27 junho 2005

Isenção e PGR

Três posts do nosso estimado Carteiro ( rodriguinhos, provocação da populaça e segredos pouco secretos ) abordaram temas actuais da justiça e suscitaram uma multiplicidade de comentários muitíssimo interessantes, que se espraiaram sobre várias matérias. Tentando repescar o debate e centrando-me apenas numa dessas matérias - o papel do PGR - seguem-se algumas reflexões, tão sintéticas quanto possível.
Fala-nos o Carteiro numa putativa tentativa de substituição do PGR antes do final do mandato. Não sei se essa tentativa existiu ou não, mas a questão merece uma madura reflexão. Uma questão fundamental, na minha óptica, é saber para que serve o PGR e qual deve ser o seu perfil.
Quanto a mim, o PGR, enquanto máximo dirigente do MP, deve reunir duas condições fundamentais: primeiro, ser um coordenador eficaz da máquina; depois, ser isento e impermeável a pressões externas, designadamente do poder político.
Quanto ao preenchimento da primeira condição, não depende apenas do indivíduo, uma vez a nossa arquitectura constitucional estabeleceu um sistema de pesos e contrapesos que, por vezes, não são fáceis de gerir.
Quanto ao segundo requisito – a independência – é uma condição absolutamente fundamental e, aí, dependerá mais do indivíduo do que das circunstâncias. Tenho para mim que o actual PGR preenche inteiramente o segundo requisito, mas experimenta muitas dificuldades na vertente da direcção do MP, ao contrário, aliás, do seu antecessor que era conhecido por dirigir a máquina com grande eficácia.
A direcção do MP, contudo, não deve ser confundida com um intervencionismo excessivo na vida de todos e de cada um dos sectores e agentes do MP e, por exemplo, a avocação de inquéritos, deve ter um carácter excepcional e não o objectivo de cercear quaisquer investigações. Ou seja, o PGR deve ser um garante da eficácia mas, simultaneamente, da autonomia interna do MP.
Neste aspecto, tenho para mim que Souto Moura tem cumprido satisfatoriamente, não concordando com os ilustres comentadores que afirmam que ele “não pôs ordem no MP” ou que é apenas uma figura decorativa.
O grande problema de Souto Moura é ter-se fechado demasiado num inner circle de meia dúzia de hierarcas, pouco dados à mudança e que pensam, erradamente, que escondendo-se numa espécie de casulo poderão resistir melhor às investidas externas.
Esta insuficiência, contudo, é ultrapassável e os próximos tempos dirão se Souto Moura compreendeu ou não as lições dos recentes acontecimentos que eu, confesso mais uma vez, não sei se foram acontecimentos ou não.
A grande vantagem de Souto Moura, por outro lado, reside na sua capacidade de resistir a pressões externas. Não que as enfrente de peito aberto, que o seu feitio afável não estará para aí virado mas, com maior ou menor subtileza, o que interessa é que, na prática, tem sabido resistir a elas, como o demonstra o caso Casa Pia que o próprio classificou como case study.
Esta impermeabilidade de Souto Moura valeu-lhe a hostilidade de boa parte da classe política, designadamente do actual poder socialista. Daí que a tentativa do seu afastamento, se não foi já tentada da forma descrita nos posts, não deixará de se colocar mais cedo ou mais tarde, no limite em Setembro de 2006 quando terminar o mandato.
Não me desagrada a ideia, referida por alguns comentadores, que o próximo PGR pudesse ser um não magistrado, como forma de abrir mais o MP à sociedade e combater mais eficazmente certos afloramentos corporativos que muitas vezes se verificam. Contudo, receio que, no contexto em que nos movemos, com uma excessiva partidarização da vida política, seja missão impossível esperar que um “civil”, qualquer que ele seja, nomeado pelo poder político, consiga reunir as qualidades de isenção e de impermeabilidade a pressões que o cargo exige.
Assim, apesar de todas as dificuldades e insuficiências de Souto Moura, penso que é preferível apostar no certo, do que embarcar em aventuras de que se desconhece a saída.
É por isso que, em minha opinião, nos tempos conturbados que se avizinham, é uma tarefa patriótica apoiar a recondução do Dr. Souto de Moura como Procurador-Geral da República.

5 comentários:

Primo de Amarante disse...

Uma reflexão que eu, fora do ramo, percebi e achei util. De certeza que todos os comentários que irão aparecer vão ajudar a uma reflexão necessária sobre esta questão, (desde que se coloquem ao nível do post).
Alguém, muito bem informado, garantiu-me que a questão da substituição do PGR não foi colocada ainda e que essa questão nunca será decidida só pelo Ministro, antes de chegar ao PR. Primeiro discutirão o perfil e só depois procurarão a pessoa ajustada. O Post vai nesta linha: teoriza a questão do perfil e é neste pé que me parece interessante o debate.

