03 maio 2005

"Seis = Medidas = Seis"

«O tema que vos proponho é o tema da Justiça - que é, sem dúvida, uma das prioridades do País e que requer uma atenção urgente do Governo e do Parlamento. E quero concentrar-me num aspecto particular do tema - o gravíssimo problema da morosidade da Justiça e do congestionamento dos Tribunais.» Assim começou o discurso do primeiro ministro no debate mensal na A.R. (29/4/05), no qual apresentou as "Seis = Medidas = Seis", e que pode ser lido na íntegra aqui.
Sobre as ditas, pronuncia-se o fugidio mangadalpaca©,
ali.

"O engenheiro José Sócrates veio anunciar na Assembleia da República seis medidas – seis, destinadas a «desbloquear o sistema judicial» por haver situações de «bagatelas processuais» que não teriam dignidade para que os Tribunais delas se continuassem a ocupar.

1. Reduzir as férias judiciais de dois para um mês.
Muito já foi dito. Acredita-se que, sendo uma medida emblemática de uma certa «teimosia política», apanágio do engenheiro Sócrates, poderia até ter algumas virtualidades, desde que enquadrada num pacote mais vasto de medidas: vamos ver se não terá resultados contra-producentes. A lógica de produtividade dos tribunais não tem a ver só com o(s) tempo(s) de trabalho. Poderia pensar-se em consignar algum tempo das férias judiciais para a necessária formação dos magistrados. Mas, isso nem sequer esteve nas argutas cogitações do governo (sabendo-se que a formação contínua dos magistrados é cada vez mais necessária). Por outro lado, se os trabalhadores judiciais não podem ser favorecidos, também não poderão ser prejudicados, face aos demais trabalhadores.

2. Aumentar o limite da não punibilidade dos cheques sem provisão para € 150,00.
Não parece mal, mas não pode ser verdade que esse tipo de processos ocupe o número de magistrados anunciado. O crime de cheque sem provisão perdeu expressão estatística (embora tivesse tendência para um recrudescimento). Por outro lado, aí apenas se constatará uma transferência de processos, do foro criminal para o foro cível, sem grande alcance para o sistema.

3. Suprimir a renovação automática das apólices de seguros.
Essa medida contrariará directivas internacionais em matéria de defesa de consumidores, e irá contrariar ainda mais os interesses das seguradoras. Vamos ver a sua viabilidade e eficácia.

4. Pulverizar por todas as comarcas, em função do domicílio do consumidor, o foro de apreciação das questões relacionadas com o (in)cumprimento de obrigações contratuais.
Esta medida não terá qualquer impacto, podendo até, nalgumas comarcas, perturbar o seu funcionamento, ao mesmo tempo que a sua redução nas comarcas «colonizadas» pelas empresas prestadoras de serviços (telemóveis, crédito ao consumo, etc.), que, de certa forma, se haviam «especializado», não será relevante.

5. Aumento do valor do procedimento de injunção para € 15.000,00.
O despacho dos processos transitará do juiz para as secretarias judiciais.

6. Conversão de transgressões em contra-ordenações.
As poucas que ainda existem, não são, de forma alguma, bloqueadoras do sistema. Se se está a pensar nas transgressões de passagem na Via Verde sem pagar, não vão faltar recursos e as subsequentes execuções das coimas, pois que essas dificilmente consentirão o pagamento no acto (para isso, teriam que posicionar vários carros-patrulha da BT em cada portagem).

Em suma - Não serão significativos os impactos destas seis-medidas-seis. Trata-se de um primeiro pacote, é certo. Mas o que não se pode é deixar de constatar uma clamorosa contradição de princípio: o engenheiro Sócrates queixou-se de que o sistema judicial prejudicava a eficácia (ou eficiência? Acho que ninguém sabe!) do tecido económico e empresarial. Mais uma providencial descoberta para justificar sucessivos erros de políticas económicas e fiscais, para não falar da falta de modernização dos empresários (continua a ser a única categoria profissional sem exigência de um mínimo de qualificações) e das empresas, mas enfim, o que é preciso são apoios do Estado e fundos da U.E., para não se entrar em colapso económico, tudo por culpa do sistema judicial…Simplesmente, estas anunciadas medidas, se bem repararem, não são nada amistosas da instrumentalidade que o sistema judicial era suposto assegurar «ao serviço da economia». Pelo contrário. Vão ser altamente lesivas dos interesses de muitas empresas.

P.S. - Há tempos, escrevemos um post sobre o «Esplendor do Direito Penal do Inimigo», criticando a proposta de rusgas policiais acompanhadas por magistrados, anunciada pelo ministro A. Costa (o outro, o ministro de Estado). Ao que parece, o dr. Costa veio fazer mea culpa, reconhecendo que, afinal, tinha «laborado em erro». Regista-se, com justiça, a assunção do erro, a ser sincera…Daí que se diga: um pouco mais de coerência. Ou, pelo menos, de reflexão."

mangadalpaca©

5 comentários:

Kamikaze (L.P.) disse...

Outras opiniões, desta feita aqui no Incursões: ver o post do Rui Cardoso e comentários.

Kamikaze (L.P.) disse...

Férias judiciais - Estudo Comparativo entre 28 países europeus: ver no site da ASJP

Kamikaze (L.P.) disse...

Conforme já referido no postal de Rui Cardoso, segundo o Público,
o Dr. António Cluny, presidente do SMMP, opinou assim:

"Sindicato dos magistrados congratula-se com medidas anunciadas pelo Governo
29.04.2005 - 15h42 Lusa

O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), António Cluny, considerou hoje "genericamente positivas" as medidas para o descongestionamento dos tribunais apresentadas no Parlamento pelo primeiro-ministro.

