24 maio 2006

Diário Político 22

As saudades do Império e os terrores da adolescência europeia
ou

A unidade vale bem todos os sacrifícios incluindo o das liberdades formais

ou ainda

Ai Jesus que vem aí a europa!



Uma das mais deletérias e duráveis ideias que boa parte dos portugueses tem de Portugal é a de que este jardim à beira mar plantado não é exactamente europeu: a Europa seria algo que está para lá dos Pirenéus e da qual estamos separados pela Espanha donde não vem bom vento nem bom casamento. D. Afonso Henriques e o torneio de Arcos de Valdevez, Aljubarrota, os Filipes, as incursões espanholas dos séculos XVII e XIX, o Marquês do Pombal retorquindo ao embaixador de Espanha "Mesmo depois de morto são precisos quatro homens para tirarem um homem de casa", Olivença, arreigaram entre a lusa e fera gente um natural sentimento de superioridade que os factos sempre desmentiram e o melhor da inteligêntsia de ambos os países nunca aceitou. Dito de outro modo: os portugueses, porventura até para resistirem ao centripetismo ibérico e iberista, insularizaram-se desde muito cedo e, rejeitados pela terra safara, lançaram-se ao mar, fixaram-se teimosamente onde puderem, aculturando e aculturando-se com espantosa rapidez ao contrário do que sucedeu com a grande maioria dos restantes colonizadores que não quiseram, ou não necessitaram, de fazer o mesmo.

O império arrastou-se penosamente durante cerca de quatrocentos anos mais por culpa dos autóctones que por virtude dos conquistadores que raras vezes viram a corte, o governo e o país demasiado interessados, ou sequer atentos, às suas necessidades, pedidos ou propostas. Afonso de Albuquerque, António Enes ou Norton de Matos para não citar outros (e seria uma multidão) deixaram a esse respeito testemunhos insuspeitos e abundantes. O império lá seguia atraindo escassos emigrantes, enviando os ouros e as especiarias, comprando panos e pagando funcionários. Teciam-se neles as malhas da riqueza alheia, funcionando os colonos como capatazes de interesses estrangeiros e como intermediários entre as grandes multinacionais avant la lettre e os nativos que uma política de administração local brutal mas inteligente arrancara aos laços tribais quer pela mestiçagem quer pela assimilação. Não será demasiada ousadia pretender que a duração das colónias se deve mais a estes factores (e ao que então se chamava, desdenhosamente, cafrealização dos brancos) do que à política colonial.

O império durava e é isso que interessa para demonstrar que depois do sobressalto patriótico do Ultimato se reacendeu o slogan "Portugal não é pequeno", frase que andava acompanhada de um pitoresco mapa da Europa coberto pelo das colónias mostrando á lusitana grei que, se tivéssemos querido, teríamos, eventualmente, tratado espanhóis, franceses, alemães e outros periféricos como pretos e que só a nossa vocação marítima nos tinha impedido dessa tarefa perfeitamente ao nosso alcance. O império acabou como se sabe, da mesma maneira dessorada e patética que fora seu apanágio enquanto persistiu: veio a tropa fandanga, enterraram-se os mortos, esconderam-se os feridos, premiou-se a oficialagem, silenciando-se os Wiryamus por lá praticados, a inépcia demonstrada na mata e nas cidades, celebraram-se soleníssimos acordos que não valiam sequer a meia folha de papel almaço em que fora rabiscada a sua primeira versão.

Vieram também -e ninguém contava com eles, nem sabia, de resto, quantos eram...- os retornados. Brancos tisnados pelo sol, mestiços, mulatos, pretos, indianos, homens, mulheres e crianças, aturdidos pelos tiros de canhão que as diferentes facções se brindavam de esquina para esquina, surpreendidos por ainda se encontrarem vivos, desesperadamente agarrados a uma sacola com uma muda de roupa e um punhado de notas subitamente sem valor.

