27 fevereiro 2005

Uma forma superior de estar na vida

Dizer que "fazer poesia é uma forma superior de viver ou (e talvez de forma mais correcta) "estar" na vida" significa para mim o seguinte:
1. vive melhor quem se distancia do imediato e pragmático. O poeta sabe trabalhar o conceito (instrumento de apropriação da realidade e, por isso, da vida) da forma mais significativa e isso faz com que o que diz tenha um horizonte de sentido mais distante: vai mais longe e ajuda-nos a ver a realidade do outro lado, do lado das musas e as musas, convivendo com as divindades, vão às essências das coisas
2. O "mundo da vida" vivida pelo poeta tem uma expressão artística. E a expressão estética é uma expressão criadora, capaz de dar “nova vida” à realidade e com isso abrir novas formas de ver, sentir, sofrer e amar.
3. Os poetas estão próximos dos deuses, como já referi. Por alguma razão a linguagem do mito, dos profetas, é uma linguagem metafórica, impregnada de poesia. Quem não sente que há poesia, por exemplo, no génesis?!...
4. Concluindo: a linguagem poética tem um sentido que transcende o imediato, expressa, por isso, uma forma superior de estar na vida.

Compadre Esteves, in comentário a este postal.

15 comentários:

Kamikaze (L.P.) disse...

Compadre, espero que não me leve muito a mal o abuso de passar a post um comentário. Pareceu-me que estas suas palavras mereciam bem ter mais visibilidade, ser mais partilhadas, é tudo quanto tenho a dizer em minha defesa :(

Primo de Amarante disse...

Pelo contrário, querida amiga.

Silvia Chueire disse...

Caríssimo compadre,

No meu comentário ao seu comentário houve uma falha imperdoável, eu escrevi sobre a “forma superior de vida”, quando devia ter escrito (seguindo o seu raciocínio) “forma superior de estar na vida”. Porém isto não muda o fundamental no qual discordamos. Mantenho inclusive a minha interrogação, agora mudada para corrigir meu erro : interrogo-me mesmo se é uma forma de estar na vida.

Vamos por pontos, seguindo o seu caminho:

1- Sim, também penso que vive melhor quem consegue estabelecer um trânsito entre o pragmático e o sonho. O poeta, teoricamente trabalha o conceito para o apropriar em suas outras formas. Se é que ele se dá conta disto. Estas outras formas são categorias presentes no mundo de todos. Ao poeta cabe (se é que se pode usar este termo) apresentá-las, ou seja, reconstruir ou desconstruir o conceito, (re) vesti-lo e colocá-lo em palavras. E palavras inteligíveis. A mim parece que a eficácia do poema reside em que ele dirá algo que o leitor já sabe, tocará na questão que o leitor já perguntava, ainda que não fosse percebida. Ou seja, o poema ecoa no peito, na mente, de quem o lê porque já estava lá. O talento do poeta é colocar aquilo em palavras, abrir ao leitor o seu próprio (do leitor) íntimo. E nisto reside sua tentativa de transformar o mundo. Transgredindo, subvertendo, muitas vezes.
2- Sim, a expressão do poeta é resultado de criação. Esta capacidade de traduzir em palavras o que o olhar sensível vê, é criação. Tudo que vemos, que vivemos no mundo e fica impresso em nós pela sensibilidade - a beleza, as circunstâncias e suas vicissitudes, as histórias, os sentimentos em geral, as vivências mais íntimas - é vivido por todos nós. A alguns marcam mais, o que vêem, geram reflexões, interrogações. Costumamos achar que estas são as pessoas mais sensíveis, ou as que puderam exercer sua sensibilidade. Qual a vantagem do poeta sobre as outras criaturas igualmente sensíveis? Volto ao meu argumento: é o sujeito capaz de colocar em palavras o que sente, o que percebe. E palavras que tenham musicalidade, que sejam uma reconstrução, que atinjam o outro com o máximo de eficácia. Sabemos todos que os poetas escrevem para ser lidos. Mas sabemos também que escrevem por razões outras, várias. Desde a catarse, até a necessidade pessoal de pensar o mundo de um modo que não é (mesmo que acabe sendo) filosófico. Assim, o poema tem que ser também para o poeta, eficaz. No sentido de dar conta destas outras necessidades tão individuais, dele mesmo. As musas existem na linguagem poética. Só aí têm sentido. O compadre foi poético.
3- Não me parece que os poetas estejam próximos dos deuses. Arriscaria dizer, isso sim, que os homens que escreveram sobre deuses, mitos, profecias, estavam eles sim, próximos de serem poetas, certamente próximos da poesia. Tenho dos poetas o mesmo conceito que tenho de qualquer outro homem ou mulher. Bem, talvez conceda dizer que, de qualquer outro homens ou mulher que exerça seu ofício com talento. Não são pessoas especiais. São pessoas com alguma sensibilidade e um talento específico: terem apropriado uma linguagem e as palavras que a escrevem.
4- Concordo que a linguagem poética busca um sentido que transcenda o imediato, mas não que expresse uma forma superior de estar na vida. Esta linguagem expressa, no meu entendimento, parte da nossa humanidade, do nosso olhar para o mundo. Numa estética muito própria e que varia com a cultura, e o tempo. Como acontece com outras linguagens de expressão artística.
Com tudo isso o que eu quis dizer é que: sou a favor da desidealização da figura do poeta, da desmitificação do poema. Mas sou completamente a favor do poema. : )
E que me perdoem, o compadre e todos pelo tamanho deste comentário.

