16 novembro 2007

Au Bonheur des Dames 98


Complexos de esquerda.

Anda toda a gente a arrear pazada na esquerda. Não na esquerda estilo Sócrates, coitada, que essa, de tão dessorada, já há muito que deixou de ter conotação fosse com o que fosse. De resto poder-se-ia mesmo questionar se aquilo é política no sentido nobre do termo ou mera gestão de uma massa falida que, apesar de tudo engorda os que estão no bom sítio. Amesendados.
Também não me queria referir ao sono do razão e aos seus pequenos grandes monstros. Para o peditório do finado camarada Yossip Vissaronovitch Djugatchivilli já dei. Sempre o considerei um selvagem e um canalha. Parece que o igualmente finado (mas embalsamado!) Vladimir Illitch Ulianov teria opinião semelhante. Pelo menos é o que uma piedosa hagiografia de fontes altamente duvidosas tentou fazer passar como o testamento do pai fundador da URSS. Esquecem as excelentes criaturas que o terror não foi inventado pelo georgiano mas existiu desde que a fracção bolchevique entendeu ocupar o Palácio de Inverno e acabar com a “anarquia” revolucionária dos soviets. Acabou e de que maneira: metralhando os marinheiros de Kronstadt, criando a Tcheka, eliminando os socialistas revolucionários, os diferentes partidos do centro esquerda com a preciosa ajuda das democracias ocidentais e dos generais “brancos” reaccionários.
A URSS e os partidos que integraram a 3ª Internacional são filhos dessa perversão da revolução. E pelos vistos não morreram de todo. Ainda há dias li no Público um texto de um rapaz que se reclama dessa exacta herança e desse desvio do marxismo. Disse marxismo e não marxismo-leninismo porque é aí mesmo que o caldo se começa a entornar. Razão tinha a Rosa Luxemburgo quando criticava a “mise au pas” dos sindicatos e da sociedade em geral. E o partido de revolucionários profissionais. E o fim das fracções, das opiniões, dos confronto, da pluralidade de opiniões.
O que é interessante é que mesmo nos “affranchis” dessa longa doença se descortinam cicatrizes e eventuais hipóteses de recidiva. Para não ir mais longe, basta atentar na troca de palavras entre o Rei de Espanha e o Presidente da Venezuela. Não há quem se atreva a dizer que Chavez é um herói. Será herói para “as massas latino-americanas” claro, como vi asseverar. Mas no resto é apenas um “índio” ou um “mestiço” que enfrentou um rei e um representante do imperialismo e do colonialismo. E aí o herói que não era ressuscita. O oprimido que não teme o opressor. O indígena contra o Bourbon, perdão o Borbón y Borbón! Nada disto é verdade, obviamente. Nem o facto de ser mestiço torna melhor ou mais simpática a sinistra figura do antigo golpista e actual candidato a tirano que é Chavez. Que a direita venezuelana esteja contra ele parece ser viático suficiente para Chavez entrar no pouco exigente clube da “esquerda pura e dura” ao lado desse outro símbolo da degenerescência revolucionária, Fidel Castro.
A América Latina tem esta má sorte: demasiado longe de Deus e demasiado perto dos Estados Unidos. E demasiado governada por corruptos populistas, por ditadores militares ou a tender para isso, por barões da droga ou por guerrilheiros fanatizados que na floresta ou na montanha mantém países e populações em cheque. Algum cinismo ocidental e outros tantos intelectuais latino-americanos servem-se disto para declarar a impossibilidade de uma democracia normal nestes países. Também o dr Oliveira Salazar considerava a democracia um luxo excessivo para os cidadãos do Minho a Timor. E o general Franco em Espanha não tinha opinião diferente. Os fascismos e seus regimes afins sempre se escudaram nesta tese da impossibiliade da democracia. Disseram-no em Itália e na Alemanha (onde até ganharam uma eleição, a última em liberdade) na Grécia de Metaxas, na Polónia de Pilsudsky, na Hungria de Horty. E o resultado foi o que se viu.
