12 novembro 2005

Au Bonheur des Dames nº 13

Figueira-Fátima só ida

Se os meus parcos leitores permitem tenho uma confissão a fazer: não sou nem nunca fui pessoa dada aos mistérios da fé. Aquilo passa-me ao lado como se fosse água pelas penas de um pato. E não é que não me tenha esforçado: foi há quase meio século que num verão mimoso desfilei com outros meninos e meninas na procissão dos primeiro-comungantes. Há disso uma fotografia delida pelo tempo: eu e o meu irmão, de casaco e calção cinzentos, fitinha larga e benzida num dos braços e mãos juntas atadas por um terço.

Lembro-me que, nesse dia inesquecível, lavado de todos os pecados, o meu maior desejo era pertencer `a "Cruzada Eucarística" cujos elementos abriam a procissão ostentando a tiracolo uma banda branca com uma cruz azul. O quadro ficará mais completo ( e ligeiramente menos inocente) se acrescentar que nesse grupo se incluía uma menina de loiros e longos cabelos anelados...

Todavia nunca cheguei a ingressar nessa piedosa agremiação. Havia muitas missas e novenas a cumprir que os caminhos do Senhor não são pera doce. Tanto mais que, durante o longo período de catequese me fartara de faltar às aulas de doutrina, salvando-me de denúncia da catequista apenas porque com a memória forte da juventude decorava e papagueava, sem erros, orações, mistérios, listas dos pecados capitais, das virtudes teologais, hinos sagrados incluindo, oh maravilha!, o inteiro "tantum ergo sacramentum..." e a Salve Rainha, toda em latim de igreja (bem melhor e mais bonito do que esse arremedo que ora se usa sob o nome de pronúncia restaurada).

Depois as missas eram insuportavelmente longas, sobretudo a das onze, a melhor e a de mais escolhida freguesia. Com o meu irmão e um comum amigo de nome Bartolomeu, fintávamos as famílias e metíamo-nos no museu a ver armaduras japonesas, cacos romanos e outros objectos fascinantes, enquanto na igreja cheia o monsenhor Palrinhas dava início a uma longa cabotagem de ladaínhas, sermão, cânticos enfim o que se chama uma missa bem medida. Normalmente chegávamos quase no "ite.." para saber, não fosse alguém perguntar, qual a cor dos paramentos. Depois sorrateiramente seguíamos os cardumes de raparigas até ao bairro novo onde se passeava uma meia hora antes de recolher toda a gente a casa para o almoço dominical.

Convenhamos porem que não éramos só nós a fazer gazeta ao "santo sacrifício": as esplanadas dos cafés estavam desde cedo cheias de cavalheiros que aproveitavam a ausência das famílias na missa para tomar uma descansada bica, ler o jornal e falar com amigos. Provavelmente pensavam que a mulher e a filharada rezariam o quantum satis para absolver toda a tribo...

Não se pense contudo que esta mansa falta à prática dominical fosse sinal de laicismo radical. Nada disso: era apenas preguiça, despreocupação e vontade de aproveitar a manhã luminosa depois de uma semana de duras penas. Os figueirenses quando era necessário frequentavam a casa de Deus com aplicada devoção e era lá que se casavam, baptizavam a prole e enterravam os seus.

Todavia, de longe em longe, a cidade era percorrida por um frémito religioso de maior alcance e rivalizava com Buarcos onde era conhecida a devoção por S Pedro e pela Senhora a Encarnação. Os pescadores, sobretudo aqueles que se perdiam meio ano pelos mares do bacalhau em dóris frágeis no meio do nevoeiro encaram a religião como um assunto sério e vivem-na como um perpétuo seguro de vida que eles contratam com um par de santos que consideram mais influentes e próximos de Deus.

Terá sido pois num desses momentos de arrependimento colectivo e exacerbada introspecção que um grupo de cidadãos proeminentes e amplamente conhecidos nos meios boémios da terra entendeu ir, de longada e a pé, até Fátima, coisa que nesses anos longínquos deveria significar oitenta quilómetros bem medidos.

Os cavalheiros em causa além de pertencerem a algumas das mais conhecidas famílias tradicionais gozavam da fama (e proveito) de bebedores inveterados coisa que dava muito (e ainda dá, penso...) nas terras pequenas. Nesses tempos benditos em que beber vinho era, sic, dar de comer a um milhão de portugueses a embriaguez só assumia foros de escândalo quando atingia indivíduos socialmente desqualificados que, na via pública, vomitavam com o vinho um rol de palavrões. Isso, vestirem andrajos e cheirarem mal atirava-os para a categoria de bêbados sem préstimo ao passos que os señoritos de que falo frequentavam o Tennis ou a Assembleia e sabiam qual era a diferença entre o garfo de peixe e o da carne.

