21 março 2005

SER MULHER...

Da nossa já habitual colaboradora, Drª Isabel Batista, Juiz de Direito em Caldas da Rainha, recebemos este post que, com muito gosto publicamos.

A História da Mulher é também a História do Homem, é a História da relação entre os sexos. Existe uma relação dialéctica entre o feminino e o masculino. Cada um de nós transporta em si esta realidade.

A grande vantagem que retiro da passagem doa anos da minha vida é já ter tido tempo, (tanto tempo! ) para me relacionar com uma diversidade imensa de pessoas (homens e mulheres) nos mais variados locais e em circunstâncias muito distintas. Por isso a minha história é o resultado dessa mescla de encontros, de experiências adquirida em diversos locais e tempos. É a expressão da minha própria construção social, para além desta história estar marcada pela minha identidade genética. Sou Mulher! Sou Mãe! A minha condição biológica marca indelevelmente todo o meu percurso como ser humano.

Escolhi um poema da Maria Guinot, e do seu título fiz o tema deste texto a pensar no 8 de Março, o dia da mulher, das mulheres!

Roland Barthes afirmou que a linguagem é um enorme halo de implicações, de efeitos, de silêncios, de voltas e reviravoltas. É a partir das voltas e reviravoltas da leitura desse poema que construirei o meu excurso:

Esta Palavra MULHER! Esta linguagem feminina, porta-voz de ideias em que às vezes as mulheres não acreditam. Esta palavra MULHER, leito dum rio que não se sabe onde vai dar ...

Esta Palavra MULHER , feiticeira, forjadora de mistérios, nigromante na posse de todas as receitas da cabala...

Esta palavra MULHER, conciliadora da ordem e da aventura, da tradição e da invenção!

Esta palavra mulher nascida do medo tornado coragem; ideia que nos é magistralmente transmitida numa obra de Maria Câncio dos Reis (mulher de Soeiro Pereira Gomes, o homem que escreveu histórias para os homens que nunca foram meninos!) “Eles vieram de Madrugada”. Esta Mulher fala-nos da saudade do marido, preso político, mas também nos fala dos sentimentos partilhados entre mulheres, entre mãe e filha, entre ela e sua mãe: “A mãe chorava se ela chorasse e ela desejava que a mãe se fosse embora para poder chorar à vontade!

A coragem das Avós: mulheres duas vezes mães... Evoco aqui uma história contada num livro sobre a crise que se seguiu à implantação da República em Portugal, a história duma Ilustre Viscondessa que enquanto se trocam tiros entre Republicanos e Monárquicos, tendo o seu neto doente de difteria, se atreve a sair para a rua e subir a Rua Formosa, com o neto aconchegado ao peito, descer a Avenida, voltar a subir a rampa da Praça da Alegria, sempre debaixo do fogo cruzado, até entrar no Instituto Câmara Pestana até finalmente conseguir que o seu neto fosse assistido! Tanta coragem, num gesto tão simbolicamente feminino.

Esta palavra mulher, um corpo feito vontade de remar contra a maré...

Ao longo da História muitas foram as mulheres, a começar por EVA que se atreveram a remar contra a maré.

Três exemplos menos conhecidos:

1 - Dª Adelaide de Paiva, conspiradora contra a jovem República, presa na sequência do malogro do movimento de 21 de Outubro de 1913, ousada e frágil ao mesmo tempo. Conta-se que quando outro dos conspiradores monárquicos (o Marquês de Belas) lhe perguntou crê na vitória Srª Dª Adelaide? Ela lhe respondeu com radicalidade feminina COMO EM DEUS!, mas traída e abortada a conspiração, soluça mansamente enquanto o marquês ruge em desvario!

2 – Ainda durante o rescaldo dos combates ente monárquico e republicanos, à beira do primeiro conflito mundial, onde depois terá um papel de destaque o Pelotão de enfermeiras de Guerra: Dª Amélia Trigueiros, Dª Júlia de Azevedo, Lucinda Moreira e a fundadora da Cruzada das Mulheres Portuguesas (C/ sede no Limoeiro) Dª Ana de Castro Osório

3 – Por último, e também ligada à história da Implantação da República, Maria Guilhermina Ascenso que com as sua mãos uniu o verde-rubro da primeira bandeira da república a ser hasteada em Loures, no Largo que hoje toma o nome de Largo da República, no dia 4 de Outubro de 1910.

Mulheres de gritar tanta verdade, de ficar sempre de pé...

Alhandra, 8 de Maio de 1944, a marcha da fome: “E veio a hora em que a sereia da Fábrica e o sino da Igreja deram sinal que a marcha da fome se pusera a caminho: operários, acompanhados das mulheres e dos filhos começaram a caminhar direitos ao Largo da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, onde nunca chegaram pois foram brutalmente detidos pela polícia política...

Ai mulheres do nosso tempo... Mulheres de todos os tempos, Gertrude Stein: escritora americana nascida em 1874 e falecida em 1946, que poucos lembram. No seu tempo impôs-se não só pela sua obra, talvez quase desconhecida, mas mais pela sua presença. Interessou-se pela filosofia, pela psicologia, pela medicina. Em 1902 instala-se na Europa. Escreveu obras como Three Lives, ou a Autobiografia de Alice Toklas. Na sua casa encontravam-se escritores como Henimingway (por quem os Sinos Dobram) ou Scott Fitzgeral (Terna é a Noite e o Grande Gatsby), e pintores como Picasso ou Matisse. Aliás escandalizou a sociedade do seu tempo ao pendurar nas paredes de sua da sala as primeira obras cubistas de Picasso : “A fábrica” e “As casa na colina”.

