30 abril 2007

Estes dias que passam 58


Pessimista, eu?

Isto não era para ser assim, mas Deus põe e a televisão dispõe. Eu ia debruçar-me sobre dois ou três casos que agitam a vida nacional mas, de repente, o canal Arte sai-se com um documentário impressionante sobre o saque levado a cabo pelos nazis na Europa ocupada. Parece que Hitler queria homenagear Linz, a sua cidade natal, com um belo museu todo recheado de obras roubadas aqui e ali, curiosa a moral deste vago pintor de tabuletas, isto sem desprimor aos profissionais do ramo que não têm culpa que um borra botas que fez uma guerra inteira sem conseguir passar de cabo, dê mau nome à classe. Portanto, pintores da construção civil, caiadores de casas alentejanas (as únicas que todos os anos são caiadas e de quando em quando mais do que uma vez) pintores de arte & similares (mais estes do que aqueles) e restante público que se diverte com um guache ou aguarela domingueira, isto não é contra vocês mas apenas contra a gandulagem que saqueia museus, galerias à força tout court ou à força de dinheiro.
Íamos que Hitler & comparsas entenderam cevar-se nas colecções públicas e privadas dos países que conquistavam. E das peças de que não gostavam, vendiam algumas e queimavam as restantes (no Museu do Jeu de Paume, gigantescas fogueiras consumiram, Picassos, Dalis, Miros para já não falar na célebre “arte degenerada”). Goering para não ir mais longe comprava com o dinheiro da Luftwaffe os quadros que lhe caíam no goto. Não que eu o censure, para quê gastar os maravedis próprios quando há dinheiro público a pedir para ser arejado?
Nem sei porquê, mas esta história faz-me lembrar aquele líder insular que. em apanhando uma eleição a alcance de tiro, pimba!, desata a inaugurar coisas como se depois dele se esperasse o dilúvio. Também eu inauguraria um porradão de coisas se o cacau fosse alheio. Ao lado deste pequeno idi amin (já sei que preferiam bokassa mas ao que sei já foi usado e eu só plagio os grandes, nunca a equipa da casa, equipa de segunda divisão, convenhamos, pouco entusiasmante, mas esse o nosso triste fado) até parece um gesto de sábia economia o daquele presidente camarário que paga aos seus subordinados ordenados dignos de um marajá dos pequenos. Vivemos uma época de generosidade à custa dos dinheiros públicos que, decerto, ficará para a história. Então não é que, esta gentinha que desgoverna o Porto, está já disposta a abrir mão da negregada linha de metro da Boavista? Isto, depois de fazerem com o dinheiro do supracitado metro um par de obras de “requalificação” da Avenida da Boavista. Agora que o metro já não se passeará por aqui como é que se restitui a massa gasta? Ou, melhor, quem vai pagar? Melhor ainda, iremos nós, mais uma vez, pagar e não bufar? É claro que a fantasmática linha de metro Matosinhos sul- Casa da Música, não é nada perto da linha de “alta velocidade” Lisboa-Porto (de que agora já corre, à boca cheia, que nunca será rentável) ou da outra, ainda mais pindérica e espalhafatosa, Porto-Vigo. Isto de gastar o dinheiro dos contribuintes com esta alegre inconsciência não é, pois, fenómeno insular ou portuense, mas nacional. Até parece que, a cada cinco anos, há nos responsáveis um irreprimível orgasmo gastador. Devem dizer-se uns para os outros, ora vamos lá criar mais um elefante branco. Este proboscídeo albino não saiu da imaginação de Salgari, autor que muito me apraz e que, há dias, foi apontado em letras garrafais como “politicamente correcto” não sei bem porquê, li o artigo todo e nada vi a respeito disto. Às tantas foi o editor, o copy-desk ou lá como agora se chama o “inteligente” da redacção, quem entendeu meter essa bucha para despertar os leitores do letargo que o “Público” agora se encarrega de nos provocar. Este novo “público” não cessa de me surpreender: ainda hoje se comentava o desastroso francês de um colaborador da área musical que inventou para “ombre” o significado de “ombro”. Dava jeito, lá isso dava, mas os franceses são uns macacões e usam ombre para significar sombra, uma chatice para os nossos intelectuais e para estes críticos musicais. No exacto dia em que o provedor dos leitores puxava suavemente a orelhinha carnuda e felpuda do citado cavalheiro, ele voltava à carga com os mesmos erros, mormente “ne me quittes pas” onde o esse do verbo é excessivo e pode mesmo ofender o espírito de Brel para já não falar na canelada na gramática. Ora aí está um sério candidato à gestão pública de comboios metros aeroportos und so weiter.
Eu nem sequer me comovo com estas tretas politiqueiras que tingem de roxo o país, como se estivéssemos condenados a uma Quaresma infinita. Já vi tantas que nem sequer o drama patusco da Câmara de Lisboa me comove. Aquilo é a coisa mais parecida com um jazigo que conheço. Um jazigo desses que às vezes povoam os cemitérios, abandonados de vivos e provavelmente sem poder recorrer aos mortos que guardam. Noutro tempo ainda se poderia esperar um fantasma ou um sinal enviado directamente do paraíso mas agora parece que inferno e paraíso não são sítios mas apenas sensações. Já tínhamos perdido o limbo e agora, sem inferno nem paraíso, ficamos condenados ao desenxabido purgatório que não sei porquê sempre pareceu ser o local onde se tomam purgantes.
E, por acaso, ressalvadas as semelhanças com as canalhices perpetradas pelos fasci di combattimento, às vezes apetecia mandar uma garrafa de óleo de rícino a todos esses figurões que nos malgovernam. O pior era se gostavam, esta gente é insaciável e não larga a gamela nem morta.
Hoje o meu amigo MSP veio até cá a casa dar uma ajuda de carácter técnico e exprobou-me o pessimismo do texto “sixty five” (au bonheur...64). É que às vezes ser português cansa. E muito.


Na ilustração: políptico de Gand, também conhecido por “cordeiro místico” de Van Eyck. Foi uma das obras de arte roubadas pelos nazis.

PS: Alguém conseguirá explicar-me o desaparecimento da fotografia de Rostropovitch que ilustrava o texto imediatamente abaixo deste (estes dias... 62)?

27 abril 2007

Estes dias que passam 57




É difícil destrinçar entre o homem generoso e corajoso e o artista insigne que marcou compositores tão importantes quanto Prokofiev, Bernstein ou Chostakovitch.
É difícil esquecer o artista laureado que, por defender os direitos humanos na URSS, se vê obrigado a emigrar e é destituído da cidadania soviética.
Ouvi-lo era um milagre repetido graças aos novos processos de gravação. Até nisso fomos abençoados nesse terrível século XX que viu alguns dos mais livres serem perseguidos por defender o mais simples direito, o de existir.
Num dia que agora parece longínquo, Mistilav Rostropovitch pegou no violoncelo e tocou Bach junto a um muro que ruía em Berlin.
E essa música poderosa e fluente pareceu a todos quantos o vimos uma torrente purificadora de boa dose dos nossos pecados laicos e liberticidas.
E por um momento, para sempre?, a infâmia daquela construção sinistra pareceu afundar-se, desaparecer conjuntamente com os seus obreiros e com tudo o que de terrível e ignóbil aquilo significava.
Morreu um justo, um enorme músico, um herói e um homem que aspirou sempre a ser apenas isso: um homem numa terra de homens.