Foi pois dentre o selecto meio dos que se embebedavam na "Agostinha" e no "Casino Peninsular", que se projectou a piedosa excursão à terra dos três pastorinhos. Os penitentes prepararam com esmero e unção a viagem, munindo-se de uma muda de sapatos meias q.b., bordões peregrinantes e demais impedimenta. Para comer socorrer-se-iam dos estabelecimentos do caminho mas à cautela levavam alguns mimos caseiros num cesto de vime. No que respeita à sede resolveram depois de breve debate que se desalterariam em todas as locandas do caminho. Andar cansa e torna a goela sequiosa de modo que o melhor seria parar sempre que, nessa via crucis, se mostrasse restaurante, venda, taberna ou casa de pasto.

E que beber perguntará algum leitor cuja coragem o fez chegar até aqui. Pois para beber eliminou-se desde logo qualquer bebida gasosa (laranjada ou pirolito) por efeminadas e pouco adequadas a uma jornada sacrificial. O leite foi vetado por não oferecer confiança o que se vendia por aqueles pinhais imensos. Alguém terá mesmo falado dos perigos da febre de Malta e de outras maleitas igualmente perigosas. A cerveja foi cortada por duas razões essenciais: no caminho não deveria haver quem decentemente soubesse tirar uma caneca á pressão (e a cerveja mal tirada é pior que mijo de burra...) e tendo um efeito diurético forte poderia obrigar algum dos caminhantes a verter águas na via pública com notório escândalo de quem visse.

Resta a água arguirá de novo o mesmo e já citado leitor generoso mas inocente. Alto aí e para o baile! A água fora as propriedades higiénicas que ninguém nega, a utilidade para o regadio ou para a culinária, só é bonita na forma de mar, rio ou lago. Aceita-se no estado sólido se servir para temperar o whisky e no gasoso para saunas. Fora isso, que já é muito, esgota-se, aqui o parágrafo água que mesmo em religião apenas serve para baptismos.

Há que recorrer ao vinho, maxime a algum dos seus derivados ou destilados se tal for necessário. O vinho está consagrado desde as bodas de Caná, pertence à herança greco-latina, é um genuíno produto português além do que tem efeitos vaso-dilatadores unanimemente reconhecidos.

Não posso precisar o dia e a hora em que a comitiva iniciou a sacra caminhada. Sei apenas que foi a pastelaria Caravela o local de reunião. Aí os peregrinos tomaram uma bica e um cálice de "Carvalho, Ribeiro & Ferreira" na altura a melhor aguardente velha do mercado. Um minuto depois paravam no Nicola para um licor beirão, e logo em frente no "Oceano" para um bagaço. Nos restantes trinta e oito metros parou-se na "Império", no "Astória", na "Peninsular" e no Arnaldo, cortando-se aí para esquerda, com o fim de atingir o jardim municipal, tomar a marginal do rio até à ponte para a margem direita do Mondego.

Parece, ou pelo menos tudo o leva a crer, que ninguém se terá apercebido aquando da elaboração do roteiro que a R.ª Dr. António Dinis, além do Mercado, do cinema Parque Cine era praticamente ocupada no seu lado esquerdo descendente por pequenas casas de pasto (hoje 40 anos passados muito snakebarizadas e hamburguerizadas, infelizmente).

A penosa caminhada e as libações sacrificiais a que ia dando azo fizeram com que a marcha penitencial tenha acabado antes do jardim. Um dos caminheiros teve mesmo que ser socorrido no hospital com coramina, dois outros foram levados a casa por um talhante solícito, um quarto ferrou-se a dormir numa das tascas mais consagradas e como era assíduo só foi acordado onze horas depois a pedido de uma esposa aflita mas conhecedora dos seus hábitos. O quinto vomitou, discretamente, nos lavabos do cinema "Parque cine" e saiu pelo portão da Rª Cândido dos Reis, subiu, foi comer na "Lagosta Vermelha" tendo-se posteriormente emborrachado de cerveja no mesmo e mal afamado local em companhia de um croupier do Casino.

O último entrou no mercado comprou vários produtos com os quais fabricou um coktail de ovo que ofereceu a vários vendedores. Com eles, e numa marcha titubeante, ( o licor de ovo é fatal...) saiu da praça pela porta oeste, atravessou a rua e foi encontrado nos baloiços do parque infantil a cantar para um grupo de meninos a imortal modinha
" Mamã eu quero
Mamã eu quero mamar
Dá chupeta, dá chupeta
pro bebé não chorar..."


