05 novembro 2008

Au Bonheur des Dames, 148


The times they are a changin’

Eu sei leitorinhas gentis e leitores amáveis que este título é um pouco antiquado. Como eu, aliás. De facto “isto”, a canção de Bob Dylan (editada em 64, se a memória não me falha), era uma canção contra a guerra. Essa guerra do Vietname em que se tornaria célebre um jovem aviador abatido pela DCA norte vietnamita e feito prisioneiro por longos anos. Esse jovem viria a tornar-se senador e seria candidato derrotado às eleições presidenciais de 2008. Em 1964, um outro candidato às mesmas eleições tinha três anos e era o improvável filho de uma americana branca e de um queniano. Os sixties tinham disto, sobretudo fora da América: uma jovem branca encontra um jovem negro, apaixonam-se e casam-se. Nos Estados Unidos da época isso era praticamente impensável.
Nos campos do sul ardiam as cruzes sinistras do KKK, os negros não tinham direito de entrada em numerosos estabelecimentos, nos autocarros estavam-lhes reservados os lugares do fundo, era quase impossível votar e por aí fora.
O mundo americano era WASP, branquinho por fora e por dentro, e os esforços para o tornar mais aceitável para a enorme minoria negra americana eram pontuados por assassinatos, por prisão, por uma intolerável violência que é hoje é difícil de descrever.
Qualquer pessoa que tivesse vinte, trinta ou quarenta anos nessa época acharia delirante a ideia de um negro chegar à Casa Branca quarenta anos depois.
Não farei a história dessa luta assombrosa, dos excessos, da violência, das dificuldades, dos quotidianos heroísmos de, por exemplo, uma Rosa Parks, da perseguição sofrida por brancos que se uniram à luta dos afro-americanos, do punho cerrado de dois atletas nas olimpíadas de 1968, das mortes de Luther King ou Malcolm X, das infâmias perpetradas contra Cassius Clay (Muhamad Ali), do preconceito vivo e tenaz que ainda hoje assombra certos recantos do Deep South.
Hoje, penso, é dia de comemorar a vitória improvável de um produto do melting pot, de um homem que além de carisma, educação, carácter e perseverança vem fazer redescobrir aos seus compatriotas o mito fundador dos Estados Unidos.
A eles e a nós, cidadãos do mundo, causticados por uma política forjada na arrogância, no poder sem freio, no discurso do medo, na violência de um puritanismo radical evangelista, no uso da manipulação de notícias e dados falsos, esta eleição de um homem diferente fala-nos de uma nova esperança, de uma outra partida para a política. Não é por acaso que o jovem licenciado em Direito por Harvard (o que quer dizer muito) onde dirigiu a “Harvard Law Review” (o que é dizer ainda mais) se recusou a postular, como podia, por empregos altamente pagos para trabalhar em Chicago nos bairros mais desfavorecidos. Isto é mais do que uma escolha uma prova de carácter, uma aposta no futuro, o sinal de uma crença nos valores fundamentais que fizeram a América, pelo menos a América de que gostamos.
Ontem disse da minha esperança, hoje falo da minha alegria e, de novo, da esperança. Eu sei que um homem, mesmo o presidente dos Estados Unidos, não muda o mundo sem mais nem menos. E foi isso mesmo que Barack disse no Grant Park há meia dúzia de horas. Porém, a sua acção, conjugada com as duas novas Câmaras, onde os democratas ganham novos lugares, com a renovação partidária decorrente da mobilização excepcional de novas gerações, de mulheres, de minorias raciais, pode mudar duradouramente o país. E se o país muda, o mundo pode igualmente mudar. Para melhor. Por muito que isso custe a um punhado de adeptos de Bush em Portugal que conseguem na sua imensa cegueira ser mais papistas do que John Mc Cain, cujo discurso civilizado e elegante deveria ser percebido pelos nossos ultra liberais. Mas o dia de hoje é de festa e não a vamos estragar citando nomes de opinion makers em jornais de referência... coitados, ainda não engoliram a pílula.
Terminemos com uma nota: uma velha senhora (106 anos) de raça negra, esteve quatro horas numa fila para votar. Quando nasceu os negros eram invisíveis, cresceu sem poder votar porque era mulher e porque era negra. Viu os primeiros regimentos negros regressarem dos campos de batalha da 1ª Guerra Mundial à América e verem negados os seus direitos conquistados pelo sangue derramado. Esta mulher assistiu à grande emigração para o norte, ao nascimento e ao crescimento do jazz, soube da morte de Bessie Smith esvaída em sangue sem um hospital que a acolhesse porque era negra, viu multidões ululantes de estudantes racistas tentarem impedir James Meredith, outro soldado negro na segunda guerra mundial de entrar na Universidade. Viu demasiadas coisas, quase sempre as piores. Mas viu, hoje, na capa do New York Times, a fotografia do 44º Presidente dos EUA, e um nome escrito por baixo: Barack Hussein Obama. Há dias em que, mesmo para uma velha senhora americana, o mundo parece melhor.


The times they are a changin’ cantava Dylan. E era verdade. É verdade. Relembremos, por mera justiça, que foi por essa altura que um Presidente americano, o mal amado Lyndon B. Johnson assinou as grandes leis anti-segregação. Também ele a seu modo tentou mudar as coisas.

*Devo o conhecimento deste disco de Dylan a Maria João Delgado que o comprou logo que saiu...em Paris. acho que também ela estará hoje contente. Por Dylan e por Obama.

2 comentários:

jcp (José Carlos Pereira) disse...

A vitória de Obama é fantástica por tudo aquilo que representa para a sociedade americana. Obama fez muito bem em realçar o exemplo da senhora de 106 anos, descendente de escravos, no seu discurso de vitória. Um discurso sereno e confiante. Esperemos que Obama saiba corresponder à confiança que os EUA e o mundo depositam em si.

d'oiveira disse...

É o que se vai ver