Estamos a assistir ao aparecimento de uma ditadura na América Latina. As reformas constitucionais, o silenciamento dos meios de comunicação social, a criação de milícias partidárias, o envio de esquadrões da morte à universidade são elementos mais que suficientes para nos fazer temer pelo futuro do país. Dir-me-ão que para já os políticos mais influentes do hemisfério não têm feito grandes declarações. Pois não. Há muito petróleo atrás disto. E o cheiro do petróleo embriaga os ambiciosos e esconde os maus odores da tirania. Que o digam os que privam com os poderes constituídos em Angola, ou na Arábia saudita. O petróleo limpa mais branco, que o diga o coronel líbio.
Não há quem ache estranho que nas mesquitas pagas pelo dinheiro saudita, enquadradas por imans educados em madrassas whahabitas ou afins corram todos os insultos á sociedade dos infiéis. E se prometa o paraíso aos futuros mártires suicidas da jihad. Ao que parece nem os americanos tão ciosos das suas fronteiras, tão guantanameros se interrogam sobre estas ligações. Nem sobre as tonitruantes declarações de toda esta gente. E valha a verdade, eles falam que se fartam. Chavez neste ponto não inovou. Fala menos embora cante mais. O que num europeu decadente e imperialista seria ridículo é normal num oriundo do terceiro mundo. Coitados, são assim, nasceram assim, rumberos e faladores... Mandar calar uma criatura destas mesmo se em tom interrogativo e não imperativo, é uma pura manifestação de arrogância e de imperialismo. Mandar calar Hitler, diria Daladier ou Chamberlain só serviria para o excitar. Como se viu!
Dir-se-á que nada disto tem a ver com a tal esquerda. Erro, tem tudo. Hitler cresceu sobre outra brutal ilusão do movimento comunista internacional. A ideia de opor uma barreira ao fascismo que irrompia só se tornou realidade demasiado tarde. Até às frentes populares regia o famoso slogan “Klasse gegen Klasse” que via nos sociais-democratas uma espécie de traidores, de agentes da burguesia. Foi a guerra de Espanha (onde entretanto se aniquilou o POUM e se tentou sufocar os anarquistas) e os campos de concentração alemães estreados pelos comunistas e pelos socialistas (mesmo antes dos judeus) que subitamente puseram em polvorosa a inteligentsia do Komintern. Mas convém não esquecer que logo que a guerra se declarou, com a URSS neutral, os partidos comunistas declararam que aliados e Eixo eram a mesma coisa. Em França o PCF tentou (e conseguiu em certa medida) agir na legalidade, publicar “L’Humanité”. Este conúbio sinistro só acabou com a invasão da URSS. Ou seja: tarde.
Ando para aqui a dizer que, de há muito, desde sempre, a esquerda é múltipla. Talvez seja por isso que normalmente perde. Perde para a direita, para a burocracia aparelhista, para os convertidos da 25ª hora, perde para os neo-convertidos, para os filisteus e para os zelotas.
Mas reaparece, como a erva cortada pelo jardineiro. Felizmente. E como essa erva humilde ninguém fala dela.

