Vermelha foi, com o entusiástico apoio dos seus companheiros de Trotstky a Stalin sem esquecer Bukarine ou qualquer outro “filho querido do partido”, o dirigente reconhecido da revolução até ao momento em que caiu gravemente doente e se mudou para Gorky. Provavelmente nem todas as ordens, instruções, conselhos ou opiniões que a partir desse momento se lhe atribuem serão já dele que comunicava apenas através de gestos as mais das vezes traduzidos por Krupskaya. Isto não significa, todavia, que haja dois Lenin: um antes da doença que o prostrou e outro durante e até à morte. Os textos de seu punho, as actas das sessões do comité de governo, as memorias de dezenas de próximos colaboradores, são unânimes. A deriva leninista do marxismo começou com ele e Stalin apenas a retomou em tom mais brutal. Mera diferença de quantidade mas nunca de qualidade. E disso mesmo tiveram consciência os socialistas de esquerda quando se revoltaram, como antes se tinham revoltado com o mesmo trágico resultado outros opositores. A politica de concentração de todo o poder no partido comunista, favoreceu as continuas purgas dos anos trinta. A brutalidade da campanha contra o campesinato, transferindo-o para a cidade, proletarizando-o, não só deu origem a uma nova classe de trabalhadores mais dóceis mas também – e sobretudo mais despolitizados. A despolitização nos circuitos do operariado mais evoluído ocorreu sobretudo porque foi este o estrato que mais mortos deu à defesa da causa na guerra civil e onde também se foram buscar os melhores dirigentes sindicais, os lideres naturais, que se viram investidos de missões políticas que os puseram de uma vez por todas em situações diferentes ou antagónicas com a massa trabalhadora. Tudo isto ocorre ainda com Lenin. Não se tenta aqui escamotear o desastre dos anos negros de afirmação do stalinismo, a hecatombe absoluta de dirigentes políticos bolcheviques, de heróis da revolução ( e por todos as centenas de oficiais aniquilados em vésperas da invasão alemã, quando já era visível a ameaça nazi), de intelectuais, de quadros do partido. Todavia, mesmo que possa parecer provocatória a tese, tudo isso, já se vinha enformando nos anos trágicos de 17 a 23. Em 23, a teoria da revolução num só país, poderia não estar proclamada abertamente mas anunciava-se subtilmente em todas as políticas desenvolvidas pela IC. Tratava-se de salvaguardar a “pátria dos trabalhadores” criando nos países burgueses, partidos comunistas, bolchevizados, com secções secretas de inspiração revolucionária, tendo por missão infiltrar os sindicatos, combater os socialistas (da 2ª internacional - considerados os piores inimigos da revolução! - ) tudo isto dentro da famosa estratégia “Klasse gegen Klasse” de funestos efeitos.
Quando mais tarde, e inspirada sobretudo pelos intelectuais e políticos dos “países burgueses” se passou para as frentes amplas contra o perigo fascista, já era tarde. E mesmo nessa altura, convirá não esquecer que, onde foi preciso, os agentes do Comintern estiveram na primeira linha de combate aos “traidores” fossem eles anarquistas ou do POUM espanhol por muitos erros que estes tivessem (e provavelmente tinham) cometido.
Falar na “Revolução de Outubro”, a tal que para Marx era impensável num país politica e socialmente atrasado como a Rússia, é de facto falar no mais profundo golpe que foi vibrado à causa do socialismo, a causa, aliás, de Marx e de Engels se porventura for necessário referi-los. E não deixa de ser pitorescamente exemplar relembrar que na cisão de Tours (congresso constitutivo do partido comunista francês – SFIC - ) o inimigo mais apontado pelos russos e pela sua quinta coluna francesa era nem mais nem menos do que Jean Longuet, neto de Marx e reconhecido dirigente da SFIO. Et pour cause...


Na gravura: Jean Longuet: dirigente destacado da SFIO, opôs-se à guerra - ala pacifista - mas votou os créditos de guerra - opôs-se à entrada na IC, jornalista e político de grande qualidade, defensor dos refugiados anti-fascistas e animador de todas as frentes contra o fascismo. Morreu em 1938.

Este texto é dedicado à memória de Jorge Delgado ("Sergio" na clandestinidade) com quem durante os seus últimos meses de vida discuti esta questão. Na altura, convém dizê-lo, J.D. entendia que não se devia assacar a a Lenin todas as responsabilidades da deriva totalitária do PCUS. Estou absolutamente convicto que, hoje, estaria de acordo comigo. J.D. era, como já aqui referi, um leitor empedernido de tudo o que dissesse respeito à aventura da extrema esquerda no século passado. E isso me basta para pensar que teria chegado a estas mesmas conclusões.

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