26 outubro 2008

O leitor (im)penitente 41


A minha avó era uma leitora sui generis. E uma contadora de histórias absolutamente abracadabrante. Capaz de tudo por um final feliz, um final como os que outrora uma escrava lhe contava. Uma escrava comprada para entreter a menina acabada de nascer. Uma escrava dirão? Sim, uma escrava ou algo igual e da mesma substância. As leis generosas e anti-esclavagistas só funcionavam em escassos sítios do Império e seguramente não funcionavam nesse Sul de Angola povoado por tchicoronhos (madeirenses), boers audaciosos e portugueses fugidos do Brasil onde um nacionalismo recente e exaltado não aceitava os portugueses que não adquiriam a nacionalidade brasileira.
A avó, além de contadora de histórias, tinha um fraco por pôr alcunhas. Era mesmo mortífera nesse exercício. Ainda me lembro de um desinfeliz a quem ela apodou de “batata rim”. A criatura nascera para aquele nome!
As escolhas literárias da avó, já o disse, eram inesperadas. Gostava do Ruben A (nos anos 60!...) e de um autor que nos deixava ( a mim e ao meu irmão) perplexos: Pires Cardoso. É que não conhecíamos ninguém com esse nome. O mistério durou algum tempo. Mais propriamente até ao dia em que ela exasperada pela nossa ignorância nos deixou um título: “O anjo ancorado”.
Mas é o Cardoso Pires, bradámos! Ou isso, respondeu a Avó que se tinha apoderado de uma “Retirada dos 10.000” na versão de Aquilino Ribeiro que me tinha sido oferecido por uma namoradinha chamada Judite. E continuou a ler.
Felizmente não conhecia Shakespeare, pelo menos em versão erudita, senão ainda nos tinha atirado com “o que é “um nome?” do Romeu e Julieta, para nos provar que a sua distracção quanto a identificações era uma mera formalidade dispensável entre pessoas de bem.
Lembrei-me de tudo isto ao ler hoje um belo texto de Vasco Pulido Valente sobre o Zé Cardoso Pires.
Eu também faço parte dessa confraria entusiasta de leitores. E isso desde um dia tristonho no colégio Almeida Garrett onde penava e tentava sobreviver lendo tudo o que me passava ao alcance. Numas das raras saídas autorizadas (para um concerto da Juventude Musical vira na livraria Divulgação (hoje Leitura) o livrinho, acabado de sair e, sem saber do que se tratava, gastara a mesada na compra do voluminho. Há exactamente cinquenta anos! Cinquenta anos em que gastei três edições do anjo. Uma dada como penhor de amorios juvenis, a segunda desaparecida por Coimbra, sabe-se lá graças a quem e a última comprada logo a seguir (pela data que ostenta) e que por milagre ainda habita uma estante da biblioteca junta com toda a restante produção do Zé Cardoso Pires.
Conheci-o mesmo e falei com ele um escasso número de vezes. Numa delas contei-lhe a confusão de nomes em que a minha avó persistia. E aproveitei para lhe pedir uma dedicatória um “Delfim” antecipadamente comprado na Opinião para oferecer à Velha Senhora. Nessa noite gloriosa, na “Trave” dos irmão Jaime e Santos, o Zé Cardoso dedicou com palavras carinhosas o seu livro para uma senhora de oitenta anos e assinou “José Pires Cardoso”.
What’s a name? That which we call a rose
By any other name woud smell as sweet

3 comentários:

josé disse...

Este texto é bem melhor do que o do VPV. Has wit.

josé disse...

Copiei e colei. E dou conta.

M.C.R. disse...

querido José: não é não! Mas fico babado e agradecido à mesma.