A direita nem sequer se podendo organizar para os receber, e a esquerda, tratando-os como pestíferos, forçaram-nos, discreta e rapidamente a entranhar-se pelos novos sertões da pátria quase desconhecida, sem organização que, unindo-os, os tornasse perigosos: em Portugal não houve pieds-noirs mas apenas sobreviventes determinados a passar despercebidos e tornar-se economicamente independentes. A eles se deve o renascimento de muitos terrunho de província, sangrado pela emigração interior ou para as europas; a eles se deve o relançamento de muitas pequenas indústrias, o reforço da capacidade turística, algumas novas modas culinárias como essa inenarrável lampreia de caril ou a das codornizes ao piripiri; a eles se deve em parte a saudade do império, compartilhada por muito boa gente que nunca, sequer, foi de longada até às Berlengas.

É dessa que tratamos, da terceiro-mundista que vê em toda a pele escura um sinal de inequívoca bondade natural, que abandonou a conferência de S. Vicente de Paula para se dedicar à causa dos explorados e oprimidos, que defende a nova ordem mundial da informação e compreende os excessos naturais de algumas revoluções em marcha. O chamado mundo ocidental é para esta curiosa espécie de apóstolos um depravado monte de riquezas pilhadas um pouco por todo o lado, um sócio leonino dos segundos e terceiro mundos, o reino secular da luciferina democracia parlamentar em oposição aqueloutro, futuro, em que as conquistas de uma dezena de revoluções não passam de liberdades formais. O Papa é um conservador autoritário enquanto Komeini é apenas um revolucionário excessivo que conduz o seu povo desde terras do Xá-Faraó até às colinas onde o leite e o mel correm de parceria com o tchador, a charia e a justiça dos pasdarans. O dr. Soares é um aliado objectivo e subjectivo da direita revanchista enquanto o senhor Robert Mugabe do Zimbabue é o singular descobridor das virtudes objectivas, e adequadas às actuais circunstâncias históricas, do partido único. Para estas criaturinhas simples e piedosas o pé desmanchado da Luisinha Carneiro é realmente mais importante do que a fome na Etiópia. Chama-se a isto em linguagem de cassete discutir primeiro Portugal e os problemas portugueses Há Walesas recalcitrantes no paraíso polaco? Trata-se apenas de uns catolicões trauliteiros e anti-aggiornamento!

A Amnistia Internacional publica listas gigantescas de perseguidos na Letónia? está infiltrada pela CIA e pelo FBI e propala atoardas inverificáveis que, no melhor, apenas se reduzem a amável admoestação a um punhado de nacionalistas exaltados, ainda impregnados do espírito dos antigos cavaleiros teutónicos! E etc... etc...

Compreender-se-á que a esta espécie de pessoas a entrada de Portugal na Europa, fons omnia injustitia, desagrade. Não se resignam a ser parte de um todo muito maior, a ser dez entre trezentos milhões, a ser como os belgas ou os dinamarqueses para já não falar dos do Luxemburgo. O bom seria continuar a exportar os emigrantes, receber-lhes cá as divisas, mandar para lá o vinho, o concentrado de tomate e os têxteis e continuar o alegre carnaval político em que os generais se mascaram de presidentes e os presidentes de oficiais às ordens dos generais; o melhor seria pagar os salários em atraso através dos cofres de estado e encher estes ao sabor da canção os ricos que paguem a crise; nada mais útil e produtivo para a nação do que ter empresas públicas falidas em vez de deixar reconstruir os monopólios.

O orçamento deve ter a forma de biberão e os cidadãos, na antecipação da tanga, devem usar fraldas sob o olhar atento, meigo e firme do Estado-nurse. Os artistas serão protegidos pelo expediente simples de só se passarem séries nacionais na televisão, a música portuguesa será obrigatória entre as nove da manhã e a meia noite, os teatros não precisarão de ter público para se manterem. Os buracos das ruas serão tapados com portuguesíssimas sardinheiras e todos, todos sem excepção terão direito a usar o dr. antes do nome e a aparcar o carro em zonas de estacionamento proibido.