Au Bonheur des Dames 64

Socorro, que eu já nem sei se publiquei isto! apareceu-me, de supetão, vindo de não sei que catacumbas, este texto provavelmente feito para me lembrar que entrei na velocidade de cruzeiro para nenhures. Algum(a) leitor(a) será tão generoso e de tão boa memória que me possa dizer se "isto" já deu à costa nestas paragens incursionistas?

sixty five!

Então querem lá ver que este que estas pobres linhas vai, dificultosamente, alinhavando no iBook G4 (outra das muitas bizarrias do abaixo assinado) está a entrar na 3ª Idade! In The golden age diria algum cínico mais espevitado se entendesse atrever-se com um ancião ou, melhor, se achasse que valia a pena dar uma canelada no escriba. Qual golden qual quê? Golden só as maçãs, e Deus sabe que não têm graça nenhuma, sabem a serrim açucarado, todas iguais, redondas e brilhantes, todas com ar de quem nunca viu um bicho da fruta, coitadas, nem sabem o que perderam (isto é uma metáfora da canção do bandido que um gajo com 65 pazadas nos lombos vergados, poderia tentar cantar a uma raparigota boa de ver e melhor de apalpar, como dizia o mestre C.J.Cela).
Já me perdi. Voltando ao caso sub-judice: sessenta e cinco calendários já se gastaram em tão fraca criatura. Não é o começo do sexagésimo quinto é o fim dele. Isto é o mesmo que dizer que, quando se fazem 65, perfazem-se! Ou, por outras palavras mais amáveis: já cá cantam sessenta e cinco perfeitos!
Perfeitos, o tanas e o badanas! Ou, em alemão que é mais fino: o Tanhäuser e o Badanhäuser! É que o artista que está a fazer este perigoso número de equilibrista no circo da vida, perante a apatia desconsolada de uma plateia que veio para ver a domadora de tigres e o palhaço rico, de perfeito, pouco ou nada! Em compensação, é uma antologia de imperfeições: canhoto, livre pensador, anarqueirão, leitor omnívoro, péssimo jogador de futebol na praia de Buarcos (ai há quantos anos...), tristonho segundo as marés, olho pingão e chorão, jogador de bridge sem parceiros (vivos) e mais um und so weiter (ah, ah! É et cœtera em alemão, outra vez! Que Kulturra! ) de defeitos maiores e menores de descrição difícil e acentuada indiscrição.
Parece que, entre outros benefícios, a Carris, o SMTPP, a CP e mais uns quantos organismos transportadores, oferecem descontos no transporte deste cadáver adiado. É uma coisa também “golden” que funciona nas horas mortas, como convém. E a TAP?, pergunta-se. Também dará uma abébia nos voos para Paris, Roma, Berlim e Amesterdão? Nem que seja sem direito a estar sentado, ou sentado junto dos camafeus que eles agora arranjam como hospedeiras, livra, que falta de gosto. E logo eu, que me lembro de uns borrachos de primeira que, se calhar, eram notoriamente incompetentes mas que tinham cá um palminho de cara para já não falar no corpinho. Também é verdade que naquele tempo de super-constelations lentos, pesados, barulhentos era mister entreter o pagode com a visão de umas pequenas geitosonas... Ah que vôos esses: dois inteiros dias para chegar à Beira (Moçambique) com escalas admiráveis: Kano, Nyamey, Luanda, Salisburia etc... E o avião a voar a dois. três mil metros e a gente a ver tudo lá em baixo, floresta, savana, deserto, caminhos, rios, manadas, aldeias, sei lá que mais! Melhor!, sei, sim senhor: a entrada do rio Zaire (ou Congo, tanto me faz) no mar! Uma imensa azagaia de águas escuras no azul do mar. Quilómetros e quilómetros de água negra vinda das grandes florestas, do coração das trevas, onde um Kurz invisível tecia o inesgotável novelo do colonialismo selvagem, do neo-colonialismo de óculos escuros, enfim deste post-colonialismo que, por aquelas bandas, se ceva continuamente em morte, guerra, sida e horror, modernos cavaleiros de um inextinguível apocalipse que também não nos poupará.
E perdi-me de novo! Arre que isto é demais! Ou, se calhar não. Apenas outro sinal desses já longos anos que se perfazem, perfeitos só por ironia, imperfeitos por vocação, por caturrice (e ele a dar-lhe) e porque sim!
Já me estou a ver, à beira de um passeio perdido a pensar nem eu sei bem em quê e, Zás!, chega um matulão ou uma matulinha, é igual, vestido de escoteiro e pega-me pelo braço e ala que se faz tarde, depressa para o outro lado da rua se não for para o outro lado da vida. Ai, eu odeio escuteiros, aliás odeio fardas, sejam elas civis ou militares ou desse outro indefinido género como os aventais e demais parafernália maçónica, cuja utilidade nunca vislumbrei, nem a da fardeta aventalóide nem a organização em si mesma, que parece tão ridícula e extemporânea quanto a de uns novos e redivivos templários que agora deram em aparecer, aureolados pelo código davinci ou por outra impostura do mesmo teor, arre, que esta gente não dá tréguas a quem por cá passa amavelmente, com alguma angústia é certo, mas também com um sorriso, ou o esboço dele, uma comoção, várias até, um braço fraterno, o pão e o queijo e o vinho em cima da mesa aberta a quem chegar, quando chegar, a quem entrar e que entre por bem.
Ai amigos meus, escassas leitoras gentis, a quem sempre me encomendei, que fraca viajem fiz. E, no entanto, que de sonhos, de cantigas, de promessas, com que enchi a minha pobre bateirinha (barco mais figueirense não há, proa alta e curva, muito pintada, corpo longo e esguio, leme a condizer) para navegar perto da costa se possível, entregue aos ventos e às correntes em caso de temporal, pouca fé e muita esperança, tanto mar, tanto mar, pouca terra pouca terra, que isto é o destino de quem nasce em terras de Espanha, areias de Portugal, com anunciou o gajeiro lá do mastro real. Que alvíssaras pedirei por tão pouca fazenda trazida de umas índias que já não o eram, para um Restelo que nunca quis? Velho sim, mas de qualquer outra banda que essa!
E, agora, aqui estou metaforicamente tão nu como nasci, mas com muita cicatriz, muitos amigos ausentes e. pela frente, apenas o primeiro dia do resto da minha vida.

A ilustração: "combate de tigres" pelo extraordinário "Douanier" Rousseau. Isto para lembrar um verso de Borges:
...con los años fueron dejandome
los otros hermosos colores
ahora sólo me quedan
la vaga luz, la inextricable sombra
y el oro del principio
....

26 abril 2007

outros muros



Entre a vista que, a 25 de Abril de 1974, tinha da janela do meu quarto, em Caxias, e a que se tinha daqui, em Berlim, onde estou hoje, um mundo de diferencas e algumas semelhancas.
Por isso, nem o corpo esgotado, nem a mente cansada, nem o teclado sem acentos nem cedilhas me demovem de vir aqui gritar VIVA A LIBERDADE!

