20 novembro 2005

Diário Político 7

A visita da Velha Senhora


Ao contrário da de Dürrenmat, esta Velha Senhora existe, está viva e bem viva, apesar dos quase 95 anos que carrega. Reina com serena bonomia e melhor apetite sobre uma tribo de 5 filhos ainda vivos, 16 netos, 21 bisnetos e um trineto, contas feitas por baixo. Nasceu quando o século XIX se despedia e, com ele, uma imensa fortuna acumulada nos sertões de Huila. Aos 16 anos embeveceu-se por um garboso militar e com ele partilhou vida e aventuras, sentiu o cheiro da pólvora bem de perto, pariu filhos a centenas de quilómetros da civilização, em sua casa recebeu presidentes da república e beleguins da "benemérita" que lhe buscavam filhos e netos. Resistiu a tudo com rijeza, humor e coragem. Agora apoia-se na bengala e só pede mais uns anos de vida para que os bisnetos mais novos e o trineto a conheçam bem e a recordem melhor.

Na família aposta-se sobre a idade em que nos deixará e os mais pessimistas acham que ela não passará dos 110 anos. Ela finge que não nos ouve, vai fazendo as suas rendas e contabiliza com feroz exactidão os namoros das bisnetas.

É pois este o apressado retrato daquela a quem alguns dos netos chamam a "Velha Senhora".

Apresentada vejamos a que vem a visita que titula o folhetim. Foi assim:

Nos idos de 67, se a memória me não falha, a "benemérita" entendeu alojar a expensas do Estado dois membros da família - mais precisamente um filho e um neto da Velha Senhora respectivamente tio e irmão deste que ora traça estas frouxas linhas.

Apanhados de surpresa, reunimo-nos uns quantos familiares sob a égide de uma tia aventureira e depois de breves considerações entendemos que a gravidade das acusações que impendiam sobre os nossos presos não permitia escondê-las da Velha Senhora que, na altura, se aproximava, com garbo, dos 70 anos.

Não era fácil explicar, mesmo a quem, nesses anos de chumbo, lia e propagandeava Rúben A (!!!) e Cardoso Pires (que ela sempre chamou, vá lá saber-se porquê, Pires Cardoso) a prisão política, a aventura maoísta e a necessidade de a família não só se mostrar unida mas, sobretudo, orgulhosa e solidária a 110 por cento com os encarcerados.

Dessa delicada tarefa encarregámo-nos a tia Nené e eu. A anciã ouviu-nos um par de minutos, declarou-se satisfeita e apta, contou-nos uma história do Paiva Couceiro e ala que se faz tarde rumo a Caxias-sur-mer.

Uma vez chegados e cumpridas as formalidades de usança, eis que nos prantámos os três frente ao parlatório onde surgiu, lívido e insone, o meu conspirativo irmão. A Velha Senhora olhou-o atentamente, reprimiu emoções e indignações e, na bela voz de contralto forte que lhe conhecíamos, disse-lhe: "Ó Tanézinho não sabia que eras bolchevista. Porque é que nunca contaste isso à Avó?"

O agente que nos guardava estava esbugalhado e desesperado por entender. Eu sentia, de repente, uma vontade louca de rir, gritar alto. Quanto ao meu irmão, o sangue ia-lhe comendo paulatinamente a palidez de tanta noite sem dormir, os olhos desencovavam-se e, longe, lá atrás, ouvia-se - juro que se ouvia - ténue mas segura, a "Internacional".

A Sua bênção Velha Senhora!



esta croniqueta, cometida nos idos de 95, não é de nenhum modo inédita mas, valha a verdade, o livrinho onde ela corre teve pacatíssima difusão, digamos mesmo confidencial. Provavelmente também não merecia mais. A Velha Senhora entretanto morreu aos 97 anos cercada do carinho de filhos netos e bisnetos e é sempre relembrada com alegria. E com um imenso e desconforme orgulho: nós somos assim: pobres mas imodestos.
Com licença dos leitores será seguida de uma segunda parte.

Sem comentários: