04 janeiro 2009

Diário Político 96


Com olhos em Gaza*

Como infelizmente parecia provável, as tropas de Tsahal, o famoso e eficiente exército israelita entraram pela faixa de Gaza. E entraram como entram todos os exércitos com alto índice de profissionalismo: usando uma força enorme para evitar surpresas. De facto, custa ler certos comentadores que acham desproporcionada a força da invasão.
Do ponto de vista da eficácia só uma entrada duríssima pode ter êxito. Mandar uma companhia ou duas seria uma burrice que eventualmente o Hamas poderá ter esperado (coisa que apesar de tudo me parece impossível) e que eventualmente as pobres criaturas que povoam o Bloco de Esquerda achariam sensato. Convém demorar um par de parágrafos neste ajuntamento político e nas suas tonitruantes declarações que não se ficam por menos do que genocídio e crime contra a humanidade. Conhecidas as matrizes do grupo, a explosiva mistura de China da revo. cul., a Albânia do messiânico Hodja e os restos dispersos do putrefacto stalinismo (o de Stalin, himself, claro) e o fantasma do assassino de Kronstadt é risível a declaração dos bloquistas. Não, não estamos perante um genocídio, sequer perante um crime contra a humanidade, a menos que, isso sim, achemos que todas as guerras o são.
Entre Israel e o Hamas a luta é de morte. Alminhas piedosas dirão que é Golias contra David, numa menção que poderia ser irónica, mas nem o é, a uma história antiga e incerta.
Relembremos a crónica dos últimos meses, para não repetirmos o que já aqui se disse sobre a situação nesta zona. O Hamas, conquistou à ponta de pistola e de versículos do Corão ( con el palo dando y a Dios rogando) a faixa de Gaza, exterminando ou expulsando os elementos mais laicos e moderados do Fatah. Depois para provar a traição infamíssima destes, declarou que Israel tinha de ser tratado como o que eles acham que é. E a tiro.
Estabeleceram-se, entretanto, duvidosas tréguas que o Hamas aproveitou para se rearmar e Israel para espiar. Pode dizer-se sem receio de desmentido que a “inteligência” israelita conhece de cor e salteado todos os dirigentes do Hamas, sabe onde vivem as famílias deles, conhece-lhes os pseudónimos e boa parte dos esconderijos. Isso, obviamente, foi alcançado porque Israel tem agentes árabes no terreno, na organização do Hamas, quiçá dentro do seu mais exclusivo grupo dirigente. Só assim se explica a facilidade com que vai abatendo os principais chefes militares do Hamas.
O Hamas terá entendido que o momento era propício para hostilizar o inimigo sionista. Para o efeito foi disparando os seus mísseis mais ou menos caseiros, sabendo, supõe-se, que estas armas primitivas e erráticas fazem mais barulho do que vítimas. Todavia, sabe igualmente que tais mísseis tornam a vida dos seus potenciais alvos desagradável, angustiam populações e levam o governo israelita pressionado pelos eleitores a retaliar.
Eu gostaria de pensar que os dirigentes do Hamas são como nós: que antes de dar um passo pensam nas consequências. Gostaria mas desde há muito abandonei essa irrazoável ideia. O Hamas acredita nos prazeres indizíveis que esperam os mártires, no paraíso de Alah, nos milhões de huris que receberão amorosamente os combatentes e as vítimas da jihad. Por isso, porque se sente portador de uma missão sagrada, aceita que o sacrifício que lhe corresponde atinja absurdos que os ímpios ocidentais nunca permitiriam.
Morrer por Deus, numa terra onde pouco ou nada há pode parecer exaltante pelo menos para os militantes. As populações não interessam. Nunca interessaram. Não foram importantes para Hitler, parecem não ser importantes para Mugabe, Pinochet desprezava-as enquanto as metia nos estádios e a Junta argentina ia-as reduzindo nos calabouços e nas descargas aéreas de presos para o mar. Falamos obviamente de países onde a democracia não é regime.
Nestes casos os fins justificam os meios, os mortos são uma variável sem importância, e a guerra aberta apenas serve para provar quão mau é o inimigo.