25 abril 2007

missanga a pataco 10


Falemos então, pouquinho mas com alegria, no 25 A. Já aqui contei as histórias que um grupo de amigos viveu desde os dias imediatamente anteriores. Como na nossa escassa, mas total, possibilidade nos entregámos de alma e coração à empresa. Também já referi, há-de ter sido no ano passado, a emoção e a determinação (uma coisa não retira a outra e nas mulheres até parece que ajuda) da Teresa Feijó e da Maria João Delgado naquela madrugada duvidosa em que tentávamos perceber se o dia ia ser de festa ou se dali a pouco estaríamos guiando carros cheios de derrotados rumo à fronteira.
Falo hoje de dois homens já maduros, que tinham visto outras, sempre desagradáveis, mas que nem hesitaram quando fui pedir-lhes ajuda e colaboração, contando o mínimo indispensável e pedindo o máximo (im)possível. Falo de Rui Feijó e de Jorge Delgado.
Que um rapazola, enfim, um tipo de 33 anos (essa era a minha idade) se metesse nestas conspiratas era coisa fácil. Mas eles já tinham passado os cinquenta, já tinham conhecido a prisão e o rosário de coisas de desagradáveis que acompanhava qualquer democrata que desafiasse o poder. Tinham posição, família, negócios, e os anos não ajudavam. Ora bem. Acreditem ou não, nem pestanejaram. É para já, responderam. Com uma diferença: o Rui ficou em pulgas enquanto o Jorge, mais experimentado, disse que o chamassem só quando fosse necessário pois entretanto dormiria o sono dos justos (e ele era-o) dos habituados (idem, aspas, aspas) e dos decididos. E assim foi. Por isso não se meteu às ruas da noite e da madrugada connosco, enquanto o Rui fervilhante dizia que não podia estar em casa.
O Jorge morreu já, deixando entre amigos e conhecidos uma rasto luminoso de um militante critico e ponderado da liberdade. Faz falta, muita falta.
O Rui vai nos oitenta e cinco se não estou em erro, tem os achaques da idade, e dos rins a desfuncionar, da vista já cansada, das pernas que pouco lhe obedecem, mas a cabecinha continua fresca como no primeiro dia. Costumamos falar-nos neste dia, mas hoje ele teve de ir para a sua diálise e sai de lá desfeito. Amanhã também é dia, é sempre o primeiro dia de uma outra coisa que por muito desgostante que esteja, é melhor do que o 24 de Abril de 1974.
E o meu recado é simples: a democracia é coisa que está sempre em obras, o que é uma chatice. Mas mais vale viver entre andaimes do que entre grades sejam de ferro ou tão só tecidas de medo. E é isso que não é fácil de ensinar a quem nessa altura tinha dez, doze quinze anos para já não falar nos outros ainda mais ovos. E todavia foi por eles, para eles que alguns se arriscaram. Não estou a pedir grande meditação sequer um minuto se silêncio. Prefiro mesmo que o dia tenha sido passado como qualquer outro feriado porque isso é o verdadeiro sinal da vitória: viver na normalidade.
E por isso, só por isso, digo in imo pectore: viva o vinte e cinco de Abril, sempre!
a ilustração de hoje: cerejas. Lembrando a velha canção de combate:
Quem te pôs na orelha
essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.

25 de Abril

Hoje comemorou-se o 33º aniversário da revolução dos cravos. O Dia da Liberdade foi de novo assinalado na minha terra, Marco de Canaveses. Desta vez sem as parangonas do ano passado, sem as televisões e a imprensa nacional, tanto mais que se havia perdido o “efeito” novidade que as comemorações de 2005 traziam em si. Ainda bem. Marco de Canaveses voltou a ser uma terra normal, que não tem vergonha de homenagear aqueles que lhe trouxeram a liberdade numa manhã de primavera (sim, também estou a pensar no mcr e nos seus tempos de Caxias).

Enquanto autarca em funções senti que tinha o dever de me associar e lá estive, para assistir à inauguração de uma modesta escultura (ou instalação?) alusiva à data e para participar na sessão solene organizada pela autarquia. Actos que, em Marco de Canaveses, também servem para exorcizar alguns fantasmas que ainda por lá pairam.

24 abril 2007

Farmácia de serviço 31

FUI CIEGO
COMO PIEDRA DE CRIPTA HASTA QUE UN DIA
VI EN EL MUNDO LAS MANOS VERDADERAS

NO ERAM LAS MANOS, SINO AQUELA FORMA
DE ESTAR UNIDAs SIN TOCARSE, COMO,
EN EL BOSQUE, LAS HOJAS SORPRENDIDAS
EN LA PROFUNDID Y LA QUIETUD
(Antonio Gamoneda)

