No programa “Prós e Contras” da passada segunda-feira, Boaventura Sousa Santos referiu, com escândalo, que a percentagem de inquéritos acusados é de apenas cerca 15%. A este assunto já muitas vezes se referiu Miguel Sousa Tavares, embora este o tenha sempre feito como fundamento para a necessidade da existência de um controlo jurisdicional sobre todas decisões de arquivamento de inquérito (*).
O número por si só não tem grande significado nem é motivo de qualquer escândalo. Reduzir a discussão apenas à percentagem de inquéritos acusados é só demagogia e não diagnostica qualquer um dos verdadeiros problemas que existem na investigação e na direcção do inquérito pelo Ministério Público.
Para que esta análise possa ser feita de forma honesta, há que distinguir os vários tipos de arquivamento que compõem os 85% dos processos que terminam nas mãos do Ministério Público. Não conheço nenhum estudo sobre a matéria, mas a experiência diz-me que desde logo há que distinguir entre os arquivamentos de inquéritos onde é conhecida (ou é possível vir a conhecer pelos elementos existentes) a identidade do autor do alegado crime daqueles onde tal não sucede (inquéritos contra desconhecidos).
Em verdade, cerca de 40% a 45% (consoante o carácter menos ou mais urbano da comarca) de todos os inquéritos respeitam a crimes cometidos por indivíduos de identidade completamente desconhecida. Normalmente respeitam a furtos de automóveis ou de objectos no interior destes, pequenos roubos por “esticão” e alguns furtos no interior de residências. São feitas as diligências possíveis (reconhecimentos fotográficos, exames lofoscópicos e de pesquisa de vestígios biológicos no local do crime ou seu objecto), mas raramente têm qualquer efeito útil. Pouquíssima culpa pode ser imputada ao sistema judiciário por estes números. O aspecto essencial é o da prevenção: por toda a sociedade em si (para integração social de todas as pessoas, principalmente os chamados "imigrantes de segunda geração"), por cada um dos seus membros (protegendo melhor os seus bens) e pelo sistema de prevenção policial.
Quanto aos primeiros, àqueles que em há um denunciado ou suspeito, que serão entre 30 a 40% de todos os inquéritos registados, há a referir que a maior parte deles termina com arquivamentos que não constituem qualquer problema e não podem ser objecto de qualquer crítica. Vejamos:
- Há uma grande percentagem de inquéritos que são arquivados logo no primeiro despacho (arquivamento liminar). Tal pode suceder por os factos participados não constituírem crime ou, constituindo, não ter o Ministério Público legitimidade para o procedimento (por não ter sido apresentada queixa ou não ter sido requerida a constituição de assistente, nos crimes de natureza semi-pública ou particular) ou este se encontrar já extinto (por prescrição, por apresentação extemporânea de queixa, etc.).
- Muitos outros inquéritos terminam por desistência de queixa.
- Muitos outros ainda são arquivados por ter sido recolhida prova bastante de não ter existido crime.
- Finalmente, há inquéritos arquivados após terem estado suspensos provisoriamente e o arguido ter cumprido todas as injunções impostas, assim demonstrando a desnecessidade de ser sujeito a julgamento e sofrer uma pena.
A parte restante é aquela em que o arquivamento do inquérito resulta de falência da investigação. Só esta deve motivar a nossa preocupação e pode ser consequência de muitos factores: falta de preparação técnica dos Magistrados do Ministério Público para efectiva direcção da investigação; falta de meios (legais e materiais) do Ministério Público para efectivamente dirigir a investigação; falta de preparação de alguns órgãos de polícia criminal para realizarem devidamente a investigação criminal; demora na investigação com consequente perda de prova (por atraso no despacho ou no seu cumprimento, sendo um e outro possíveis de acontecer por culpa da pessoa em concreto que o deve fazer ou pela falta de meios humanos e materiais). Cada um destes aspectos merece tratamento mais aprofundado. Como o texto já vai longo para um blog, fica para outra oportunidade.
(*) Note-se que todas as decisões de arquivamento de inquérito são passíveis de controlo: ou pelo juiz de instrução, se o assistente o requerer, ou pelo superior hierárquico, a requerimento de qualquer pessoa ou até oficiosamente (a Circular 6/2002 da PGR obriga à comuniação hierárquica de todos os despachos de arquivamento relativo a crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, o que permite esse mecanismo de controlo).
11 maio 2005
BSS e a Taxa de Acusações
Marcadores: direito/justiça/judiciário
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6 comentários:
Meu caro Rui: também reparei na afirmação (mais uma)gratuita de BSS sobre o "escãndalo" do nº de arquivamentos. Parabéns pelo oportuno , claro e objectivo post!
Do Relatório Anual (2004) da Procuradoria Geral Distrital de Lisboa (pontos A e B), que pode ser consultado na íntegra aqui e que inclui um mapa das pendências e análise das causa de atrasos (ponto E do relatório).
"Em 2004 iniciaram-se 203.132 (- 831 do que em 2003 em que o número foi de 203.963).