Vai esta para António Pinguel, Ana Leal de Oliveira, os 2 manos Esteves, Mário Vieira de Carvalho, Octávio Correia Ribeiro, Luisinha Novais e Rosa Carlos núcleo duro de um grupo de amigos que começou na praia de Palheiros, entre Figueira e Buarcos, à sombra do parque Sotomayor. E com uma comovida lembrança do Luís Neves nosso amigo. E à Teresa Estrela Esteves, idem.

14 comentários:

josé disse...

Meu caro M.C.R.:

Tem a certeza que a "cruzada eucarística" desfilava de faixa branca com "cruz azul"?
Não seria da cor vermelha?

E por falar em cor vermelha, ponho-lhe aqui um poema de José Gomes Ferreira que Fausto cantou há muitos anos ( e o disco está esgotadíssimo, pois era um single Phillips, de 1970 -calculo eu porque não tem data e será a sua primeira gravação):

Oh pastor que choras
o teu rebanho onde está?
Deita as mágoas fora,
carneiros é o que mais há
uns de finos modos
outros vis por desprazer...
Mas carneiros todos
com carne de obedecer.
Quem te pôs na orelha
essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.
Vai pintar os frutos,
as amoras, os rosais...
Vai pintar de luto,
as papoilas dos trigais.


A letra é pouco propícia a eucaristias, mas é de outras cruzadas de que nunca fiz parte, mas aprecio as músicas...

Primo de Amarante disse...

Fusto, amigo Fauto, hà quantos anos não nos vemos!

Obrigado José por trazer à minha memória essa canção bucólica e terna que Fausto tão bem cantava.

M.C.R. disse...

Caríssimi leitor José:
1. eu chamo-lhe sempre "leitor" não porque desconheça que escreve mas tão só, porque para mim, leitor é palavra de muito mérito, além do que quando escrevo lembro-me sempre dos meus "escassos leitores" e pergunto-me: "o que é que eles dirão disto" ou "que outras hisórias isto lhes suscitará"

2. Verdade, verdadinha, já não sei a cor das faixas mas o azul sempre se me impõs, tanto mais que é a cor de Nossa Senhora, como v. provavelmente saberá...

3. Agradeço-lhe do fundo do coração o poema do velho Zé Gomes com quem ainda falei uymas vezes numa pastelaria da Barbosa du Bocage já quase no Campo Pequeno.
Não sabia que o Fausto a cantava ( eu sou mais do Zeca, do Adriano, do Sérgio e do Zé Mário: amigo e muito do primeiro , caloiro e amigo do segundo, a minha primeira mulher era irmã de leite do 3º e o 4º chegou a ser meu parceiro de quarto em Coimbra quando por lá passou, na casa da D. Laura, mãe da Fernandinha janeleira.
Essa cantiga, faz parte do acervo do "MUD juvenil" e do corp da Academia dos amadores de Música do Fernando Lopes Graça. Era muito cantada pela esquerda estudantil nos longínquos anos sessenta: ai quantas vezes a cantei...)

de todo o modo a minha "estória" que tem, claro, um fundo de verdade e basta fantasia é mais sobre o jucundo grupo de bêbados que quis ir a fátima a pé. Se falar com algum figueirense de 50 ou mais ele dir-lhe-á os nomes de alguns.

Compadre: isto de termos andado por sítios geograficamente diferentes dá nisto para mim o "pastor que choras..." é uma canção de combate, pré-crise de 62 e para si uma "canção bucólica e terna" já mediada pelo Fausto. Acho isso formidável.

Abraços a ambos, "imo pectore"

josé disse...

Então deixem-me dizer uma coisa:

A colagem que fiz do "Oh pastor..." do José GOmes Ferreira, cantada pelo Fasuto, não foi inocente de todo.
Representa a sínteses possível entre uma época em que havia uma sincronia assinalável entre ´partisans`da resistência ao saalazarismo/caetanismo e uma geração que apenas apreendia a musicalidade e a estética da manisfestação poética e artística, em geral.
Enquanto para muitos da geração supra 50, a cantiga foi uma arma ( "contra a burguesia",no dizer do JMBranco que se mantém fiel à ideia), alguns mais novos, aproveitaram o movimento artístico para assinalarem um período de ouro na produção musical portuguesa.
O discurso útil da esquerda produziu um movimento inesquecível de qualidade impressionante na produção artística.

O que sobra desta aparente simbiose que se pode decompor?!
Exactamente o que de maior valor acrescentado se roduziu então: o idealismo e a produção de altíssima qualidade musical e artística!
E esses valores são de todas as épocas! É por isso que os celebro- porque desvalorizo o discurso pendente das letras...

Tirando isto, fico invejoso e sinto-me privilegiado de poder conviver aqui com alguém que partilhou desse idealismo concreto que nunca foi o meu e principalmente privou com os expoentes máximos desse movimento artístico.

Há pouca história sobre estes factos na dossa vida comum, relativamente recente. Faz neste mês trinta anos que ocorreu a separação fulcral entre os idealismos e se demarcou a nossa vida política futura.

Tirando um livrito ou dois de um estudioso - Eduardo M.Raposo- que publicou em 2000, nas edições Colibri (?) o livro Cantores de Abril, prefaciado por...Manuel Alegre e ainda publicou Canto de Intervenção, em 2005, editado pelo Público, pouco mais há. Uns blogs que se limitam a repetir alguma informação já requentada e pouco mais.

Se fosse noutro país, onde isto já ia!

E no entanto, o interesse por estas coisas, para mim, pelo menos, é enorme! Enormíssimo! Este idealismo que animou toda uma geração e que compreendi muito bem apesar de não o partilhar nas opções políticas, merece destaque.
Se mais não fora, para que não venham agora uns tantos que nessa época andavam aida de cueiros, mistificar tudo e adulterar ( aviltar?) o espírito que animou esse autêntico movimento cultural que perpassou em Portugal por fins dos sessenta e até finais dos setenta.

Haja historiadores!

M.C.R.?! Compadre?!

De que estão à espera?!

M.C.R. disse...

É verdade... Caxias, 1962...idos de Maio, na ressaca de uma crise académica que tão intensamente vivemos...E tu Anto, com o Alfredo Fernandes Martins e o Octávio Ribeiro da Cunha, dormindo, se estou bem lembrado, em dois catres que se juntaram porque o terceiro estava absolutamente imprestável. E os nossos companheiros dessa célula subterranea, o Zé Bretão, o Abílio Vieira, o João Quintela ou o Zé "bagacinho"Monteiro, o Soveral Martins todos já mortos. Tenho uma vaga ideia de que somos "sobreviventes", incómodos sobreviventes de um tempo e de um modo absolutamente fora de moda.

O terrível leitor José mete-me em cada embaraço! E Anto, o meu amigo de há quarenta e pico anos ainda enterra mais a faca, lembrando Caxias, casa a que voltaria por mais duas vezes mas sem companhia que me valesse, exceptuados alguns versos e três ou quatro canções como esta.
Que fique para a história estoutra:

Longos corredores nas trevas percorremos
sob o olhar feroz dos carcereiros
mas nema luz dos olhos que perdemos
nos faz perder a fé nos companheiros

vá camarada , mais um passo
já...( uma luz???) ...se alevanta
cada fio de vontade é um abraço
cada braço uma alavanca.

Como poema é o que é mas naquele tempo em que "falar" era, mais do que uma traição , uma vergonha, isto era a dignidade possível e a honra necessária.
Anda por aí muito marau, a blasonar, de esquerda e de socialismo, que naquele tempo nem na retrete protestava... E lá vão para deputados, para dirigentes na função pública, para as prebendas e para o resto.
Na cadeia dizíamos
:
E pela pide não vai nada?

E o coro respondia:
piu. piu, piu
puta que a pariu.

Fica-lhes aqui o recado!

Foi nesse ano que estivemos (ainda dentro, claro...) com a malta presa no golpe de Beja e com um espantoso grupo de alentejanos, pobres como job, presos na cela ao lado que cantavam "modas alentejanas" (ó Baleizão, Baleizão/ ó terra baleizoeira/ eu hei-de casar contigo/queira o teu pai ou não queira....)
Uma vez deram-nos cerejas, um pobre punhado de cerejas que felizmente pudemos retribuir com imensa comida mandada pela nossa gente.

São essas cerejas, leitor José, as que este aprendiz de pastor gostaria de trazer na orelha...
Vermelhas, intensas, sabendo a liberdade e absolutamente conviviais...

Primo de Amarante disse...

Caro José: a ternura foi, sempre para mim, a expressão mais genuina do combate politico. Ternura no sentido de paixão amorosa por uma causa. O que acontece é que hoje já se perdeu a dimensão da paixão por causas e só se pensa nos retornos que pode trazer o apoio a determinadas "causas".