A botica anda arredia não porque lhe falhe assunto mas apenas porque o praticante de serviço é um preguiçoso dos quatro costados, distrai-se por tudo e por nada, enfim, a crise da farmácia chegou ao incursões. Hão-de ter reparado que se falou em praticante e não em boticário. E razão não falta: alguém, seguramente um aleivoso, levantou reparos ao diploma que está emoldurado ao lado da caixa registadora. Puseram em dúvida o latim do documento (se calhar queriam Cícero ou Virgílio) o selo branco, a data enfim, uma escandaleira.
O responsável pelo estaminé entendeu recorrer aos tribunais para convencer os insidiosos e lavar a honra, mas até lá louva-se com o título de praticante. É para que conste.
E comecemos pelo princípio como ensinava um insigne mestre coimbrão e de Direito: Beethoven! Esse mesmo o Luís, que Ludwig é nome de incréu ou de aluno de Königsberg (e sabe-se lá que género de universidade será, mesmo com o Kant, pode suceder que ele só emprestasse o nome, já se viu disso, portanto nunca de confiar). Beethoven portanto. Anuncia-se a Integral na Brilliant classics, lá para Setembro. A “abeille musique”, vossa velha conhecida, garante o preço dos 100 (cem) cds: 112 euros. E como toda a gente sabe, não é refugo. São excelentes interpretações entretanto caídas no domínio público.
Quem estiver apressado, tem aí da mesma editora uma escolha (as obras principais) em 60 cd. O preço? Um escândalo: 39.99 euros. Está na amazon.fr
E a pintura? É raro aparecerem aqui dicas mas desta vez aí vão. Em Lisboa na S Mamede está uma mostra de obras recentes de Ana Maria. Vão por mim que, desde os anos oitenta, a fui comprando. É coisa fina! Um desenho minucioso e miudinho, um grande domínio da cor e uma imaginação prodigiosa.
Curiosamente ou não, a Cordeiros, desta vez no Porto anuncia Mário Bismarck, que também fui adquirindo na mesma altura. O surpreendente disto é que foi casado com a Ana Maria... Eu recomendo-o muito também. Por isso tenho dele duas peças na sala. Pela amostra, o Bismarck está muito hiper-realista. E muito, muito bom.
Terceira proposta: no Palácio Anjos, em Algés três exposições sobre a égide do Centro de Arte/colecção Manuel de Brito: Menez por um lado e Ana Vidigal e Ruth Rosengarten por outro.
Uma lembrança comovida do Manuel de Brito, um marchand a sério num pais a fingir.
E terminemos esta viagem com a gratíssima notícia do prémio ao Eduardo Batarda. Desculpem lá, mas é um amigo muito querido desde o nosso longínquo ano de caloiros. O Batarda é todo um percurso de inteligência, ironia, rigor, uma lição. Se vos passar perto uma coisa em forma de livro com o título “O peregrino blindado” da autoria (?) de José Lopez Werner, tradução e adaptação de Batarda Fernandes, edição da livraria 111, 1973, em 200 exemplares numerados de 1 a 200, disparem e abram os cordões à bolsa que agora deve estar por um fartote de maravedis. Se vos propuserem o exemplar 101 não comprem que esse já cá canta. E não fiquem a roer-se de inveja. Eu casquei uma nota preta por ele naquela época. Olho para o bom e um sentido forte de amizade. Nós os de Coimbra dos anos sessenta somos assim, João Tunes! E valeu a pena!
Mais discos: então não é que a Câmara Municipal de Matosinhos editou na sua série “Musica Portuguesa –século XX” o “in memoriam Bela Bartok, op. 126” do Lopes Graça e a “Música para piano” do Jorge Peixinho, com interpretação de Miguel Borges Coelho (isto fazia parte de um sumptuoso saco de ofertas aos membros das mesas do Literatura em Viagem). A CMM que também já se mostrou mecenática com Alvaro Salazar, Cândido Lima, Filipe Pires, João Pedro Oliveira, tudo gente que o praticante de farmácia conheceu nos bons tempos em que trabalhava na Delegação Regional do Norte da Secretaria de Estado da Cultura.
Então esta Câmara é ou não é um escândalo?
Já agora um recadinho para a CMM: ó malta eu aceito de boa vontade os outros discos...
Passemos à livralhada. O que não falta são boas edições portuguesas. Mas só para chatear o indígena aqui vão umas propostas sumptuosas e espanholas: “El corazon helado” de Almudena Grandes, belíssima ficcionista de quem traduzi há pouco (ainda não está no mercado) Los Aires dificiles. A edição é da Tusquets. Curiosamente fiquei a saber que ela é casada com um grande poeta Luís Garcia Montero de que muito gosto. Saiu dele, há uns meses e já cá canta, Poesia Reunida 1980-2005, Tusquets igualmente. E querem crer que mulher e marido andaram juntos um pancadão de semanas no primeiro lugar de vendas?
Outro poeta, prémio Cervantes: António Gamoneda: “Poesia Reunida (1947-2004)” editada pela Galáxia Gutemberg e pelo Círculo de Lectores. Um portento!
Para acabar mesmo, refira-se o nº 242 da revista (também espanhola!) Litoral totalmente dedicada a um outro grande senhor da poesia de aqui ao lado: José Manuel Caballero Bonald: são trezentas e tal páginas lindíssimas com ilustrações fantásticas. A gravura de hoje é precisamente a capa deste exemplar.
O leitor Ferreira estabeleceu-se por conta própria mas jurou-me que continuaria a ler-nos. Está pois no blog ograndetedio-ferreira.blogspot.com. A ler sem hesitação que o David sabe do que fala. Ele pede desculpa pelo grafismo e por não saber pôr ilustrações. Quem achar que é melhor do que eu, digas-lhe como é que isso se faz.
A prima Maria Manuel apresenta na Casa Fernando Pessoa, no dia 3 de Maio, às 18,30 o livro dela e da Ana BenaventeDamas ases e valetes", Teorema. Li a versão de trabalho e gostei. O mítico escultor MSP declarou-se totalmente favorável e bem impressionado.
A Clara Boleo, outra de Coimbra, mandou-me agorinha mesmo um mail a convocar as massas musicófilas para um concerto de Pedro Boleo Rodrigues e Diana Dionísio. É na Casa viva, praça do Marquês 167, no Porto. Uma hora depois há discussão política: “cultura: basta de cereja que é feito do bolo?” Esquecia-me de dizer que isso acontecerá no sábado 28 a partir das 21.30. Ao concerto só faltarei por motivo de força maior, já o resto...

Razões estranhíssimas (castigo divino, punição governamental, asneira própria?) fizeram que isto saísse com gralhas. Estão corrigidas já hoje dia 25, de que falarei brevemente. A gravura de hoje é a própria capa da magnificente Litoral e os versos, claro são de Gamoneda.
Os leitores que desculpem as gralhas e o MSP que faça novo print. Olha, Manecas, foi sem querer.

Au Bonheur des Dames 63

Matosinhos: the final cut.

Pronto, já está. Ou, melhor, estará daqui a umas horas mas eu é que não posso dispor de mais uma tarde, a tradução de “Llamame Brooklyn” está à espera e o João Rodrigues pediu-me pelas alminhas que me apressasse. A jovem editora “Sudoeste” (já se deram conta daquele fabuloso grafismo? E dos excelentes títulos já no mercado?) não pode estar à mercê de um tradutor preguiçoso ou a preguiçar, prazenteiro, por Matosinhos. Portanto fiquei-me pelo excelente filme do Tabajara Ruas: “As cartas do domador” ontem apresentado em versão de trabalho a um público numeroso que encheu o auditório. Tive que ir buscar a minha cadeira à zona de café e comigo foram mais uns quantos. Até disse ao Aurelino, esse companheiro de todas as póvoas e agora, pelos vistos, assinante também de Matosinhos, que aquela multidão era por ele. E de facto também era que o Aurelino faz uma perninha no filme do “Taba”. Excelente!
A segunda feira decorreu portanto na mesma toada dos dias anteriores, e deu-me o privilégio de descobrir mais alguns velhos companheiros de Coimbra, dos tempos quentes, imaginem que um deles até me chamou de “terrível mcr!” E depois, candidamente, confessou que tinha feito trinta por uma linha durante a crise... Também pude conversar mais longamente com o António Cabrita, o homem faz tudo e pelos vistos faz bem. Só o conhecia de críticas esporádicas lidas aqui e ali, vamos lá ver se “Arte Negra” (Fenda, ed.) ainda está no mercado. Com o Tabajara foi outro fartote, já nos conhecíamos desde 2004, da Póvoa (e eu já o conhecia desde a leitura de “A região submersa” Bertrand, 1978!!!). O Taba ficou impressionadíssimo com um leitor do que, numa posterior dedicatória, ele chamou “um ovo da minha pré-história!”. É para que saiba! Atenção pois, ao posterior percurso deste cineasta e escritor de que falarei numa próxima “farmácia de serviço”.
Outro encontro entusiasmante: Paulo Bandeira Faria, “as sete estradinhas de Catete”, Quid Novi. Ainda por cima este jovem escritor é sobrinho de um muito querido amigo, de que aqui falei, infelizmente a propósito da sua morte, José Bandeira, crítico de cinema de mérito e camarada das guerras coimbrãs, sócio da Centelha e tudo o resto.
Eu deveria falar de livros mas como calcularão ainda não tive tempo para os ler. A seu tempo se farão pequenas referências, que um livro só precisa disso, e quem quiser crítica pesporrenta e chatíssima que se avie noutra botica. Aqui chama-se a atenção, o resto é com os leitores.
Para quem frequenta estas alegres funçanatas, a coisa acaba por se transformar num excelente reencontro com amigos velhos e novos. Só por isso já valia a pena, mas de facto há mais, muito mais. Isto de descobrir novos livros e novos escritores é para um leitor viciado e empedernido como eu, muito gratificante.
Uma palavra final de louvor para uma pessoa e uma entidade. O Francisco Guedes é meu amigo há trinta anos mas para mim cognac é cognac e serviço é serviço. Estou à vontade portanto para entrar no unânime coro de louvores ao Chico. Ele é um excelente animador cultural. E, ainda por cima, muito profissional. Com o Guedes não há baldas nem xixis nem cocós. Boa malha Chico, boa malha.
E agora a instituição. Eu poderia falar da gentileza das/dos responsáveis de vários departamentos municipais mas até me arrepia a ideia de deixar alguém de fora, que esta malta deu ao pedal e de que maneira! Corteses, alegres, desembaraçadas/os, enfim um must. Para não esquecer ninguém, aqui vai: bela Câmara Municipal a de Matosinhos, que lição que dão a este desastre que se chama Porto. Parabéns, sinceros parabéns.
Isto deveria acabar aqui. Mas não acaba, era o que faltava. Está na Galeria Municipal de Matosinhos, uma exposição de Pedro Campelo. O Pedro há vinte e muitos anos era um traste, um puto reguila que punha cabeças de porco e outras estrepolias na cama dos hóspedes, na minha, vá, que algumas vezes me aposentei e amesendei na casa da Alda Rodrigues, a excelente actriz, e do Zé Campelo. Aquela casa era um albergue espanhol, carregado de livros, belíssimos quadros e música a condizer. Ali recebia-se toda a gente com carinho, alegria e amizade. Com um pequeno inconveniente, as criaturinhas menores pelavam-se por pregar partidas. As vítimas mais habituais, Manuela Sinde, Chico Guedes e eu várias vezes tiveram que desfazer e refazer a cama devido às patifarias daqueles pequenos gandulos. Agora o Pedro está transformado num excelente pintor. Quem diria? Dá um abração ao teu pai e avisa-o que eu se for a Angola lá lhe baterei ao ferrolho com o habitual viático de duas dúzias de ostras. Um gajo encabida-se mas paga ao menos uma simbólica (e tradicional) portagem!

