06 abril 2005

As heresias sobre a escola

Tal como há ortodoxias, também há heresias sobre a escola. Contra elas, existe uma força ideológica poderosa que não só as faz recusar sem discussão, como também caracteriza os seus defensores como gente ultrapassada, desagradável e, talvez, meio-louca.
Designemos a primeira heresia por heresia substancial. Este defeito (pois, para um ortodoxo, a heresia não é uma discordância, mas um defeito), manifesta-se em denunciar os jogos de simulação: simula-se autonomia, onde há burocracia e jogos de interesses; simula-se participação, onde há frenesim de “reunite” que dispersa do fundamental e promove a cultura da "mise-en-scéne".No entender dos hereges, o trabalho fundamental da escola deve ser desempenhado na sala de aula, fazendo perguntas, explicando, mantendo a ordem, corrigindo erros, obrigando os alunos a trabalhar, avaliando e, inclusivamente, dando conselhos. Mas este trabalho implica que haja tempo para desenvolver um outro que não está integrado na face pública do ensino e, por isso, não tem visibilidade: o trabalho de casa dos professores -- preparar as aulas, estudar (a melhor pedagogia é a que resulta de se ser cientificamente competente), planificar e corrigir os trabalhos dos alunos, etc. Faltando tempo para tudo isto, falta o essencial para ser professor e promover a qualidade do ensino.
A segunda heresia pode ser denominada por heresia genérica. Consiste na descrença sobre a ideia de comunidade educativa. Este defeito faz com que se denuncie o facto do individualismo e do egoísmo terem transmutado o sentido do próprio acto de partilhar em operações de exclusão. E, por isso, o conceito de comunidade educativa é um conceito “armadilha”: representa a formação de grupos de interesses que fragmentam e dividem mais do que unem.
O que estas duas heresias denunciam é, na opinião dos hereges, responsável pela desvalorização da autoridade profissional do professor, pela desilusão, desorientação e frustração; e, ainda, responsável por esvaziar a dimensão de serviço público de ensino e impedir que a escola forme cidadãos responsáveis e profissionais competentes, capazes de, em igualdade de circunstâncias, concorrerem, no mercado de trabalho europeu, com outros profissionais com títulos idênticos.
Estas duas heresias têm em comum o facto de estarem preocupadas com o futuro das gerações de alunos que vão frequentando a escola pública, o que, numa sociedade neo-liberal e pragmática, está, com toda a certeza, ultrapassado, é desagradável e, talvez, meio-louco.
Acreditando nas suas heresias, interrogam-se, então, os heréticos: se ao ensino e à escola falta o sentido de missão, como se poderá pedir ao professor que nunca desanime e nunca falte?!... Como dizer-lhe que a sua profissão está dignificada e tem todas as condições para se realizar como professor, isto é, promovendo o sucesso da aprendizagem?!...

São estes paradoxos que dão aos hereges muita razão.

2 comentários:

M.C.R. disse...

Bravo, compadre esteves! Isto de escola dava pano para mangas, olá se dava. Posso juntar mais uma heresia? Aí vai disto: talvez valesse a pena pôr na constituição o seguinte: a primeira missão da escola é ensinar a ler escrever e contar.
Estou convencido que quem de facto souber estas três coisinhas saberá (ou poderá vir a saber) pensar, indignar-se, votar, escolher, opinar etc... Em suma poderá vir a ser um bom e feliz cidadão.
O que é insuportável para um reles esquerdista com mais de sessenta anos em cima, é ver os estudantes saírem da escola ao fim de doze anos, mais ignorantes do que entraram (porque além de quase não saberem ler, escrevem pior e julgam que sabem tudo)graças a uma política que muda de dois em dois anos mantendo sempre os mesmos vícios e mandando para o caixote do lixo as poucas virtudes que a enformava. Haverá ainda alguém que pense seriamente que a política de facilitismo e de seguidismo do eduquês cria sequer uma elite de segunda categoria?
Ou por outras palavras: porque é que os professores devem abdicar de ser professores? A que título se questiona a autoridade (não dos tiranos, dos fortes ou dos ricos) dos que aprenderam e se dispõem a partilhar todos os seus conhecimentos?
Até uma próxima oportunidade de falar mais disto. Obrigado pelo seu texto: é refrescante.
mcr

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Considero que importa fazer uma profunda reflexão sobre a escola e toda a sua envolvente. Não podemos andar a mudar de estratégia e de coordenadas todos os anos, desprestigiando os agentes do meio escolar.
Mas também não podemos deixar-nos cair no domínio do "eduquês" e daqueles que querem perpetuar-se num sistema que não funciona como devia.
Concordo com as ideias avançadas pelo primeiro-ministro e com todas as que possam contribuir para diminuir o insucesso escolar, sobretudo nos meios mais desfavorecidos.
Entendo que devem ser dadas as condições necessárias à comunidade escolar para, depois, se poder exigir trabalho sério em prol dos alunos e cumprimento de objectivos.