11 maio 2005

BSS e a Taxa de Acusações

No programa “Prós e Contras” da passada segunda-feira, Boaventura Sousa Santos referiu, com escândalo, que a percentagem de inquéritos acusados é de apenas cerca 15%. A este assunto já muitas vezes se referiu Miguel Sousa Tavares, embora este o tenha sempre feito como fundamento para a necessidade da existência de um controlo jurisdicional sobre todas decisões de arquivamento de inquérito (*).

O número por si só não tem grande significado nem é motivo de qualquer escândalo. Reduzir a discussão apenas à percentagem de inquéritos acusados é só demagogia e não diagnostica qualquer um dos verdadeiros problemas que existem na investigação e na direcção do inquérito pelo Ministério Público.

Para que esta análise possa ser feita de forma honesta, há que distinguir os vários tipos de arquivamento que compõem os 85% dos processos que terminam nas mãos do Ministério Público. Não conheço nenhum estudo sobre a matéria, mas a experiência diz-me que desde logo há que distinguir entre os arquivamentos de inquéritos onde é conhecida (ou é possível vir a conhecer pelos elementos existentes) a identidade do autor do alegado crime daqueles onde tal não sucede (inquéritos contra desconhecidos).

Em verdade, cerca de 40% a 45% (consoante o carácter menos ou mais urbano da comarca) de todos os inquéritos respeitam a crimes cometidos por indivíduos de identidade completamente desconhecida. Normalmente respeitam a furtos de automóveis ou de objectos no interior destes, pequenos roubos por “esticão” e alguns furtos no interior de residências. São feitas as diligências possíveis (reconhecimentos fotográficos, exames lofoscópicos e de pesquisa de vestígios biológicos no local do crime ou seu objecto), mas raramente têm qualquer efeito útil. Pouquíssima culpa pode ser imputada ao sistema judiciário por estes números. O aspecto essencial é o da prevenção: por toda a sociedade em si (para integração social de todas as pessoas, principalmente os chamados "imigrantes de segunda geração"), por cada um dos seus membros (protegendo melhor os seus bens) e pelo sistema de prevenção policial.

Quanto aos primeiros, àqueles que em há um denunciado ou suspeito, que serão entre 30 a 40% de todos os inquéritos registados, há a referir que a maior parte deles termina com arquivamentos que não constituem qualquer problema e não podem ser objecto de qualquer crítica. Vejamos:
- Há uma grande percentagem de inquéritos que são arquivados logo no primeiro despacho (arquivamento liminar). Tal pode suceder por os factos participados não constituírem crime ou, constituindo, não ter o Ministério Público legitimidade para o procedimento (por não ter sido apresentada queixa ou não ter sido requerida a constituição de assistente, nos crimes de natureza semi-pública ou particular) ou este se encontrar já extinto (por prescrição, por apresentação extemporânea de queixa, etc.).
- Muitos outros inquéritos terminam por desistência de queixa.
- Muitos outros ainda são arquivados por ter sido recolhida prova bastante de não ter existido crime.
- Finalmente, há inquéritos arquivados após terem estado suspensos provisoriamente e o arguido ter cumprido todas as injunções impostas, assim demonstrando a desnecessidade de ser sujeito a julgamento e sofrer uma pena.

A parte restante é aquela em que o arquivamento do inquérito resulta de falência da investigação. Só esta deve motivar a nossa preocupação e pode ser consequência de muitos factores: falta de preparação técnica dos Magistrados do Ministério Público para efectiva direcção da investigação; falta de meios (legais e materiais) do Ministério Público para efectivamente dirigir a investigação; falta de preparação de alguns órgãos de polícia criminal para realizarem devidamente a investigação criminal; demora na investigação com consequente perda de prova (por atraso no despacho ou no seu cumprimento, sendo um e outro possíveis de acontecer por culpa da pessoa em concreto que o deve fazer ou pela falta de meios humanos e materiais). Cada um destes aspectos merece tratamento mais aprofundado. Como o texto já vai longo para um blog, fica para outra oportunidade.

(*) Note-se que todas as decisões de arquivamento de inquérito são passíveis de controlo: ou pelo juiz de instrução, se o assistente o requerer, ou pelo superior hierárquico, a requerimento de qualquer pessoa ou até oficiosamente (a Circular 6/2002 da PGR obriga à comuniação hierárquica de todos os despachos de arquivamento relativo a crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, o que permite esse mecanismo de controlo).

6 comentários:

Kamikaze (L.P.) disse...

Meu caro Rui: também reparei na afirmação (mais uma)gratuita de BSS sobre o "escãndalo" do nº de arquivamentos. Parabéns pelo oportuno , claro e objectivo post!

Kamikaze (L.P.) disse...

Do Relatório Anual (2004) da Procuradoria Geral Distrital de Lisboa (pontos A e B), que pode ser consultado na íntegra aqui e que inclui um mapa das pendências e análise das causa de atrasos (ponto E do relatório).

"Em 2004 iniciaram-se 203.132 (- 831 do que em 2003 em que o número foi de 203.963).