A gravura é de Roy Lichtenstein: "Sunrise".

A apresentação do livro, da autoria da minha boa amiga Maria Inácia Rezola, é hoje, 24 de Abril, no Quartel do Carmo, em Lisboa, pelas 18h00

apresentação de
Ramalho Eanes, J. Medeiros Ferreira e Mário Mesquita


Maria Inácia Rezola, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, doutorou-se em História Institucional e Política Contemporânea pela mesma Universidade. É docente na Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa e integra a Comissão Coordenadora do curso de pós-graduação em Jornalismo, uma iniciativa do ISCTE e da ESCS.
Mais informação aqui.



23 abril 2007

O leitor (im)penitente 14


Pela mão de Verne e Xenofonte
ao encontro dos que se foram
e do que não fui



Um moderador deve ser isso mesmo, moderador. O que, eventualmente, pode querer dizer que o moderador é como o mirone de um jogo de cartas. Está ali, a olhar para os jogadores, a ver as cartas sair, sem arriscar nada mas também sem meter o bedelho onde não é chamado.
Os nossos vizinhos espanhóis tem um dito altamente esclarecedor: o mirone está calado e fornece tabaco.
Isto no tempo em que o tabaco era livre e franco à volta de uma mesa de jogo. Agora, que é politicamente incorrecto fumar, inclusive no meio do deserto, o mirone reduz-se ao silêncio. A menos que forneça caramelos e pastilhas elásticas a um desgraçado grupo de jogadores que não sabem o que hão de fazer enquanto os outros jogam.
Ora eu tenho pouco jeito e menos vontade ainda de deixar os meus jogadores engordar desmedidamente a aviar caramelos como quem dá chupões num cigarro imaginário e aceso.
E depois... depois, acho que um moderador que não arrisca não modera coisa nenhuma ou, no melhor dos casos, modera-se a ele. Daí que, embora assumindo esse papel de anunciar os intervenientes e ocupar-me do expediente (quem fala, quanto tempo, quem é que na plateia quer dizer qualquer coisa) entendi deixar nesta mesa, que muito me honra, um pequeno desafio.
Vamos falar do desejo do desconhecido. Do desejo do desconhecido como um dos temas destas jornadas sobre Literatura em viagem. Da viagem para o desconhecido, do desconhecido como motivo da viagem...
Como programa dá para tudo, inclusivamente para uma pequena tese que me surgiu no momento em que, na quinta feira, enviava via blog uma notícia deste encontro. Quem viaja, viaja por alguma razão mesmo que, no preciso instante de bater a porta atrás de si, não tenha bem certo que rumo tomar. Ou terá?
Há muitos anos já, mais do que os que eu gostaria de contar, li algures um verso de Goethe: Warum gehen wir? Para onde vamos?
E logo a seguir: Immer nach Hause. Sempre para casa!
Este verso persegue-me desde há muito e não é a primeira vez que o cito. Gosto de viajar, de conhecer novos caminhos, novas gentes, outras línguas e outras comidas. Comecei cedo a correr mundo com Júlio Verne e Salgari, depois com London, Conrad, Melville para já não falar na mais exaltante viagem de todas, tão bem contada por Xenofonte de Atenas na sua Retirada dos 10.000.
E é dele que me valho para terminar este pequeno desafio à plateia e à mesa: o desejo do desconhecido não será apenas o desejo de regresso a uma casa, à nossa casa, à casa da infância feliz e descuidada?
Será que Goethe (e os poetas, como se sabe, conhecem as coisas antes de nós) tinha razão, e a viagem, continuamente renovada, não é mais do que a volta impossível á casa de onde partimos, á idade de oiro, ao convívio dos que já se foram e que esperam, num impreciso ponto do nosso passado, por nós?
E por aqui me fico. Não vos trouxe tabaco, muito menos oiro, mirra ou incenso, apenas esta mão cheia de sal, sinal inequívoco da hospitalidade. Sinal de que chegámos, vocês, todos, e eu a casa. Sejam bem-vindos.

Este foi o texto lido pelo vosso amigo e criado na mesa redonda "O desejo do desconhecido" nas segundas jornadas de "Literatura em viagem" em Matosinhos.
gostaria de o dedicar, se é que o mereço, aos meus amigos Liliana Palhinha, Manuel Sousa Pereira, José António Barreiros, David Ferreira e Coutinho Ribeiro, bloggers e leitores, que me acompanharam nessa provação. camaradas, non sum dignus, etc... mas, de todo o modo, muito obrigado.

Na gravura: "Libreria II" de L. Patrignani

Au Bonheur des Dames 62


Matosinhos, once again...