Israel sabe disto, claro. E também, há que convir, não se importa muito. Pode proteger com eficácia o seu povo e não rejeita uma oportunidade destas. Todavia, dizer que riposta com meios desproporcionados é uma falácia para consumo das boas consciências. A ideia central é quebrar o moral dos invadidos, fazê-los ver que o Hamas não os protege, logo que não é digno de os governar, logo que se devem dissociar de tão perigosa e extravagante companhia.
E, pelas escassas notícias que vamos recebendo, está a consegui-lo. As desgraçadas populações fronteiriças estão em movimento, em fuga, desorganizando eventualmente os fracos dispositivos de defesa do Hamas, se existem. É provável que, desde a lição libanesa, os estrategos israelitas tenham aprendido os perigos de se meterem num vespeiro. Por isso soam a disparate as ameaças de converter a Palestina num cemitério judeu. Para já o cemitério é palestiniano, guerrilheiros e civis confundidos.
Vejamos um pouco mais além: qual é a reacção dos vizinhos de Israel? do Líbano, da S´ria, da Jordânia e do Egipto, para sermos mais precisos. Mobilizaram tropas? Ameaçaram intervir a favor dos irmãos palestinos? Usaram sequer uma linguagem mais dura do que a costumeira?
A resposta é negativa. E natural. Estes países não vivem na contingência e na provisoriedade de Gaza. Tem governos constituídos que obedecem a certas regras. Não estão interessados em combater Israel porque, por um lado não simpatizam com o Hamas e por outro não se sentem dispostos a morrer pelos irmãos agredidos. Diria que usam uma linguagem claramente menos belicosa que o citado Bloco, o nosso, o guerrilheiro de salão.
E que diz o governo palestiniano? Acaso rompeu dramaticamente as escassíssimas pontes que mantém com Israel? verifica-se algum aumento significativo de intifada nos territórios controlados pela Autoridade Palestiniana? Jerusalém já está a arder? Ou Belém?
Os governos principais da União Europeia condenam a invasão. Pedem um cessar fogo desde que o Hamas garanta que não dispara mais foguetes. Ou seja, pedem ao Hamas, outra vez, o que este não pode, não quer ou não pensa fazer. Ou que a partir do momento da invasão ninguém lhe perdoará que faça: depor as armas.
Resumindo o Hamas caiu numa armadilha que ele próprio, por ideologia cega ajudou a montar. Ou numa provocação se se entender que Israel se deixou bombardear o número necessário de vezes para poder ripostar.
Quer isto dizer que Hamas está fatalmente condenado à derrota? Não, se entendermos que para um grupo deste género a derrota só existe quando for totalmente aniquilado. Mas por muito que a população civil se dissocie dos guerrilheiros há sempre um certo grau de porosidade (no seio do povo o guerrilheiro é como peixe na água, dizia o falecido Mao) que evita mesmo in extremis o fim destes gruposJustificar completamente messiânicos.
Esta guerra de dramáticas consequências para os condenados da terra palestiniana terá mais uma vez como saldo, dor, violência, ressentimento e frustração. Daqui a uns meses, cessadas as hostilidades, nascerão do ventre fecundo da injustiça novos mártires. Mães árabes e mãe judias terão tempo para se habituar a chorar os filhos. Todavia as primeiras chorarão mais, por mais vítimas. E por mais tempo.

Eu não quereria que me tomassem por cínico sequer por indiferente. Defendo uma pátria palestiniana. Sou contra os colonatos, todos os colonatos fora do território histórico de Israel. Sou contra a ocupação israelita de Jerusalém. Mas isso não me impede de ser contra o terrorismo, contra o uso de escudos humanos e contra o fanatismo religioso. E neste englobo o Hamas, o Hezbolah e os integristas judeus cujo número cresce com os ventos de guerra.


*os leitores permitirão que use deturpando-o um título de um grande livro de um grande escritor: Aldous Huxley.

** a gravura: enterro de um mártir do Hamas.

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