Abraços,
Silvia Chueire

Primo de Amarante disse...

Magnifico o seu comentário. Eu vou-lhe dar uma resposta. Só espero que a kamikaze link a sua posição. Só vim aqui por uma espécie de reflexo condicionado. Estou com pressa: vou passear com a minha Mondego (uma perdigueira de Vilar de Perdizes)até à serra de Aboboreira, nas fraldas do Marão, por onde passou um bom poeta e filósofo: o Teixeira de Pascoais.Aliás vou andar bem perto de uma sua casa, onde se diz que também dormiu Camilo. Quando vier, passarei a escrito algumas consideração sobre o seu comentário. Mas, a querida amiga faz teoria e isso tem um significado muito importante--não fala por falar, mas sabe do que fala. Até breve!

Primo de Amarante disse...

Cheguei!!!!!

Respondendo à Eugénia, com simpatia.

1.Afirma: “o poema diz algo que o leitor já sabe, tocará na questão que o leitor já perguntava, ainda que não fosse percebida”.
Penso que tudo isso é verdadeiro, mas não chega. Na verdade, os problemas do homem são problemas da humanidade e um poema é como uma semente que já tem nela a árvore que a produziu. Mas não é isso que verdadeiramente define um poeta. A linguagem poética é vitalmente metafórica. Por isso, a realidade apreendida pelo poeta ganha uma dimensão intemporal. Como sabe, o tempo é implacavelmente destruidor da beleza. Só há amantes eternos na poesia, porque esta se coloca fora do espaço e do tempo. Os “persistentes” podem gostar um do outro, mas não vivem eternamente o encantamento da beleza. E eu falo com experiência feita.
2.Interroga-se: “Qual a vantagem do poeta sobre as outras criaturas, igualmente sensíveis?” E responde: “é o colocar musicalidade nas palavras que expressam o que sente”.
Penso que é mais do que isso. O poeta tem dentro da sua imaginação uma visão harmónica do mundo e a musicalidade das suas palavras não é colocada, mas faz parte de uma espécie de afinação da sua sensibilidade. Fazer poesia é como tirar de uma harpa os sons que já lá estão. Talvez, por isso, o poema é sobretudo a alma do poeta. Por alguma razão são intraduzíveis os melhores poemas.
3. Não concorda que os poetas estejam próximos dos deuses. Não o afirmei de uma forma literal. O que eu queria dizer é que, sendo o poema uma sublime imagem da vida, os poetas são instituidores duma espécie de hierofania --manifestação de uma verdade inalcançável,de ordem divina ou religiosa.
A propósito, comentava há dias o blog da Amélia, dizendo que perante a beleza dos poemas que a Amélia lá colocou eu sentia, como Moisés, uma voz que me dizia: “tira as sandálias, porque a terra que pisas é sagrada”. O deslumbramento de um bom poema faz-nos sentir uma certa adorabilidade. Dizia Shelley, na “Defesa da Poesia”: “um poeta é um rouxinol que na escuridão canta a sua própria soledade com doces gorjeios”. Esse maravilhoso tem uma carga religiosa até no sentido moral: pois apela-nos a uma imitação ou identificação, constituindo uma espécie de excelência que deve orientar a vida. Aliás o belo esteve sempre equiparado ao bem. O bom gosto sempre se associou aos bons costumes.
4. Afirma: “A poesia expressa parte da nossa humanidade”. Penso que isso é também muito redutor. No meu entender, a poesia desce o véu que oculta a beleza do mundo, da nossa relação com a vida e os outros. Transfigura o nosso quotidiano, dando-lhe uma dimensão transcendente (universal). Por isso, não se pode ser pelo poema sem ser por uma certa idealização do poeta. Bocage, ao sentir a morte, escreveu: “já Bocage não sou…”. De facto, a incorporação do poeta é, de certa forma, a desidealização do poeta. O poeta vivo pode, inclusivamente, ser um paradoxo da sua poesia. Há poetas que são uns estafermos.Mas,o poeta, tal como o entendo,é a sua alma, o seu espírito e esta configura a sua poesia para além da morte física do poeta.E convive com os deuses ou, pelo menos, com as musas!

Um abraço, caríssima Poeta.

Silvia Chueire disse...