A gravura é uma homenagem a um jornal que me acompanha há muito, desde os tempos em que se chamava Harakiri: Charlie hebdo! A ler com urgência.

4 comentários:

JSC disse...

Caro MCR

Confesso que tenho muita dificuldade em aceitar a sua tese e os argumentos em que a sustenta:

"Estamos a assistir ao aparecimento de uma ditadura na América Latina. As reformas constitucionais, o silenciamento dos meios de comunicação social, a criação de milícias partidárias, o envio de esquadrões da morte à universidade são elementos mais que suficientes para nos fazer temer pelo futuro do país.”

Como é que alguém que se submete e ganha duas vezes a eleições, ampla e abertamente disputadas, merece ser apodado de ditador ou potencial ditador.

A não ser que se siga o modelo argelino. Fazem-se eleições democráticas, que ninguém ousa contestar, mas depois porque não se gosta dos que ganharam, esquece-se que houve eleições e tudo permanece sereno e calmo. É isto a democracia? Seria isto que também se deveria ter aplicado na Venezuela? Pelas reacções que têm por aí aparecido parece que sim. Até haverá quem pense que ele não deve ser Presidente porque é pesadão, palavroso e canta mal. O problema, o grande problema, é que ele ganhou as eleições!

M.C.R. disse...

Um presidente eleito não precisa de silenciar os meios de comunicação social, de enviar brigadas de matones à universidade ou de modificar a constituição para moldes claramente de partido único.
Não contesto a eleição de Chavez contesto a sua acção posterior que me parece tristemente semelhante à sua acção anterior...quando chefiou um golpe de Estado que falhou.

As eleições são por via de regra respeitáveis desde que se sigam as regras do jogo democrático que desde logo exigem pluralidade de opinião e acesso da oposição aos meios de comunicação.
em Portugal as eleições no tempo de Salazar eram sempre ganhas por diversos factores: a oposição via-se impossibilitada de concorrer por não ter os meios mínimos de acesso aos meios de informação; os cadernos eleitorais estavam viciados e a repressão espreitava a cada esquina.
Temo bem que isso esteja em marcha ou pelo menos que parte disto esteja em marcha na Venezuela.
finalmente não quero deixar de lembrar que Hitler chegou ao poder em eleições perfeitamente livres e indiscutíveis. Depois foi o que se viu...
Portanto, e resumindo: corre-se o risco de voltar a ver-se o mesmo e não é só na Venezuela. Por exemplo na Rússia, para não ir mais longe, assiste-se à tomada dos meios de comunicação adversos ao regime, ao silenciamento dos jornalistas ao assassínio de políticos incómodos e a mais um par de coisas que fazem temer o pior. É o fascismo? Não, claro mas é um perigoso passo na direcção de algo parecido.
A bitola da democracia não é só a imprensa livre mas esta é condição sine qua non para o exercício da liberdade. E isso incomoda muita gente. Até na África do Sul está em marcha a compra de uma cadeia de jornais pelos próximos do actual presidente da república. Para quê?
E poderia juntar mais meia dúzia de exemplos que mais vale serem já denunciados do que depois vir a verificar-se as más consequências.

JSC disse...

Seja como for considero excessivo meter o Presidente da Venezuela nesse molho de brócolos. Do mesmo modo que não me parece muito razoável a atitude do Rei de Espanha ao mandar calar um Chefe de Estado. Mas o problema de fundo é eminentemente económico. Talvez o governo venezualano não devesse tocar nos interesses externos, instalados com fortes apoios internos.

M.C.R. disse...

V disse tudo, caro JSC: molho de bróculos. A ideologia bolivariana é isso mesmo. tudo e nada mas em tom tonitruante. Aliás, desculpará, não fui eu que meteu o pobre Chavez na esquerda. Foi ele e tem sido alguma esquerda perdida que por aí anda aos ziguezagues. O Dr Soares, por exemplo. Andou de braço dado com o embaixador americano nos idos de 74 e seguintes. Disse do PC e dos PCs o que Mafoma não disse do chouriço. E agora deu-lhe para ouvir enlevado as diatribes de Chavez. Só lhe falta chegar á cabeceira do Fidel para o anunciar como o quarto pastorinho de fátima...
Eu sou de um tempo em que as coisas eram simples. Ser pelo povo era ser contra o populismo. Ser pela liberdade era ser pela liberdade para todos. Ser pela igualdade era o mesmo: para todos. Isto é, tanto há brancos ocidentais e civilizados cretinos como pretos amarelos ou de qualquer outra cor igualmente cretinos.
V diz e bem: anda nisto muita economia, muito investimento, muita massa. É verdade, mas sempre andou. E na Venezuela mais, desde que lhes apareceu o petróleo. E aqui pergunto eu que sou ignorante: quem distribui o petroleo venezuelano? que acordos quanto a preços há nessa negociata? A Venezuela está ou não na OPEP? quem controla a OPEP? Chavez sai da OPEP (claramente capitalista) ou não? Chavez está disposto a perder 20, 30, 40 dolares por barril e vender a preço módico o petróleo aos "irmãos" sub-desenvolvidos e pobres ou não? Etc...