06 janeiro 2007

Estes dias que passam 43

Confissão tardia de algo que as leitoras já sabiam,
passeio pela infância e desabafo
ou três em um, como nos saldos da época

Eu sou um trapalhão. Um trapalhão velho e obstinado. Uma espécie de dinossáurio repetente que só não passa a fóssil porque alguém se esqueceu de o avisar que os da sua espécie são apenas um motivo para filmes de terror em Hollywood. Coisa aliás perfeitamente natural em Hollywood ou, pelo menos, de acordo com o nome. Onde é que poderia haver dinossáurios senão num Bosque Sagrado?
Só que o meu bosque sagrado já não é. Em tempos eventualmente mais felizes porque eu era menino e o meu universo cabia entre o rio e a serra, por trás da minha casa, entre Buarcos e Figueira, no sítio chamado Praia (e antes Palheiros, mas já lá iremos...) havia uma grande mata. A mata de Sottomayor. Digamos que aquilo eram quarenta ou cinquenta hectares (para quem sabe o que isto é) de árvores enormes, cedros, abetos, pinheiros, teixos, alguns eucaliptos (já!) e outras tantas acácias. No meio umas esplendorosas figueiras que no momento azado davam figos suculentos que nós (o Nélito, os irmãos Esteves, os Neves e mais uns quantos) fanávamos sob o olhar risonho de um par de guardas. –“Lá anda a garotada aos figos... “ – “Mais trabalho para o dr. Marcelo...”
E, maravilha das maravilhas, na mata entre figueiras, um forte. Enfim, um forte não, um baluarte! Um baluarte com ameias enormes. O baluarte de Palheiros, que era esse o seu verdadeiro nome. Para quem não teve a bênção de viver a sua meninice entre o parque de Sottomayor e a praia, convém explicar que este posto militar foi erguido cerca do século XVII para “cruzar fogo” com o castelo de Santa Catarina que guardava a foz do rio Mondego e as muralhas de Buarcos que protegiam a enseada. Terá sido erguido durante os Filipes ou mais tarde por ordens de Castelo Melhor o grande ministro de D João IV.
E “Palheiros” porquê? Ora provavelmente porque por esta linha de areia entre a mata e o mar se terão erguido pequenas casas de madeira, de pescadores de passagem ou da terra, com o seu andar térreo em vão para guardar botes, lanchas ou bateiras. Palheiros como os de Ovar e da costa Nova ou do Cabedelo, do outro lado, entre a Gala e a foz do rio.
Com o progresso os palheiros terão dado lugar a casas feitas de mais sólido material e assim se perdeu o topónimo.
Fundamentalmente, o baluarte, destinava-se a repelir a piratagem, fosse ela barbaresca ou inglesa. Depois, os anos passaram, as duas povoações cresceram, foram lançando casas uma contra a outra até se encontrarem por aqui, na Praia. O baluarte, inútil foi invadido pelas úteis figueiras. E para trás os Sottomayor mantiveram a bela tapada cheia de árvores (em parte transformada em parque infantil e local de merendas) até ao seu palácio edificado já nos fins do século XIX ou mesmo depois, não sei, nem me interessa.
O que me interessa é que durante cem, duzentos ou trezentos anos, entre a praia e a estrada para Tavarede e para os Quatro Caminhos, havia uma mata, que para nós meninos, era uma floresta. E que essa mata aguentou tudo, fogos, talas, queimas, ambições até aos anos oitenta do século passado. De repente, a Figueira foi assolada por uma gentuça de caninos longos e olhos rapaces. Compraram tudo o que podiam comprar. Para modernizar diziam. Que a cidade parara no tempo, que o século XIX já lá ia, que os anos trinta e quarenta eram passado (era verdade!) que os cinquenta e os sessenta tinham assistido ao triunfo dos algarves e que era preciso betão, muito betão para transformar uma cidade amável e pequena numa espécie de Albufeira de segunda, sem o calor sufocante, sem os ingleses pé rapado, sem perceber que a costa de prata não pode competir com outras costas mais a sul mas que deve procurar o seu próprio caminho de estância turística...
E quando viram uma mata, gozo de gerações de garotos, refúgio de outras tantas levas de adolescentes namoradeiros e pecadores, descanso de idosos que picnicavam entre as árvores, vá de arrasar tudo, de talar tudo, de betonar, de erguer ruas tristonhas de andares com apartamentos fechados onze meses em doze. O crime, se foi perpetrado por estranhos, por aves de arribação e mau agoiro, teve todavia cúmplices na terra, uma quinta coluna de exaltados cidadãos que em nome do imediato rebentaram com muito do futuro possível e com todo um passado.
Quem quiser ver uma terra a saque faça o favor. A Figueira espera por si.
Mas tudo isto, esta jeremíada sentida, vem a propósito de quê? Ora de mim, das minhas trapalhadas, dos títulos dos meus textos, melhor das séries onde os vou colocando às vezes arbitrariamente. E de facto tudo o que queria era comunicar pesaroso que a série “Estes dias que passam” (e não “que correm”, como alguma vez escrevi) tinha até hoje dois números 45 e outro par de 46. Já corrigi! Não que isso importe muito os leitores, se os há, excepção feita ao Manuel Sousa Pereira que lê e imprime, estoicamente, as minhas balivérnias. Esta correcção (a enésima desde que por aqui escrevo) é para ver se ele não me volta a azucrinar o bichinho do ouvido. Trapalhão sempre, mas disposto a reparar o que pode ser reparado. Ao contrário dos espertalhaços que chegam a uma terra, sugam-na até ao tutano e desandam quando já nada mais podem tirar dela.
A propósito: o texto já estava pronto desde há dias mas esperava data propícia para aparecer. Acontece que o “Público” fala hoje em duas páginas de Buarcos. Vamos andando que não diz nada de errado. Todavia, por muito buarquense que seja, tenho de dizer que se algum dos leitores quiser comer da mais autentica cozinha marinheira faça o favor de passar o rio, entrar na Gala em direcção da praia e perguntar pelo “Carrocel”. E peça um dos pratos com nomes esquisitos. E dê-me depois notícias!
Um texto sobre o Heimat (mais uma alemoada, leitor Ferreira, isto quer dizer terra natal, região) tinha de ser dedicado aos figueirenses, antigos habitantes da “praia”: Ana Leal de Oliveira, Rosa Carlos, António Pinguel e Octávio Correia Ribeiro. Sem esquecer Maria Manuel Viana, nascida e crescida mais lá para a cidade. Azar dela! E em memória de Marcos Viana, homem de cultura, de honra e fino conhecedor da gastronomia regional.