António Cluny considerou, contudo, que algumas das medidas "pecam por timidez", não indo tão longe quanto o desejável.

Um dos casos indicados relaciona-se com a actualização para 150 euros do valor abaixo do qual não constitui crime o cheque sem provisão (anteriormente este valor era de 75 euros).

Nesta matéria, o procurador-geral adjunto mostrou-se favorável a uma despenalização total do cheque sem provisão, passando a responsabilidade a ser dos bancos, que teriam de repor os valores contidos nos cheques entregues aos seus clientes.

"É o que acontece na maioria dos países europeus", justificou Cluny.

Uma das medidas anunciadas por José Sócrates para o descongestionamento dos tribunais que mais agradou a António Cluny foi a escolha da residência do consumidor para a determinação do tribunal competente nas acções relativas ao cumprimento de obrigações (contratos de prestação de serviços, por exemplo).

"Esta medida vai aliviar comarcas judiciais onde existiam sede de empresas, designadamente de telecomunicações", que entopem os tribunais com todo o tipo de litigância com os clientes, explicou António Cluny.

Com este novo critério da residência do consumidor para definir o tribunal competente para analisar o litígio, passa a haver uma maior dispersão dos conflitos e menor concentração de processos num único tribunal.

Embora considere que não são medidas de fundo para a Justiça, o presidente do SMMP referiu que têm o mérito de serem "respostas rápidas a meia dúzia de questões que estavam a estrangular o sistema" e o funcionamento dos tribunais.

Quanto à insistência do Governo em criticar os dois meses de férias judiciais de Verão, Cluny disse ser altura de se organizar melhor os turnos que funcionam nos tribunais durante esse período.

"Dar maior substância" e eficácia a esses turnos é um dos caminhos alternativos apontados pelo presidente do SMMP para suprir eventuais dificuldades surgidas nesse período."

No site do SMMP, contudo, apenas se faz referência a outras opiniões veiculadas na imprensa, que podem ser lidas.

Kamikaze (L.P.) disse...

Posição do Bastonário da OA sobre as propostas governamentais

03-05-2005

“O bastonário da Ordem dos Advogados considerou que na maioria dos casos as medidas hoje anunciadas pelo primeiro-ministro para descongestionar os tribunais são "arranjos de pormenor", embora algumas soluções sejam "oportunas e positivas".

Em declarações à Agência Lusa, Rogério Alves disse ainda que estas medidas "caracterizam-se por um erro de omissão, porque nas medidas mais urgentes tinha de estar a reforma da acção executiva (cobrança de dívidas e penhoras), que foi relegada para segundo plano".

O bastonário mostrou-se "surpreendido" e criticou o facto de as medidas hoje apresentadas no Parlamento por José Sócrates não terem sido alvo de qualquer espécie de consulta prévia junto da Ordem dos Advogados (OA), sendo certo que "a OA distingue perfeitamente o que é a opinião dos advogados e o que será a futura decisão" do Governo.

Outra das críticas de Rogério Alves vai para o facto de no pacote de medidas apresentadas pelo primeiro-ministro não figurar matéria relativa ao Acesso ao Direito/Apoio Judiciário, bem como sobre as Custas Judiciais.

Quanto às medidas anunciadas, o bastonário aponta como positivas a escolha do critério da residência do consumidor para determinação do tribunal competente nas acções relativas ao cumprimento de obrigações e que o procedimento da injunção (processo simplificado de cobrança de dívidas) seja alargada e utilizada para crédito até 15 mil euros.

Em relação à decisão de actualizar de quinze contos (62,50 euros) para 150 euros o valor abaixo do qual não constitui crime o cheque sem provisão, Rogério Alves acha que a medida devia ter sido outra: "De uma vez por todas, devia ter-se acabado com o crime de cheque sem provisão, em vez de manter esta agonia lenta".

A alternativa seria assim, na opinião do bastonário, fazer a cobrança da dívida contida nos cheques sem provisão através dos meios cíveis.

Quanto à questão das férias judiciais, Rogério Alves defende que, quando o sistema estiver organizado, houver contingentação (número limite) de processos por magistrado, as agendas organizadas e os turnos de férias devidamente estruturados, ou seja, quando as férias não forem mecanismos para recuperar atrasos, então as férias poderão ser reduzidas.

"Mas ao começar por reduzir as férias sem primeiro organizar o sistema de funcionamento dos tribunais, esta medida pode até ser negativa", alertou.

O bastonário considerou ainda que a celeridade da justiça não pode ser obtida à custa de supressão de meios e da redução das garantias dos particulares, numa alusão à intenção do Governo em rever o regime de recursos para os tribunais superiores.”

Kamikaze (L.P.) disse...

Pois pois, meu caro, diz bem: de escárnio e mal dizer em pessoa, que isto de blogs acaba por ser um pouco politicamente correcto, né? Ah, bem vindo o seu espírito irreverente, mas não faça como o Miguel Sousa Tavares, seja mais atento. Exemplifico:
1- o artigo do Público estava acessível no post do Rui Cardoso, através de link (mistério!)
2- quanto às agendas do dr. Cluny nada posso adiantar, mas o SMMP foi célere na tomada de posição (sustentada) sobre as propostas (já deixadas cair) do Ministro António Costa. Há destaque no site do SMMP e aqui no Incursões foi feito post a propósito.

Tunga!:)