A forma mais radical desta mansa loucura consiste em, reclamando-se da herança lusitana, acentuar a especificidade dos heróis do mar nobre povo em oposição à Europa e, especialmente, à CEE.

De facto consta que neste capítulo ninguém se conforma com as perdas de Arzila ou de Luanda. Vigora o mito dos povos irmãos (que, entretanto, arranjaram outros familiares bem menos fraternos, diga-se de passagem...), a ideia de um radioso futuro compartilhado que se resumiria ao regresso aos trópicos para se voltar a acocorar à sombra da árvore das Patacas.

E de nada serve argumentar que, em menos de vinte anos, emigraram mais portugueses para o triângulo França, Luxemburgo, Alemanha do que em século e meio para África.

Dizer que em cinco anos entraram mais portugueses em Espanha do que em quatro gerações em Cabo Verde, S. Tomé, Guiné e Timor é despiciendo. "Para África e em força" (Salazar dixit) é a palavra de ordem. Perguntar como, para quê, porquê e com quem é considerado ofensa e não merece resposta.

A Europa é que não! Ou porque a CEE é apenas um aglomerado para mais trocas comerciais, ou porque é o fim da nossa identidade cultural ou finalmente porque a unificação europeia é, apenas e só, a tentativa desesperada e derradeira de salvar o capitalismo para construir um bloco (outro!!!) contra o estado do proletariado e os seus aliados.

Do outro lado também há quem se desgoste da Europa que aí vem. Treme-se pela perda do bolo-rei e pela desnacionalização do cozido à portuguesa. Essas europas nórdicas, que aí vêm, decotam-se em demasia, têm a mania da igualdade dos sexos (e de oportunidades) descrêem do poder divino dos senhoritos e do poder temporal dos senhores abades.
Parece que fornicam a qualquer hora e por mero desfastio e não, como se deve, para cumprir a exigência bíblica "crescei e multiplicai-vos". Credo! Livres-pensadores! Pedreiros livres! Só lhes falta ser democratas!!!

Por enquanto, e para prevenir, vão-se aliando democraticamente e pondo o anel ppd no dedinho mimoso cds. Amanhã, se tudo lhes correr de feição, põem-nos a nós uma argola no nariz e mandam-nos para a engorda até ao dia, clemente e misericordioso, em que a choupa do magarefe nos acutilar o cachaço. É pró que estamos!


Dezembro 1981

Nota: celebra-se por estes dias o “dia da Europa”. O clima é, dizem-me, de desencanto: os lusitanos que deram um salto gigantesco no tempo e na modernidade graças aos dinheiros europeus (e mesmo assim mal aproveitados!) parece que andam também desanimados. As modas tem destas coisas: há que estar sempre com a última de Paris ou Londres. Por outro lado, entre o indigenato local corre, expande-se como mancha de azeite, uma perigosa ideia de rever o passado, de esquecer as responsabilidades, tratando de alijar borda fora quer o colonialismo cretino quer o anti-colonialismo pateta que foram moda até há pouco. Paciência! E uma outra bem mais perversa: os emigrantes que vêm cá fazer o que (desde Nicolau Clenardo) ninguém quer fazer são um mal, sejam eles pretos – os piores – brasileiros – tudo prostitutas! – romenos –ladrões – chineses –perigosos ou outros de difícil classificação. Há países e povos que conseguem ser pequeninos em tudo, chiça!
2. Uma leitora, Olá Cristina!, num e-mail amável, previne-me que não há diário político nº 13. Tem carradas de razão: tratava-se de dois textos sobre Clinton enquanto galã atrevido que estão prontos a ver se têm lugar aqui. É que são um pouco desbragados, se é que está a ver o que quero dizer...
Eu sei que no parco de leitores que me atura há um, o dr Cabral Mendes a quem alguns dos meus arreganhos sobressaltam. Todavia, educadamente, vai-me dando a réplica. Não se espantarão se lhe dedicar este texto que terá (suponho) mais de metade da idade dele!