Dizia ela que, “toda a obra prima veio ao mundo trazendo em si mesma uma certa dose de fealdade. Esta fealdade é o signo da luta do criador para dizer uma coisa nova, uma coisa diferente”, tal como qualquer a mulher, em si mesma uma obra de arte.

Esta palavra mulher feita de mães e amantes... Feita de Amor e cansaço.

Falo agora de ANGELICA, mãe de Apollinaire, mulher que no seu tempo teve a audácia de impor ao mundo dois filhos sem pai, mulher extravagante e imperiosa como só as mulheres que muito têm de se fazer perdoar podem ser!

E lembro o poema de Bridgman, que Picasso imortalizou num quadro onde plantou uma mulher de perfil graciosa, adormecida, nua sob um sudário já esfarrapado, os seios flácidos, o resto do corpo esfumado. Mulher que sonha e no seu sonho evoca um fantasma de homem de que são visíveis apenas a cabeça e a parte superior do corpo:
Somos virgens forçadas
A sê-lo por leis aborrecidas
Que nos tornam escravas
Dêem-nos a liberdade! Gozaremos o Amor
A túnica branca que envolve nossos corpos
Rasguemo-la: é a mortalha que oculta um tesouro.

Esta decisão de Mulher que recusa a ser palhaço!...

Não vou falar de figuras sempre evocada em cada 8 de Março: Maria Amália Vaz de Carvalho, Dª Filipa de Vilhena, Dª Filipa de Lencastre, nem sobre as duas rainhas portuguesa Maria I e Maria II, nem sobre a Rainha Stª Isabel ou a Rainha Dª Leonor .

Nem sequer falarei aqui da Maria da Fonte ou da Padeira de Aljubarrota as duas plebeias nacionais mais conhecidas.

Nem tão pouco irei falar de Irene Lisboa, ou Sophia de Mello Breyner Andersen nem de Maria Lamas que nos deixou essa fabulosa obra intitulada “Mulheres do meu País”

Vou falar de outras mulheres, uma menos lembrada, outra mal-amada pela História

1 - Dª Mércia de Haro chegada a Portugal por volta de 1240/1245 para casar em segundas núpcias dela (era viúva) com D. Sancho II, proclamado Rei aos 13 anos!

Como se sabe o casamento ao longo de séculos foi objecto de uma estratégia politico-económica, sendo as nubentes, em particular as de condição elevada, um instrumento ao serviço dessa estratégia. A principal finalidade do casamento era, então, construir alianças entre Estados, aumentar ou consolidar patrimónios. O casamento era um acto ritual e jurídico

O casamento de Dª Mércia com D. Sancho, desde logo visou fortalecer as relações comerciais entre o Reino e a Biscaia, mas a sua escolha não pode deixar de ser entendida por referência à debilidade mental do monarca e à necessidade deste ter um herdeiro. Mas esta mulher foi precisamente quem mais contribuiu para a queda de D. Sancho II, aliando-se ao seu cunhado, o futuro Rei D. Afonso III, O Bolonhês, (título que deve a sua mulher Matilde de Bolonha) que viria a ser o 5º rei de Portugal.

Não só não deu descendentes ao marido como se deixou fazer “prisioneira” em Ourém, aliás terra que recebera em dote. Do seu “cativeiro” concedeu benefícios vários, ” E até à sua morte manteve o Título de Rainha".

2- Dª Leonor Teles de Meneses, que viria a casar com o Rei D. Fernando.

A irmã de D. Leonor era dama duma filha de Pedro e Inês, outra mulher notável, mas que não irei falar aqui, por serem sobejamente conhecidas as suas penas e os seus amores. É através desta irmã (que se diz que D. Leonor vem a matar por ser um obstáculo à sua vontade de ser rainha) que D. Leonor conhece o monarca. Nessa época era casada e consegue a anulação do seu primeiro casamento com Lourenço da Cunha para casar com D. Fernando, no Mosteiro de Leça do Bailio. Este, cego de paixão, diz a História (escrita pelos homens), atreve-se a incumprir uma cláusula do Tratado de Alcoutim, que o obrigava a casar com uma infanta castelhana, (mais tarde vem a renegociar este tratado) e ousa enfrentar a oposição do povo de Lisboa: condena à morte o cabecilha dos revoltosos contra o casamento, o alfaiate Fernão Vasques.

Como é por demais sabido, após a morte do rei D. Fernando, D. Leonor toma o partido de D. Beatriz (Brites) sua filha e envolve Portugal numa crise que levaria ao início da II Dinastia.

Uma vez EVA.... Sempre EVA...

O masculino por si só já não representa a humanidade. Porém, ao nível da esfera pública ainda se faz sentir a exclusão das mulheres relativamente aos órgãos de tomada de decisão, ou pelo menos a partilha real do poder entre os dois sexos.

A problemática da igualdade de oportunidades entre o homem e a mulher, bem como a eliminação de comportamentos discriminatórios contra a mulher mantêm hoje plena actualidade e constituem objectivos programáticos com dignidade idêntica à defesa do ambiente, à atenuação de assimetrias regionais, à erradicação de pobreza, à melhoria do nível de educação. O 8 de Março é ainda e sempre uma data a manter viva na memória colectiva.

A problemática da igualdade é património da Humanidade e por isso Eu, Mulher, que sou o problema, sou também a sua solução.


ISABEL BATISTA
Caldas da Rainha



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