Uma Rosa que
vem do fundo
da minha infância
A peixeira Rosa telefonou-me, sigilosa, num murmúrio. Que trazia uns linguados grandes, óptimos para assar ou grelhar. E uma pescada da Póvoa, melhor do que a de Vigo.
Ó Rosa, fale mais alto, mulher de Deus! Quase nem a oiço!
Que não, que não podia. “os da Câmara” andavam por perto, a rondar. E ela escondida num portal, alertava-me, freguês antigo, reconhecido e amigo, para ir buscar o peixe “ao sítio do costume”.
A peixeira Rosa tem o azar de exercer uma profissão proibida. E mais perseguida que algumas outras mais, digamos, nocturnas. A peixeira Rosa vende um peixe fresquíssimo, acabado de sair da lota da Afurada. Um peixe que nunca apanhamos no supermercado: robalo do mar, com esse gosto inconfundível que nos faz olhar para os de aquacultura com um evidente desgosto, cherne magnífico, um que outro rodovalho, estes linguados que me vão saber pela vida, para já não falar nos jaquinzinhos e nas petingas que, ela sabe, me tiram do sério. E as fanecas que a CG consome para meu espanto. Eu acho as fanecas demasiado espinhosas ou seja susceptíveis de muita “mão de obra”. A peixeira Rosa espanta-se. Ela, fanecas, não perdoa. Há gostos para tudo digo-lhe. E defendo-me explicando que sou de Buarcos, terra de pescadores tanto ou mais do que a Afurada. E ainda por cima irmanadas no culto de S. Pedro!
Mas a peixeira Rosa tem contra ela a nova cruzada higienista: o peixe há de estar nas bancas do super, convenientemente descongelado, depois de há semanas ter sido pescado no Atlântico nordeste (!!!) ou em qualquer outro sítio longínquo. Isto no que diz respeito ao que chega às bancas. Normalizado e mais caro do que o da peixeira Rosa. E menos fresco. E menos saboroso.
A peixeira Rosa está fora da História. Tem um telemóvel para prevenir os clientes quando, com o palminho de cara que tem (alguém lho disse) poderia pôr o nº do telefone e duas frases aliciantes num qualquer jornal na secção de anúncios pessoais: “ex-varina carinhosa promete-lhe amanhar o carapau até pareceu um bacalhau”.
A peixeira Rosa vende peixe. Antes vendesse crédito por grosso como certos banqueiros a quem todos tiram o chapéu. Esses podem dar-se ao luxo de perder milhões, de fazer perder milhões que o direito à reforma está-lhes garantido.
No meio disto tudo, há algo que me alegra: a peixeira Rosa tem toda a rua a favor dela. Ainda os polícias não viraram a esquina e já há quem numa carreira corra ao telefone. “aí vêm eles!” E as portas abrem-se, hospitaleiras, como noutro tempo, noutra cidade, noutras circunstancias se abriram para uns estudantes que fugiam da polícia.
Dirão: não é o mesmo combate.
Não?
* a gravura: uma bela caldeirada, dessas de fazer pecar, Jesus, Nª Senhora, o S. José mailas onze mil virgens.
** as leitorinhas gentis e a peixeira Rosa perdoarão: esta vai dedicada às mulheres de Buarcos, mães de amigos e colegas da escola do sr professor Cachulo, nos anos longínquos de 48/51: a vida era duríssima, a fome uma hóspede constante, os naufrágios à beira terra ou na Terra Nova um destino sempre possível
** as leitorinhas gentis e a peixeira Rosa perdoarão: esta vai dedicada às mulheres de Buarcos, mães de amigos e colegas da escola do sr professor Cachulo, nos anos longínquos de 48/51: a vida era duríssima, a fome uma hóspede constante, os naufrágios à beira terra ou na Terra Nova um destino sempre possível
1 comentário:
Uma prosa digna de José Quitério
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