Do número de inquéritos iniciados, 86.417 foram contra agentes desconhecidos, ou seja estes inquéritos representam cerca de 43% dos iniciados.

Os crimes contra as pessoas representaram cerca de 22% dos iniciados; os crimes contra o património representaram cerca de 56%; os crimes contra a vida em sociedade representaram cerca de 6%; os crimes contra o Estado representaram cerca de 2%; os crimes de cheque sem provisão representaram cerca de 5%; os crimes de tráfico de estupefacientes representaram cerca de 1%; outros crimes representaram cerca de 8%.

Atendendo à natureza dos crimes, onde os inquéritos contra agentes desconhecidos atinge maior significado, é nos crimes contra o património. Na verdade, os inquéritos contra desconhecidos, em crimes contra o património, atinge cerca de 38% do total de iniciados (os inquéritos contra desconhecidos de outros crimes representam cerca de 5% do total de iniciados); os inquéritos contra desconhecidos por crimes contra o património representam cerca de 67% dos inquéritos tendo esta natureza de crimes por objecto."

"No ano de 2004 findaram-se 201.086, ou seja menos 2.046 que os iniciados no ano.

As acusações representaram cerca de 15% dos inquéritos findos; os despachos de arquivamento representaram cerca de 75% dos findos; os findos por outros motivos representaram cerca de 10%.

O haverem-se findado menos processos do que o número de entrados radica essencialmente na insuficiente resposta dos serviços administrativos do M.ºP.º, como infra se evidenciará, ao tratar dos atrasos."

Primo de Amarante disse...

Pelo que dele conheço, Boaventura Sousa Santos não é capaz de dizer o que lhe pareça demagógico. Como se sabe, entre outras iniciativas, são obras do seu sentido cívico, o Centro de Documentação 25 de Abril e o Observatório da Justiça. Os dados que relata são os obtidos pelas equipas que coordena e que trabalham por amor às causas. São equipas que podem errar, mas trabalham na investigação a alguns anos e o seu espírito, pelo que conheço, é (só e apenas) servir as causas em que se empenham. Todos os equívocos podem ser resolvidos pelo debate. Entretanto, outros Observatórios poderiam ser criados, mas a este tipo de iniciativas acontece muitas vezes o que acontecia aos mensageiros da antiguidade, cortavam-lhe a cabeça quando traziam más notícias. O BSS terá naturalmente muitos defeitos, cometerá erros e omissões, mas está a prestar um bom serviço (que mais ninguém foi capaz de prestar) a causas fundamentais à democracia. Porque o conheço, foi-me irresistível deixar de manifestar esta nota de homenagem e oxalá lhe sirva de estímulo.

Primo de Amarante disse...

Pontos de vista diferentes,sobre os quais não quero, nem é meu feitio, fazer processos de intenções.
Muitos manuais já se escreveram sobre técnica de comunicação e alguns sociólogos, como Bourdieu, procuraram desconstruir a arte do espectáculo na TV.Não penso que arremessando o epíteto "demagogia" ou "desonestidade" (que é mais chato!)se resolveu a questão dos problemas que aí foram levantados.

Primo de Amarante disse...

Em democracia é, como todos sabemos, para além de um regime de regras universalizáveis, também o regimer onde a argumentação substitui a imposição. Responde-se a argumentos com outros argumentos, contrapõem-se a um sentido das palavras outro sentido, se não estamos de acordo.O que não podemos é tomar os argumentos ou o sentido das palavras (que são diferentes ou contrários ao nosso ponto de vista) como uma conspiração. Já ninguém vai nisso!

josé disse...

Plenamente de acordo com o NS ( ras al ghul)!

A participação nos media falados e visionados deve ser feita conhecendo as regras da casa.
Aqueles programas de prós e prós sempre contra alguma coisa, não são para levar muito a sério, embora a maioria dos presentes se apresentasse com o ar circunspecto de quem estava no palanque de uma tribuna a ser escrutinado pelo passantes de comando na mão.

Assim, de facto, quem melhor soube gerir o seu tempo de antena, literalmente, foi o sindicalista dos funcionários judiciais. Disse pouco, mas disse claro.

O PGR disse muito mas embrulhado e explicitamente a convidar o espectador a ir deitar-se- o que aliás fiz, com gosto.

A participação num programa da daqueles só pode fazer-se ao nível de um Pinto Ribeiro, que aliás tem sido convidade frequente e que fala confundindo tudo e todos e trocando alhos com bugalhos sempre em nome dos direitos liberdades e garantias. Porém, faz passar a mensagem de modo claro, ainda que transtornado pelo equívoco permanente.

Para mim, uma boa participação naquele programa exige uma boa presença- afirmativa, destemida e segura. E exige um discurso taco a taco com as enormidades que se ouvem por vezes.
Assim, o ministro não levou para contar nada de novo- e merecia que alguém lhe dissesse que quem trabalha nisto não merece as invectivas de quem não sabe distinguir o papel da PGR, do do CSMP, como uma vez já deu provas e lhe foi mostrado até pela própria Odete Santos...
COm essa disparada á queima-roupa, aposto que não se atrevia ao que se atreveu.