Há uns dias, Francisco Bruto da Costa defendeu aqui que seja de novo consagrada abertamente a possibilidade de recurso do despacho de pronúncia. Não concordo. Permanecem válidos os conhecidos argumentos a favor da solução vigente (de que tal seria um excesso de garantias, obstáculo injustificado à celeridade do processo, pois nesses casos a existência de indícios suficientes da prática do crime foi já comprovada de modo absolutamente coincidente, em duas fases do processo, pelo Ministério Público – magistratura autónoma e, no processo penal, um sujeito isento e objectivo, orientado pelo princípio da legalidade – e pelo juiz de instrução; por outro lado, esse recurso levaria a um “pré-julgamento”, feito na Relação por três juízes desembargadores, que, para realizar uma segunda apreciação judicial da decisão de deduzir acusação, nomeadamente das provas que a sustentam, poderiam condicionar o próprio julgamento), cuja conformidade com a Constituição sempre tem sido entendida pelo Tribunal Constitucional (vide o Acórdão 30/2001 e todos os outros aí referidos).
Visando uma melhor sustentação probatória dos processos que chegam a julgamento, nomeadamente conferindo mais garantias ao arguido e permitindo-lhe o efectivo exercício do seu direito de defesa logo na fase de inquérito, outras coisas podem ser feitas (para além da melhoria da formação, coordenação e dotação de meios dos órgãos de polícia criminal e dos próprios magistrados do Ministério Público que dirigem a investigação).
Há que permitir o acesso do arguido ao inquérito antes do seu encerramento. O segredo de justiça interno só deverá existir quanto aos crimes previstos na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro (tráfico de estupefacientes, terrorismo e organização terrorista, tráfico de armas, corrupção e peculato, branqueamento de capitais, associação criminosa, contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados, lenocínio e tráfico de menores, contrafacção de moeda e de títulos equiparados).
Nos restantes casos, a regra deveria ser a da inexistência do segredo de justiça. Porém, poderia o Ministério Público, por despacho fundamentado e com a concordância do juiz de instrução, sujeitar determinado inquérito ao segredo de justiça quando tal fosse essencial à preservação e correcta produção da prova ou à protecção das vítimas.
Quando não existisse segredo de justiça, o arguido poderia ter acesso ao inquérito logo após o seu primeiro interrogatório. Quando existisse, o Ministério Público teria obrigatoriamente que, logo que concluída a produção de prova que julgasse pertinente (e assim deixasse de existir qualquer valor a proteger com o segredo de justiça), “abrir” os autos ao arguido por determinado período (20 dias) para que indicasse então a sua prova. Não o fazendo nesse prazo, só o poderia fazer em julgamento. O Ministério Público poderia então produzir a prova requerida pelo arguido, apreciar os documentos juntos ou ordenar qualquer outra diligência que julgasse relevante.
Deste modo, dando ao arguido a possibilidade de verdadeiramente conhecer todos os factos que lhe são imputados e a prova existente, este poderia defender-se logo no inquérito, o que hoje não consegue.
Tal levaria a que o inquérito chegasse necessariamente a um resultado final (acusação, arquivamento ou outro) mais bem fundamentado.
Por outro lado, restringir-se-ia a instrução à reapreciação da prova já existente nos autos: o arguido não poderia produzir qualquer prova na instrução, com excepção do seu próprio interrogatório. Ainda que aumentasse o prazo de duração do inquérito, a instrução consistiria apenas no debate instrutório e seria muito curta, apesar de realizar a sua finalidade: comprovar a decisão de deduzir acusação em ordem à submissão da causa a julgamento.
Outro aspecto que me parece essencial é tornar obrigatório que o arguido esteja assistido por advogado em todos os interrogatórios. Tal também contribuiria para um efectivo direito de defesa no inquérito. Mas, em compensação, todas as suas declarações teriam valor probatório em julgamento, ficando sujeitas às livre apreciação do tribunal. Estando assistido por advogado e prestando declarações apenas por sua vontade e conselho do defensor, por que motivo impedir o tribunal de as valorar?
Admito que estas ideias necessitam amadurecimento, mas são o resultado da prática diária nesta área.
6 comentários:
Excelente contributo para a discussão!
Para mim, sempre considerei que era preciso "civilizar" o processo penal. Por isso, perante o Juiz de Julgamento, o MP deduziria acusação e apresentaria a prova documental e pericial recolhida, que ficaria sujeita a contraditório.
Não vejo inconveniente de maior em que, antes de encerrar o inquérito, o MP produza um relatório, permitindo o acesso aos autos do arguido para que este possa apresentar prova. Produzida a prova, o MP deduziria, ou não, a acusação.
Prefiro a primeira solução, pois garante melhor a imparcialidade do Juiz de julgamento.
Actualmente, a instrução, na maior parte dos casos,é uma inutilidade processual, pois compete ao Juiz aceitar ou não a produção de prova apresentada pelo arguido. Não vale a pena perder tempo ! E, além do mais, com a teoria dos "indícios" (que continuo a não perceber o que seja; pois a unica palavra admissível no contexto devia ser "prova"), dado que todo o homem é pecador, qualquer um pode ser julgado sem perceber porquê! Bem, no final, descobre ...
Parabéns pelo post, Rui! É a tua 2ª participação no blog e, tal como da 1ª vez, conseguiste lançar o debate! Pena que FBC não o tenha prosseguido aqui no Incursões, onde pode ter resposta - é isso im debate! - mas no Ciberjus, onde apenas os colaboradores inscritos podem comentar...
Quanto à substância do post, lá irei.
E pena é também que FBC tenha usado um tom no mínimo inadequado a quem, para mais dinamizando um blog e assumindo-se como defensor das liberdades conquistadas no 25 de Abril, se presume aberto à civilizada e séria discussão de ideias. Quero cerer que FBC terá lido o post do Rui Cardoso um pouco em diagonal - repare-se que nem se apercebeu que se trata de um colaborador registado e identificado no Incursões - , pois não o tenho por habitual utilizador, nestas questões, deste tipo de acintes e ataques...
Que o debate prossiga, com a frontalidade e diginidade que a reflexão ínsita no post merece.
Desculpem a horrível gralha no post anterior: crer e não cerer...
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