Do número de inquéritos iniciados, 86.417 foram contra agentes desconhecidos, ou seja estes inquéritos representam cerca de 43% dos iniciados.
Os crimes contra as pessoas representaram cerca de 22% dos iniciados; os crimes contra o património representaram cerca de 56%; os crimes contra a vida em sociedade representaram cerca de 6%; os crimes contra o Estado representaram cerca de 2%; os crimes de cheque sem provisão representaram cerca de 5%; os crimes de tráfico de estupefacientes representaram cerca de 1%; outros crimes representaram cerca de 8%.
Atendendo à natureza dos crimes, onde os inquéritos contra agentes desconhecidos atinge maior significado, é nos crimes contra o património. Na verdade, os inquéritos contra desconhecidos, em crimes contra o património, atinge cerca de 38% do total de iniciados (os inquéritos contra desconhecidos de outros crimes representam cerca de 5% do total de iniciados); os inquéritos contra desconhecidos por crimes contra o património representam cerca de 67% dos inquéritos tendo esta natureza de crimes por objecto."
"No ano de 2004 findaram-se 201.086, ou seja menos 2.046 que os iniciados no ano.
As acusações representaram cerca de 15% dos inquéritos findos; os despachos de arquivamento representaram cerca de 75% dos findos; os findos por outros motivos representaram cerca de 10%.
O haverem-se findado menos processos do que o número de entrados radica essencialmente na insuficiente resposta dos serviços administrativos do M.ºP.º, como infra se evidenciará, ao tratar dos atrasos."
Pelo que dele conheço, Boaventura Sousa Santos não é capaz de dizer o que lhe pareça demagógico. Como se sabe, entre outras iniciativas, são obras do seu sentido cívico, o Centro de Documentação 25 de Abril e o Observatório da Justiça. Os dados que relata são os obtidos pelas equipas que coordena e que trabalham por amor às causas. São equipas que podem errar, mas trabalham na investigação a alguns anos e o seu espírito, pelo que conheço, é (só e apenas) servir as causas em que se empenham. Todos os equívocos podem ser resolvidos pelo debate. Entretanto, outros Observatórios poderiam ser criados, mas a este tipo de iniciativas acontece muitas vezes o que acontecia aos mensageiros da antiguidade, cortavam-lhe a cabeça quando traziam más notícias. O BSS terá naturalmente muitos defeitos, cometerá erros e omissões, mas está a prestar um bom serviço (que mais ninguém foi capaz de prestar) a causas fundamentais à democracia. Porque o conheço, foi-me irresistível deixar de manifestar esta nota de homenagem e oxalá lhe sirva de estímulo.
Pontos de vista diferentes,sobre os quais não quero, nem é meu feitio, fazer processos de intenções.
Muitos manuais já se escreveram sobre técnica de comunicação e alguns sociólogos, como Bourdieu, procuraram desconstruir a arte do espectáculo na TV.Não penso que arremessando o epíteto "demagogia" ou "desonestidade" (que é mais chato!)se resolveu a questão dos problemas que aí foram levantados.
Em democracia é, como todos sabemos, para além de um regime de regras universalizáveis, também o regimer onde a argumentação substitui a imposição. Responde-se a argumentos com outros argumentos, contrapõem-se a um sentido das palavras outro sentido, se não estamos de acordo.O que não podemos é tomar os argumentos ou o sentido das palavras (que são diferentes ou contrários ao nosso ponto de vista) como uma conspiração. Já ninguém vai nisso!
Plenamente de acordo com o NS ( ras al ghul)!
A participação nos media falados e visionados deve ser feita conhecendo as regras da casa.
Aqueles programas de prós e prós sempre contra alguma coisa, não são para levar muito a sério, embora a maioria dos presentes se apresentasse com o ar circunspecto de quem estava no palanque de uma tribuna a ser escrutinado pelo passantes de comando na mão.
Assim, de facto, quem melhor soube gerir o seu tempo de antena, literalmente, foi o sindicalista dos funcionários judiciais. Disse pouco, mas disse claro.
O PGR disse muito mas embrulhado e explicitamente a convidar o espectador a ir deitar-se- o que aliás fiz, com gosto.
A participação num programa da daqueles só pode fazer-se ao nível de um Pinto Ribeiro, que aliás tem sido convidade frequente e que fala confundindo tudo e todos e trocando alhos com bugalhos sempre em nome dos direitos liberdades e garantias. Porém, faz passar a mensagem de modo claro, ainda que transtornado pelo equívoco permanente.
Para mim, uma boa participação naquele programa exige uma boa presença- afirmativa, destemida e segura. E exige um discurso taco a taco com as enormidades que se ouvem por vezes.
Assim, o ministro não levou para contar nada de novo- e merecia que alguém lhe dissesse que quem trabalha nisto não merece as invectivas de quem não sabe distinguir o papel da PGR, do do CSMP, como uma vez já deu provas e lhe foi mostrado até pela própria Odete Santos...
COm essa disparada á queima-roupa, aposto que não se atrevia ao que se atreveu.
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