3 comentários:

C.M. disse...

Caríssimo d’Oliveira:


Estava eu, “posto em sossego”, a elaborar um parecer (urgentíssimo, como sempre…) e eis que me telefona a minha dona, avisando-me de que acabara de ler um (sublime) texto seu…

Helás! Há que interromper o trabalho por uns minutos e vê-lo: inenarrável na sua VERDADE!

Com efeito, aqui estão postas “ em desassossego” as idiossincrasias da nossa sociedade, do nosso povo, do nosso País.

Idiossincrasias a que ninguém escapa, tanto à esquerda como à direita…e é essa uma grande virtude do presente texto: desmistificar certa esquerda perversa, que olha para o lado quando não lhe convém…Ora veja-se esta lúcida passagem (entre muitas):

“O Papa é um conservador autoritário enquanto Komeini é apenas um revolucionário excessivo que conduz o seu povo desde terras do Xá-Faraó até às colinas onde o leite e o mel correm de parceria com o tchador, a charia e a justiça dos pasdarans”…

Ou ainda esta, que traduz a loucura que foi (esta) descolonização, referindo-se aos “retornados”:


“A direita nem sequer se podendo organizar para os receber, e a esquerda, tratando-os como pestíferos, forçaram-nos, discreta e rapidamente a entranhar-se pelos novos sertões da pátria quase desconhecida, sem organização que, unindo-os, os tornasse perigosos: em Portugal não houve pieds-noirs mas apenas sobreviventes determinados a passar despercebidos e tornar-se economicamente independentes. A eles se deve o renascimento de muitos terrunho de província, sangrado pela emigração interior ou para as europas; a eles se deve o relançamento de muitas pequenas indústrias, o reforço da capacidade turística, algumas novas modas culinárias como essa inenarrável lampreia de caril ou a das codornizes ao piripiri; a eles se deve em parte a saudade do império, compartilhada por muito boa gente que nunca, sequer, foi de longada até às Berlengas.”

(Ah! Saudade do Império! Hoje seria possível, com novas mentalidades, construir ali uma sociedade de sonho…para todos!)

Por estas e outras passagens, constata este escriba que há pessoal esclarecido cá no burgo…

Muito obrigado pela dedicatória, d’Oliveira!

Seu,

Cabral Mendes

C.M. disse...

d'Oliveira:

Estou aqui ás voltas com um trabalho e nem sequer vou poder almoçar...contudo, lembrei-me, de novo, deste seu postal, e queria acrescentar que ainda há dias escrevi a um amigo destas lides, tendo-lhe dito precisamente o seguinte:

"(...) O Prof. Jorge Miranda, tive o grato prazer em o ter como Professor e, de facto, ele é um acérrimo defensor de Portugal enquanto Nação velha de séculos, dos seus pergaminhos, da sua independência face ao poder "totalitário" de Bruxelas...a UE é agora, um novo " poder", qual Castela de antanho... "

"Prontos"...mais achas para a fogueira...

Um abraço

Cabral Mendes

M.C.R. disse...

1. em tempo: avisam-me que este DP é o 22 e não o 21. Por aqui se vê a minha falta de jeito para números. É de facto o 22.

Caro DLM:
não foi a descolonização que foi uma loucura. A loucura foi a colonização e isso está bem explícito no meu texto. Colonizamos mal, logo não poderíamos descolonizar bem!

Eu não ternho saudades do império, nem daquele nem de nenhum. O seu sonho a azul bebé de um império bom não passa disso. De um sonho. Acredite. Nunca houver impérios bondosos nem colonizados contentes.

A UE pode por vezes ser tolinha mas tem sido a nossa ABSOLUTA salvação. Sem ela já não existiamos: economicamente sem qualquer dúvida e politicamente com grande probabilidade.

O que eu aqui contrario é essa união sagrada da esquerda histérica e da direita sem conserto. Para ambas a UE deve ser um pesadelo. COMO A DEMOCRACIA, aliás.