E o sonotone? Onde é que está o sonotone do gajo?, perguntou uma leitora, mais uma, ai que bom!, apontando-me a figura majestosa e cachimbante do escultor MSP que fumegava que nem uma locomotiva da linha do oeste (do oeste pois claro, mas do oeste pátrio, ocidental e lusitano, vocês é que são todos uns ignorantes, a escola é uma miséria, parece que já não se ensinam as linhas de caminho de ferro, com todas as suas estações e apeadeiros, isto agora é tudo auto-estrada, ou então alta velocidade -no papel, claro, no papel -, tem graça escrevi primeiro alta estrada e auto-velocidade, devia ser o que o Manuel António Pina chama erro criativo,) bem vamos lá ao que interessa, então não é que uma leitora me pespegou um beijo na face veneranda e perguntou desenvoltamente onde é que o Pereira trazia o aparelho auditivo, vai daí eu disse-lhe que ele tinha uma corneta daquelas antigas de encostar à orelha e ela ficou alucinada, mas isso é uma antiguidade, diz-me, também o MSP retorqui, se isto funcionasse como as antigas caixas de previdência, o escultor tonitruante já só andaria de cadeirinha, ao lombo de quatro escravos malabares e mais dois, um à frente com aquelas coisas que pareciam espanadores gigantescos feitas de plumas e outro atrás com a “saca dos precisos” (cachimbos, tabaco, canetas rotring, papel de desenho, um livro) que a senectude tem direitos, ora essa!
E a história da linha do oeste?, pergunta daí alguém, novo demais para saber destas coisas graves e pertinentes. Pois a linha do oeste é uma honrada via férrea que liga a Figueira da Foz a Lisboa, passando por irrelevâncias urbanas como Leiria e Caldas da Rainha, ora tomem lá que isto é para vingar a desfeita feita à Naval 1º de Maio pelo Sporting. Quatro a zero é demais, há-de ter sido o árbitro que deu uma ajuda...
Bem, tudo isto era para ser um fiel relato do segundo dia das jornadas “literatura em viagem”. Quem não veio que viesse e quem quiser saber coisas de mais apuro que vá aos jornais, eu fico-me por pequenas impressões, que ninguém me paga para ser o fiel cronista dos eventos. Matosinhos a todo o vapor: mais livros apresentados, mais duas mesas redondas, uma delas sob a minha isenta moderação, que foi aliás a única coisa em que fui isento (fora o serviço militar há quarenta e tal anos quando aquilo de ir às sortes era a sério e dava dois anos de degredo militar. Felizmente o médico que me inspeccionou era uma velho amigo que mentiu com mais aprumo que um hospital privado inteiro, aumentou-me a altura para uns garbosos metro e setenta e cinco, roubou dois quilos ao meu peso pluma – sim, que eu, nessa época, andava aí pelos 58 quilos mal pesados, não era o banhuças de agora, enfim o cavalheiro cheiinho que vocês eventualmente conhecem – roubou-me igualmente na escassa medida de peito de modo que tudo contado, pesado, dividido, dava um índice miserável, impróprio para a tropa garbosa e ainda mais para oficial, mesmo miliciano. Foi Deus, ou alguém por ele, que mandou esse amigo à minha inspecção militar, porque meses depois rebentava Angola e foi o que se viu. Nunca um imposto, a taxa militar, sessenta mil reis por ano, foi pago com tanta alegria e fervor. A tropa deu-me por inapto e eu mesmo sinto-me desde sempre vagamente inapto para uma série enorme de coisas, entre elas a de fazer carreira de qualquer espécie sobretudo política, não tenho jeito nem espinha flexível para aquilo, o erro é obviamente meu, mas pronto sou inapto, incorrigível e “não recuperável” como dizia o Sartre na última fala de “as mãos sujas”, eu, um dia destes conto-vos como o conheci, aliás conheci de uma penada e à mesma mesa de um restaurante bom, barato e abundante, o Sartre, o Eduardo Lourenço e um temível ex-dirigente da extrema esquerda maoísta francesa que dava por “Victor”. Comemos bem, bebemos melhor e depois andámos dois dias por aí a visitar a revolução. Fica para um destes dias...
Matosinhos dizia, e a minha mesa redonda. Então não querem saber que no exacto momento de apresentar os restantes mesários me dá uma “branca”, dessas que aterrorizam qualquer bom actor de teatro e nem dos nomes dos desinfelizes me lembrava? O pobre do Gonçalo Cadilhe, ai que inveja me faz, apareceu crismado como Fernando, da Dulce Maria Cardoso (de quem hoje mesmo vou comprar os livros que o JAB e a Kami dizem ser do melhor, que querem um tipo não pode ter lido tudo e eu, a Dulce, raspas de raspas, azar dos Cabrais, não sabia que ela me tocava na rifa e não me preveni, lendo-a, não tem mal, agora vai a eito, leio-a e depois digo. Vai daí pensei que ela tinha plasmado no primeiro livro, “uma escrita abissal” sussurrou-me a Kami, a sua experiência de desenraizamento de África mas ela, desenganou-me, nada disso, e eu fiquei atrapalhado, olá se fiquei. Felizmente o resto correu bem, o público falou que se fartou, aliás só se calaram quando o Xico Guedes me fez o décimo quinto sinal para fechar a loja e levantar a tenda (isto é uma repetição mas é tão bonita...) senão ainda lá estaríamos a discorrer sobre tudo e nada que é para isso que leitores, escrevinhadores e outros adeptos destes dois vícios solitários (é, eu também sei que há ainda outro mas a elegância estilística impõe citar apenas a leitura e a escrita...) se juntam.
A jornada terminou com um belo concerto do Rao Kiao, o raio do homem só melhora com a idade, e depois cada qual foi à vida que amanhã, hoje é dia de trabalho.
Mas não resisto a contar que Matosinhos foi durante uma breve tarde, local de encontro de vários bloggers (ou bloggueurs, Manuel António Pina?) porque apareceu o fugidio Coutinho Ribeiro, de filho (João) a tiracolo, o miúdo também já tem um blog, vejam lá, também é verdade que filho de peixe.... E o leitor Ferreira anunciou que também se estabeleceu por conta própria na blogoesfera, mas continue a visitar-nos, Ferreirinha, e mande a direcção do blog, homem! E o Fernando Venâncio, do “vitamina” também cá estava, ou seja, para o ano fazemos um congresso, em Matosinhos talvez a Câmara, tão porreirinha, nos ofereça um almocinho, pelo menos tão bom quanto o de ontem, na Boa Nova. Fica o recado, que de certeza, haverá quem o entregue... Nem falo da Kami, nossa venerada administradora nem do José António Barreiros que tem vários blogs, todos bons ainda por cima, que inveja. Ou seja estávamos bem representados mesmo se o incursões registasse uma ligeira maioria de participantes.
E pronto, chega de reportagem, que ninguém me paga o desgaste de material. Hoje é dia do Livro. Força, leiam um livrinho e que vos saiba! E que vos alegre a alma ou lá o que temos, um livro mesmo pequenino, tem muita serventia nem que seja para amparar o pé manco de uma mesa.

Na gravura: Três cachimbos de Carelman (Catalogo dos objectos impossíveis), a saber e de cima para baixo: cachimbo com fornilho posterior para fumadores que se incomodam com o fumo; cachimbo de fornilho alto para efeitos semelhantes; cachimbo duplo para apreciadores de misturas, basta pôr tabacos diferentes em cada fornilho e dar ao pulmão.Esta gravura é obviamente um sinal de preito e menagem ao Manuel.