Kamikaze (L.P.) disse...

Obrigada por partilhar conosco esta sua reflexão, Nicodemos. O post é oportuno e aborda, de uma maneira sistematizada e coerente, questões que têm sido abordadas no Incursões de forma mais ou menos avulsa.

Já agora, sem querer meter muito prego nesta estopa, sempre adianto que concordo inteiramente com as suas premissas mas já quanto à conclusão que delas retira tenho muitas dúvidas. O MP necessita de uma liderança com ideias e projectos que motivem os seus quadros a tudo dar para um melhor serviço à justiça, implicando isto também mudanças a nível organizativo. E parece-me que Souto Moura já demonstrou que não tem unhas para tal guitarra...

M.C.R. disse...

Caro Nicodemus
O seu excelente post permite-me para além de concordar com muito do que diz meter de novo a minha colherada, para usar uma expressão do estranhamente silencioso José.
Tenho para mim que o PGR tem, cá ou na Polinésia, uma fortíssima componente política. Da boa, da verdadeira, da séria. Mas política. Isto ( a justiça e os deveres que incumbem ao Ministério Público, não é apenas uma dança de salão da corporação aliás ilustre mas também uma representação de muito do que somos, do que pensamos ser, do modo como pensamos agir e por aí fora.
Dito isto, que me parece mais ou menos indiscutivel, rapidamente se verá que não me afronta especialmente o "droit de regard" político. Isto não quer dizer que por mera birra se substitua um responsável de tanta projecção mas também não significa que ele seja inamovível. E não conheço (mas será defeito meu) país onde as coisas sejam significativamente diferentes...
A segunda questão, e já anteriormente a referi, é a conhecida inabilidade do Dr Souto de Moura em "comunicar" seja o que for. A gente ouve-o e pasma. Raras vezes vi tanta falta de geito...
Também não me parece que o Dr Souto de Moura se imponha assim tanto entre os seus pares. Erro de comunicação de novo? Pior: essa inabilidade natural transmite ao público uma ideia de leveza que não ajuda nem o cargo nem a ideia que se faz do Ministério Público na sua totalidade.
quanto á honradez pessoal, á capacidade profissional e aos restantes dotes não me pronuncio. Aceito que seja um magistrado conhecedor e distinto e inatacavel no que toca á defesa do Estado de Direito. Só que como este retrato haverá largas dezenas de magistrados e não consta que sejam PGR...
Um abraço

josé disse...

Caro M.C.R. :

De manhã alinhavei umas ideias, mas por razões desconhecidas perderam-se no caminho.

Agora, com menos tempo, só consigo balbuciar, parafraseando uma velhinha canção dos Tremeloes- "silence is golden"! E a seguir, o vocalista de 1967 croonava "...but my eyes still see!"

É mesmo isso. Hesito entre um comentário tonto e um postal endereçado que me faça pensar um pouco.
Um comentário tonto não me comprometeria muito; um texto em forma, obriga-me a tomar posição, mas como seria irrelevante, a hesitação prevalece.
Silence is golden!

M.C.R. disse...

Entendo perfeitamente as razões do silêncio. Entendo (no sentido de ouvir) os sounds of silence para também eu citar a música da geração de ouro.
E porque entendo tudo isso resolvi avançar mais um pouco nesta conversa com o nosso prezado Nicodemus. Para lhe dizer que depois de o ler há algo que me surpreende: porque é que a recondução de Souto Moura há de ser defendida? Por que santinhos deve ser reconduzido alguém que objectivamente não tem as especiais e essenciais qualidades que o cargo requer? Não falo de honradez e de probidade que isso felizmente está mais distribuído pela classe dos magistrados e pela dos "não magistrados" do que á primeira vista se poderia pensar. Isto, Portugal, ainda não é o pinhal da Azambuja, que diabo!!!
Quanto à angustiada oração de Paul devo dizer que apesar de licenciado em direito e de estar no pleno gozo dos meus dirieitos políticos não penso candidatar-me a PGR mas que nem por isso descortino qualquer mal no facto de o PGR ser uma mulher ou um homem sem ter ligações à magistratura. E se não me recordasse de alguns prestigiosos PGR vindos dessa classe e só tivesse diante dos olhos a pálida lembrança (e pouco entusiasmante) do dr Souto de Moura juro que pediria a gritos um paisano para o cargo. Mas se calhar isto já é política...