30 janeiro 2009

Estes dias que passam 141

As burkas nunca são grátis


Anda toda a bem-pensancia indignada com o cardeal patriarca. Parece que o prelado no contexto de uma conversa sobre diferenças entre credos religiosos se atreveu a prevenir as jovens católicas contra os casamentos com muçulmanos.
Ai Jesus o que o homem disse! Ofendeu as outras religiões, mormente a muçulmana. Eu que não sou católico, cristão, sequer crente, lá vou ter de fazer de cardeal diabo e defender o purpurado. Porque ele está carregado de razão. Não no toca à defesa da fé ou à tentativa de não perder ovelhas, por mim pode perdê-las todas, diga-se de passagem.
O que o cardeal disse, e qualquer pessoa dotada do sentido da visão e capaz de ler percebe, é que uma jovem portuguesa ao casar com um muçulmano arrisca bastante. Por cá, se cá permanecer, bem podem ir as coisas. Mas suponha-se, por um momento, que o referido muçulmano regressa ao pais de origem. Claro que nem todos os Estados onde o Islão impera são idênticos à Arábia Saudita, ao Afeganistão, ao Irão ou ao Yémen. No Iraque, por exemplo, antes da desastrada invasão americana, as mulheres gozavam de relativa liberdade (inferior todavia à das mulheres indonésias). Com a guerra começou a ganhar terreno o chiismo que, aqui para nós, não é pêra doce para o segundo sexo. O mesmo se diga de boa parte das regiões curdas por muito revolucionários que os guerrilheiros pareçam. Digamos que na grande maioria dos Estados árabes ou muçulmanos a charia, o tchador a burka e toda a restante parafernália anti-feminina são de regra. Direito de voto, vai no Batalha. Restantes direitos, idem, aspas. A capitis deminutio que atinge a gens femenina é de regra e não há indícios de se poderem esperar grandes mudanças para breve. O mesmo, de resto, sucede com a cristã que se casa com um judeu integrista: está feita ao bife e pode, desde logo e como amostra ,habituar-se a caminhar atrás do seu amo e senhor. Três passos o que até não é muito e talvez sirva para a senhora poder aproveitar a sombra do marido omnipotente.
Dirão que estou a ser injusto para com as outras religiões do livro mas nem isso. Estou a dizer evidências que só a parvoeira multicultural persiste em ocultar. Mas passemos a África e aos seus territórios muçulmanos. Alguém me dizia que pelo menos aí não haveria excisão clitoridiana. Engano, caro leitor: há. Se é feita em nome de Alah ou como mero sinal da aculturação do islamismo a um velho fundo africano, não sei. Mas que a excisão é uma prática comum e generalizada na África muçulmana disso não há dúvidas. Como a lapidação das adúlteras. Das adúlteras, digo, não dos adúlteros.
Qualquer pessoa que se dê ao inocente trabalho de folhear jornais franceses conhece as centenas de casos em que pais muçulmanos levam os filhos fruto de casamentos inter-religiosos, para o pais de origem, mormente o Magrebe, deixando as esposas ocidentais a chorar baba e ranho para tentar rever os filhos.
Eu não tenho a certeza se foi esta a situação que Sª Eminência quis prevenir. Eventualmente, ele, representante de uma igreja que raramente resiste ao velho espírito de cruzada, terá tentado evitar a defecção das suas ovelhas. Na impossibilidade de criticar as “seitas” evangélicas que pululam por aí e que vão roubando com êxito crescente a freguesia, o senhor cardeal resolveu disparar contra o mais óbvio. E acertou, custa-me dizê-lo. Uma coisa são os muçulmanos ocidentalizados, vivendo no Ocidente e outra a imensa maioria do Islão. E convém lembrar que quando se nasce muçulmano não há apostasia que resista ou que seja aceite. Salman Rushdie que vos diga.
Traduzi, nos últimos anos, quatro livros que descrevem as realidades do Iraque, do Afeganistão, do Curdistão e, ainda que em forma de romance “erótico”, Marrocos. Tratava-se neste último caso de um livro atribuído a uma mulher. Todos, incluindo “A espingarda de meu pai” (um livro de memorias de um cineasta curdo) são deprimentes quanto ao retrato que fazem do mundo feminino.
Também não sei se o senhor cardeal quis referir-se aos assassínios de honra, isto é aquelas miseráveis execuções que pais, tios e irmãos de uma muçulmana infligem a esta porque namora, dorme, casa ou simplesmente sorri para um “infiel”.
Não quero, com isto, dizer que por cá, entre cristãos não haja violência contra as mulheres, que a há e de que maneira. Agora começa a fazer caminho a cobardia começada em Espanha de assassinar a mulher que repudiou o companheiro, que fugiu aos maus tratos ou que não aceitou ser requestada. Tudo entre cristãos “velhos”, católicos, apostólicos e romanos. Uma mulher dessas é pior do que a víbora primigénia e há que fazê-la desaparecer. Com sofrimento se possível. Mas isto, que é horrendo, é, apesar de tudo, excepção entre nós, ocidentais. Alguém poderá dizer o mesmo em certas regiões muçulmanas?

* provavelmente - e isso o senhor Cardeal não disse nem talvez pudesse dizer - muitas autoridades religiosas muçulmanas teriam opinião idêntica quanto aos perigos que espreitam uma rapariga muçulmana educada no Islão e casada com um cristão. O choque com os hábitos ocidentais poderá ser brutal, a liberdade da mulher uma libertinagem, os modos e as práticas sexuais do Ocidente uma ofensa. Se percebermos isto talvez consigamos perceber o cardeal.

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