22 abril 2007

woman thinking - ômer adil- turkey
lembrar

lembro-me do teu rosto
antes de morreres
para o amor.

lembro-me das chamas
crescendo nas tuas palavras,
do teu olhar a dizê-las.

os dias a serem vida,
não tempo.

lembro-me de ti,
impecável nos atos,
distante da sombra
- pura azáfama –
que agora és.

silvia chueire

21 abril 2007

Au Bonheur des Dames 61


Days of wine ande roses

As leitoras dirão que o escriba deu em anglófilo, o leitor MSP protestará (mas ele gosta de protestar, agora que já não tem alunos a quem massacrar com a geometria descritiva, sim, porque nós sabemos que aqueles resultados fabulosos, anos e anos a seguir, só torturando as criancinhas, senão o homem era um génio e isso seria demais, no nosso círculo de amigos há desde há muito um princípio, génios façam o favor de se evaporar, que isto aqui é só rapaziada normal ou quase...) mas o facto é que eu mantenho: dias de vinho e rosas! E provo.
À uma, a Frau Kamikaze veio até Matosinhos com o impagável JAB, o advogado com mais humor a leste do rio Pecos. E gostaram ou melhor estão a gostar desta alegre feira à volta da Literatura em Viagem. Ainda por cima conheceram a Dulce Cardoso, de que ambos são fãs e a Maria do Rosário Pedreira idem, fui eu, claro quem os apresentei. A coisa vai mesmo mais longe. A Kami disse-me que eu tinha uns amigos muito simpáticos, mas que é que ela esperava, o diabo da criatura? Que eu frequentasse um grupo de ogros avinagrados que só pensam em estraçalhar gente de bem?
Depois, para penitência, apresentei-lhes o escultor MSP que anda como um cuco, também o caso não é para menos, ontem abriu uma pequena exposição dele e, em meia hora, estava tudo vendido, tudo não, que ainda falta uma peça, bem boa, por acaso, mas cara, carota, esta artistagem agora quer ficar rica á custa da marabunta, que é que é feito do mito do artista pobre e romântico que vendia as peças por tuta e meia?
Em terceiro lugar, mas isto não vai por ordem de importância, eu é que sou assim, vou escrevendo e quem vier atrás que feche a porta, reencontrei a leitora bonita número 1, que as minhas leitoras são todas bonitas, homessa, com esta idade bem que posso ter até a Naomi Campbell como leitora, que elas olham para mim como um amável fóssil, uma espécie ligeiramente mais moderna que o homo habilis, e se calhar até estou a ser generoso comigo próprio, enfim reencontrei a dita cuja leitorinha, sempre bem, olho azul e fundo, simpatia a rodos, vê-se que deve ter sido escuteira para me receber assim, com folares e cavalhadas, ah que bom, what a glorious day (e ele a dar-lhe resmunga o escultor bargante (aguenta-te lá com esta ó ignorante do léxico pátrio!).
Depois, o Eduardo Lourenço, fundador da Vértice, revista onde escrevinhei alguns despropósitos, felizmente a Censura estava atenta, e zás!, traço azul e grosso, e a minha prosa saía mais esburacada que uma renda de bilros, isto sem desdouro da dita renda que eu até nem sei como é, mas a palavra bilro é tão bonita que não resisto a usá-la, o Eduardo Lourenço dizia eu, um mito vivo do melhor que em Portugal se fez, esgalhou uma conversa sem papeis, uma coisa estilo ao canto da lareira, um espectáculo. Chiça! O homem tem oitenta e quatro anos mas parece ter trinta, que cabecinha de oiro, que humor, que verve! E dizia ele, a páginas tantas, que não quereria ser tomado por um ortodoxo da heterodoxia! Querido professor, não se preocupe V. nunca será vulgar, rotineiro, pronto a vestir ou pronto a consumir. O Senhor é um dos poucos príncipes que nos restam, um dos poucos que tivemos e isso, essa chama incerta mas visível é um sinal de que nem tudo está como no reino da Dinamarca, digo Portugal que anda um tanto ou quanto de monco caído, raio de país que não sai da cepa torta, que é um vício, um lento veneno, viagem sem regresso, caravela naufragada ao peso das especiarias...
Matosinhos está que arde! Uma festa! O Chico Guedes bem que pode retorcer o bigode. O raio do homem sabe organizar eventos destes, não é por acaso que se termina este texto mandando-lhe um abraço desses de partir a costela a um urso, porque isto, esta facilidade de contactos, esta conversa de bica aberta entre escritores e leitores, esta pequena viagem pela inteligência das coisas só acontece porque um fulano gordo, bem humorado e de bigode resolveu dar-se ao trabalho de organizar esta festa, sem jet-set nem políticos a jacto de parca amplitude, mas apenas com os leitores e os autores ou seja uma festa entre pessoas de bem que se encontram no mais informal dos desencontros.
Amanhã há mais... Depois não digam que não vos avisei...

Do vosso enviado especial à 2ª edição de “Literatura em viagem” em Matosinhos, claro.

A gravura "pessoa à janela" é de Dali. Vai toda para o Presidente da Câmara de Matosinhos e participante no encontro, que comparou a sua terra a uma janela aberta sobre o mar.