5 comentários:

O meu olhar disse...

Não há muito tempo passei as minhas férias de verão em Buarcos. Gostei muito mas, de facto, não vi nenhuma mata, apenas arruamentos e prédios. Percebo bem a sua nostalgia. O que fizeram e ainda fazem a este país ao nível urbanístico é uma vergonha. Dão cabo do nosso melhor capital e para quê? Para, como diz e bem, termos prédios de janelas fechadas onze meses no ano e, claro, para ver o poderoso clube dos especuladores imobiliários enriquecer.

ferreira disse...

Caro Marcelo, Heimat ( palavra bonita! o som do alemão sempre me pareceu gutural, mas é por não o entender... Heimat, lê-se com gosto e prazer).
Olhe, na minha Heimat da meninice, havia, também, a praia, que era, e é, um lugar da freguesia, que dista daquela apenas 3Km.Mas no verão mudavamos as bagagens para a «praia », o meu avó tinha um palheiro (não era pescador ), era uma especie de casa de férias grandes.Ia se para a Praia, e tinhámos os amigos da Praia. Quando se ia à freguesia, propriamente dita, dizia-se « vamos à Terra ». Também já me perdi... conta-se que os palheiros vieram para a Praia arrastados por juntas de bois, por mais de 6 Kms. O areal era parecido com o da Figueira da Foz, a perder de vista, hoje mal dá para estender uma toalha. Actualmente ainda resistem uma meia dúzia de exempares ( continuam como casa de férias de alguns, só para o Verão ). A Floresta ainda está muito aceitável ( »fazíamos cabanas»...), mas isto só porque nas cercanias existe uma base militar da Nato, e não se pode construir muito, males que veem por bem. Mas , hoje, mesmo depois de ler o seu postal, fui ver o mar, e verifiquei que andam a cortar arvóres...para alguma coisa será.
Um grande abraço

A Minha Aldeia, António Gedeâo

«... a minha aldeia é todo omundo.
todo o mundo me pertence.
aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence...»

ferreira disse...

Ao som de « Black and tan fantasy », L.Armstrong e D. Ellinton, the great summit.

M.C.R. disse...

Meu Caro leitor
eu gosto muito da palavra leitor porque é isso que fundamentalmente sou: um leitor incansável sempre a garimpar o texto alheio à procura de uma pepita mesmo pequenina. Por isso o "leitor". E está, caro Ferreira, em muito boa companhia: para não falar de outros (e quanto gostaria de os conhecer a todos) há os casos paradigméticos de José - o leitor malicioso que me põe de vez em quando à rasca a dar às meninges - e o Manuel Sousa Pereira que não só me escreve mas que volta que não volta pranta-se cá em casa e zás! discute os meus textos. aliás esse doido até me imprime, coisa que confesso, me dá muito gozo!.
Mas vamos ao que interessa: eu penso que o litoral todo, ou pelo menos este da chamada costa da Prata que começara em Gaia e acabará lá pelas alturas da Ericeira ou antes em S Pedro de Muel, tanto faz, caracteriza-se por isto: mar bravo, vento norte, água relativamente fria boa para sardinhas e camarão da costa, afloramentos dunares e pesca artesanal. Às tantas sucede o mesmo noutras partes. As comunidades de veraneantes são regra geral semelhantes e os atentados à costa identicos. Ou seja de parentes pobres do país passámos a vítimas da agressão construtiva.
O resto é, com pequenas alterações o que vou debitando: os grupos de amigos que se foram formando que creceram juntos e uma ténue mancha melancólica quando olhamos para trás.
eu sou apenas o cronista menor dessa transformação pouco entusiasmante.
Heimat, com letra grande sempre por ser substantivo é de facto uma noção complexa que engloba a terra natal e ao mesmo tempo o território circundante onde viverm amigos familiares e as tradições são identicas. Provavelmente será o que os espanhois designam por "patria chica". A patria em alemão é o Vaterland (a terra dos nossos antepassados) e não contém a doçura do Heimat.
bonito o poema do Gedeão!

ferreira disse...

Obrigado, MCR. Só não lhe pago as lições de Alemão.Há!Há!:-)
Abraço