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Caro MCR, mais uma vez as minhas homenagens - pelas suas estórias e pelo seu "curriculum"!

M.C.R. disse...

Pelas histórias agradeço.
O curriculum foi um acaso, um dever e uma teimosia.
De todo o modo, obrigado

O meu olhar disse...

MCR, a sua vida dava um bom livro, e dos recheados com histórias interessantíssimas.
Já agora, gostava de lhe dizer que passei férias em Buarcos há pouco tempo e gostei muito.

A propósito de José Gomes Ferreira posso dizer que ele foi, também para mim, o poeta de referência. Os poemas que escrevi na minha adolescência têm marcadamente a sua influência. Não posso deixar de o lembrar aqui.

Ele escreveu: “É proibida a entrada a quem não anda espantado de existir”

E escreveu também:

Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido….

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
Com a minha sede.

José Gomes Ferreira

M.C.R. disse...

O "velho" Zé Gomes, além de excelente poeta era um espanto falado: animado e generoso sobretudo com a malta nova que reverentemente o procurava alí para as bandas da Barbosa du Bocage. Não era o único inteelectual que valia a pena conhecer: recordo o Carlos de Olveira ou o Joaquim Namorado (então este último era sensacional...) E gostaria de citar aqui o admirável Manuel da Fonseca com quem felizmente também falei muitas vezes, sobretudo nos últimos tempos numa livraria que havia no Largo da Misericórdia, aliás - se não estou em erro - largo Trindade Coelho. O homem contava histórias alucinantes de deixar um de cara à banda. por vezes aparecia com o Herberto Helder e este último desafiava-nos sempre para ir beber umas cervejinhas ali na Calçada do Duque onde também aparecia o Vitorino (cantor). Aquilo dava para tarde mas que horas bem passadas...
Tenho a vaga suspeita que agora já nem sequer os escritores e poetas têm tertúlias destas, em que a gente entrava de mansinho até que, pouco a pouco, se falhávamos uma semana ou duas o escritor ao ver-nos de novo dizia amavelmente: sentimos a sua falta, ainda bem que aparece, etc..
Meu caro JCP: há pouco eu falava de acaso,teimosia e dever. Esquecia-me de acrescentar prazer! E algum atrevimento.
Para os bloguistas amadores de poesia e/ou política informa-se que o Manuel Alegre estará no Porto na próxima quarta feira e na praça Carlos Alberto 110, por volta das 18 e 30. Ora aí está outro a quem devo momentos de alegria e cujos poemas me fizeram companhia naqueles anos de chumbo, quando ainda os sabia de cor...

josé disse...

Caro MCR:

V. é um mestre, à antiga. Disserta sobre os assuntos com o conhecimento de causa da experiência vivida com os actores de um tempo passado.

Falou que o Joaquim Namorado era sensacional nas charlas (nas Escadinhas do Duque?)das tertúlias.

Ora essa sensação poderia muito bem partilhá-la por aqui.
Fazia assim um pequeno esforço, à guiza de preparação de um esquisso sobre um retrato que bem poderia fazer dessa gente toda de alto valor e que anda esquecida.

Do Joaquim Namorado, na net, nem sombra de escritos.
No outro dia procurei uma referência a um certo modo de dizer "mabecos" que mordem canelas a intocáveis...e nada encontrei.

josé disse...

Esqueça, por favor, a "guiza". nem para guisado serve...

M.C.R. disse...

Meu caro José
Como já deve ter percebido (alias basta ler o meu perfil...) eu sou um devoto de Paul Lafargue, ou seja um preguiçoso. Todavia farei o possível por ver se alinho três ou quatro comentários breves sobre essa gente que conheci e que me ensinou tudo ou até mais.
O Joaquim Namorado foi poeta e pintor amador. De poesia tem, que eu saiba "Incomodidade" (Novo Cancioneiro, Coimbra, 1945) e "Poesia Necessária" (Cancioneiro Vértice, Coimbra, 1966).
É um dos teóricos do neo-realismo e deixou um vasto espólio ao museu do mesmo nome em Vila Franca.
A tertúlia que animava era itinerante: de manhã na Brasileira de Coimbra entre as 11 e as 13.
À noite começou por ser no Mandarim mas passou rapidamente para o Tropical, dois cafés da Praça da Republica. Alentejano de nascença e coimbrão pela vida fora.
Tenho ideia que se for ao google apanha este pássaro bisnau

M.C.R. disse...

José:
o google traz 39.000 referências ao Joaquim.
todavia isso não ,e inibirá de tentar um perfil dele nestas nossas páginas.
Um abraço