Respondo-lhe com um sorriso e de forma bem abreviada, para que a discussão não se prolongue de modo a cansar algum eventual leitor. : )
Mantenho ainda a minha posição. Ainda que tenha entendido que o compadre tem uma visão poética do poeta e minha visão é mais objetiva(pragmática?).
Agora, cá entre nós, pinçar umas frases minhas para rebater meus argumentos como se eles fosses assim redutores, compadre, francamente... : )
Abraço,

Silvia ( divertida)

Primo de Amarante disse...

Se calhar não fui feliz no estilo. Mas não concordo, mesmo nadinha, que a Comadre se diga pragmática. Ou, então, damos ao pragmatismo significados diferentes.
Um abraço

Primo de Amarante disse...

Já me advertiu a Kamikase que teria sido injusto para consigo e é o que destesto fazer. Não quero voltar a cometer injustiça. Até porque este seu comentário, carissima Marinquieto, demonstra que é tolerante. De qualquer forma teimo em estar de acordo com o meu próprio pensamento e também com todos os que defendem que as palavras estruturam formas de pensar e nestas (formas de pensar)estão critérios de viver e avaliar. Fui inluenciado por uma reflexão que fiz em torno de Charles S. Peirce (Antoligia Filosófica),Nelson Goodman (modos de fazer mundos) e outros.Ainda entendo que devemos ser persistentes com as nossas convicções até descobrirmos que elas estão erradas. E estou aberto a uma argumentação "contrafactualista".
Um abraço

Kamikaze (L.P.) disse...

Pois é, estes registos são muito dados a mal entendidos...
Vê-se pelo comentário que alguns bate papos com o compadre Esteves-como este e ainda pelo menos um outro questionando uma citação de alguém a propósito das motivações das mulheres na blogoesfera a "traumatizaram"... ainda que o seu adeus ao Incursões tenha sido, pelo menos aparentemente, mais determinado por este bate papo com o Carteiro...
Pensava-a desaparecida e afinal anda por "aqui", embora apenas "à espreita"! Volte, marinquieto, com ou sem Folhetim de Domingo! Semprei achei os seus contributos muito enriquecedores e não creio ser caso único aqui no Incursões. Volte, dê-nos uma nova chance!

Kamikaze (L.P.) disse...

Compadre, por lapso fiz 1º este comentário num outro post. Ao constatar o lapso apaguei aí o comentário e pu-lo agora aqui, sem antes reparar que entretanto o meu bom amigo já respondera a marinquieto. Gostei do que escreveu, compadre...

Kamikaze (L.P.) disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Primo de Amarante disse...

Sempre entendi o nosso blog como um jornal de parede aberto à troca de pontos de vista, sem impor nada a ninguém. E, o que é fundamental, sem ter a intenção de "chatear" seja quem for!
Tenho pena que a memória do melhor que escrevemos se possa perder. Sou muito anarquico e dessa tarefa não me posso comprometer. Mas a Kamikaze, com sua "memória de elefante", sensibilidade "neo-realista" e "militantismo" incursionista pode ser que pense nisto.

Kamikaze (L.P.) disse...

Ah Ah Ah compadre! Estaria talvez melhor dito «com a sua (minha) "sensibilidade de elefante" e a sua "memória neo-realista"...!
Quanto à militância incursionista,já teve melhores dias, dias em que escrever era um imperativo interior, dias em que a inspiração não faltava. Mas lá vou, menos regularmente do que gostaria, tentando ao menos construir a tal memória. A dificuldade, np índice temático, é nomear as categorias! São tão redutoras... por exemplo:como classificar num "directório", muitos dos seus melhores escritos, compadre? Filosofia? Ética? Cidadania? Politologia?( não sei se é um neologismo, ando encanitada com a moda de apresentar comentadores na TV como politólogos, mas tive preguiça de investigar). Já aqui pedi sugestões... mas a verdade é que ainda nem saí dos primórdios do item "Poesia"!(dos demais já criados apenas o "Justiça" e a "Formação" estão ainda manifestamente incompletos).

Kamikaze (L.P.) disse...

Precisão: a "sua" "memória neo-realista" é minha, claro :)
Aproveitando a sua sugestão mais acima, para fazer um link para o comentário da Eugênia, vou colocar link para todo este diálogo no item Poesia (índice temático).

Primo de Amarante disse...

Já viu, querida Amiga, que se não fosse a sua metódica militância incursionista não tinhamos, hoje, aquele post luminoso que a Amélia colocou. Aquilo obriga a mastigação cuidada. Mas eu vou provovar a nossa querida Amélia com algumas achegas. Hoje, fico a fazer o quilo.Além disso, estou triste, sem aquela veia anímica. Mas amanhã, com mais disponibilidade, vou à luta.
Quanto ao directório, ponha lá aquilo por que me esforço: SER SOLIDÁRIO.
Um abraço,
do compadre neo-relista.