19 abril 2007

Au Bonheur des Dames 60


2ª CARTA AO MEU AMIGO E CAMARADA DE BLOG JCP

Descansem as leitoras que isto não é cena de varapau, sequer troca grossa de opiniões mas tão um pretexto para homenagear a generosidade do meu confrade e, a talho de foice, explicar melhor algumas coisas. Para quem o não conhece senão de escrita, o JCP é um sólido cavalheiro, portista ferrenho “andrade” mesmo, licenciado em História (pela Universidade – pública – do Porto e não pela “de Kabul on the rocks”) pai babado de um filho varão, bom garfo e fumador de enormes charutos cubanos. É também presidente da Assembleia Municipal do Marco de Canavezes, terra em que, durante anos, manteve bem acesa a chama da resistência contra um prepotente (sendo nisso acompanhado por dois nossos amigos e ex-bloguistas do Inc: o Carteiro e o compadre Esteves (no civil respectivamente Coutinho Ribeiro e João Magalhães). Esta reduzida trindade bateu-se, e de que maneira, pela democracia em terreno hostil e muitas vezes ameaçador. Só por isso mereciam a coroa de louros dos antigos atenienses). E agora a cartinha:
Meu caro JCP
Faça-me o favor de ler esta descosida prosa. Acenda esse magnífico Cohibas, sente-se neste maple aqui do canto, velho e coçado mas muito confortável, não me interrompa, e oiça.
A um texto aí em baixo, sobre a crise de 69 em Coimbra, V. sempre generoso comentou que se sentia na obrigação de agradecer a quem nessa época enfrentou a polícia e o resto para defender uma vaga ideia de liberdade e democracia.
Ora, mesmo agradecendo essa simpatia, V. –sem querer – põe-me numa posição delicada. É que a malta desse tempo e eu próprio não se julga credora de agradecimento sobretudo vindo de quem, na altura, ou não era nascido ou andaria aí pelo jardim escola. O seu caso, digamos. A menos que, num ímpeto de solidariedade, a pequenada do infantário, de bibe e chupeta entendesse lançar-se como um só homem (ou uma só mulher) sobre a desinfeliz monitora, símbolo da autoridade lá do sítio e a obrigasse a comer as papas todas e a fazer sozinha, e num canto, o cocó das seis da tarde. Eu sei, presumo saber, que um grupo de galfarrinhos do tamanho do seu filho, ou mais pequenos ainda, é pior que uma inteira tribu de sioux em pé de guerra. Mas mesmo tendo em conta as vantagens tácticas do uso indiscriminado duma tropa de palmo e meio julgo que não se devem mobilizar seja para que causa for essas criaturinhas. O dever delas é, para já, brincar, brincar muito, aprender a brincar com os outros meninos. Isso é (era) um dos direitos que reivindicávamos em 69 para os filhos dos que não podiam andar na universidade.
De facto, caríssimo confrade, a malta preocupava-se pouco, naquela altura, com o lugar que viria a ter na história. Moviam-nos outras comoções, mais ingénuas sem dúvida mas seguramente mais nobres. Defendíamos a parca autonomia da Universidade, as poucas liberdades, a custo mantidas, das Associações de Estudantes, o direito a pensar pela própria cabecinha, a vontade cidadã de influir ligeiramente na vida do Estado e da sociedade. É pouco? Claro que é pouco mas, na época, era muito. Demais até na óptica do poder político. Demais mesmo, na óptica de boa parte da população que, por medo, por desinteresse, por ignorância ou por inconfessado interesse em conservar privilégios exorbitantes, não nos olhava com olhos ternos.
Depois havia um segundo e importante factor: a guerra, a guerra longínqua, mas temivelmente próxima, nas colónias. Guerra que era um destino garantido para qualquer um, durante ou no final do curso. Guerra com mais mortos do que os confessados e muito menos do que os propagandeados, evidentemente. Uma guerra estúpida porque de contra-guerrilha (e veja-se agora o Iraque onde, todos os dias morrem civis e, todas as semanas, militares da mais poderosa potência militar mundial), sem fronteiras nem frentes de combate, insidiosa, desgastante, sem perspectivas políticas algumas.
Finalmente, e porque não, sobretudo quando se tem vinte anos e não se quer acreditar que essa é a pior idade possível, um vago desejo de mudar o mundo, de mudar a vida, ou de mudar um pouco o sufoco em que se vivia.
E tudo isto, creia-me, JCP, sem olhar para eventuais prebendas, futuros privilégios, reconhecimento público e tudo o resto. Claro que, hoje em dia, há muito rapaz ou rapariga desse tempo ingénuo e solto, que vive à custa do capital então adquirido, da notoriedade conquistada por um gesto, um discurso, uma prisão. Mas também há outros, e quero acreditar que são uma maioria, que deram o passo decisivo apenas por solidariedade, amizade, desejo de liberdade, de viver, por aventura, porque não?, porque estavam fartos de ver a gandulagem agir impudente e impunemente. Essa é a maior riqueza que amealhámos nesses meses de vinho e rosas, de musica e fraternidade.
Aqui chegados, vejamos: tivesse V. vinte anos em 69 onde é que estaria? Com quem estaria? Como agiria? Que sentiria?
Conhecendo-o o pouco que conheço, meu caro JCP, não tenho qualquer receio de o ver a pintar cartazes, a colá-los, a conspirar em longuíssimas reuniões nocturnas de onde se saía quase a nadar por cima de uma nuvem de fumo (de cigarros, JCP, de cigarros, às vezes até de beatas por já não haver sequer um paivante inteiro para acender) em ruidosas assembleias, em piquetes a fugir da polícia, a negar-se malgrado os protestos familiares a ir a exame numa carrinha da polícia, a apanhar nesse lombo, e desculpe lá, V tem lombo que chegue para um largo par de bastonadas, a fugir por ruas e becos, a refugiar-se numa miraculosa porta aberta por um(a) qualquer cidadã(o) que a solidariedade dos habitantes de Coimbra, os “futricas” não foi palavra vã, bem pelo contrario.
Resumindo e acabando, ao agradecer, v está a agradecer a si mesmo o que é um redobrado e inútil trabalho. Vamos mas é pensar seriamente num jantarinho a preceito com os nossos amigos incursionistas, em sítio decente e já agora com algum leitor que ainda não esteja farto de nos aturar e nos queira ver ao vivo. Vale?
Um abraço deste seu
mcr

na ilustração: 17 de Abril de 1969, 1o horas da manhã: forças militares desfilam perante o Chefe de Estado, Américo Tomás. Atrás encostados ao "hospital velho" numerosos grupos de estudantes com cartazes reivindicativos. Serão eles os protagonistas (ou o protagonista colectivo e único) deste dia. Mas isso será para daqui a uma hora e pouco...

17 abril 2007

Diário Político 48



Coimbra, Abril e Maio de 1969 ... e os meses seguintes até 1970...
Na fotografia: Assembleia Magna de 28 de Maio de 1969: votação da greve total.

Sounds of silence



dedicado ao Miguel Abrantes e ao meu amigo João Pinto e Castro, melómanos

Au Bonheur des Dames 59


It's a Beautiful Day!

Já vos estou a ver, leitorinhas gentis mailos prezados cavalheiros que me aturam (continuem, que eu gosto de leitores, eu mesmo sou um leitor inveterado, isto vem-me de pequeno, e dos familiares todos eles leitores esforçados, lá em casa os livros tinham mais utilidade do que equilibrar o pé de uma mesa desfalecente e perni-curta.) a dizerem para os vossos botões: o homem nunca foi certo mas desta ver passou-se.
Passei nada, queridas amigas, passei nada.
É que hoje celebram-se os anos da Tia Néné, outra leitora do catorze, e mais um aniversário do 17 de Abril de 69, em Coimbra, menina e moça. Quase quarenta anos! Arrium porrium catanorum qunque! Trinta e oito anos, já!
Mas vamos ás nossas devoções. O 17 A, que é assim que o conhecem os milhentos intervenientes. Estamos vivos malta (esta é para eles, hoje o telefone tocou umas quantas vezes, e do outro lado era uma voz jovial: Marcelo, um abraço! E eu: outro para ti velho/a compincha. Bem nos divertimos!
Logo pela manhã, fui tomar um café com o Manuel Simas. Hoje, é o 17, pá! - Bem me lembro, retorquiu. E durante uns breves minutos ficámos calados a olhar para ontem, para os amigos e companheiros que já cá não estão, para os nossos vinte anos, a nossa esperança, as nossas batalhas numa primavera inesquecível que se prolongou muito além do que o calendário lhe permitia e o bom senso aconselhava.
É que esta greve de 69 bateu todos os recordes. Primeiro o da adesão. Maciça! E quando digo maciça quero dizer isso mesmo. Os fura greves foram uma pálida minoria, amedrontada, que ia a exame dentro de carrinhas da polícia e nem dentro da sala se livravam dos olhares de desprezo de muito jovem assistente, já não falando nos archeiros e bedéis que os olhavam com aquele ar de quem está com vontade de ir à retrete...
Em segundo lugar, a longa crise de 69 foi a crise das mulheres. Elas inundaram as ruas em piquetes, animosas, desculpem lá aquilo parecia um quadro de Delacroix, a Liberdade guiando o povo. Que coragem! Que determinação. Com que segurança as raparigas de Coimbra entraram na greve, como que dizendo Este é nosso lugar! A polícia cevou-se nelas prendendo um bom magote. Eu estava lá e vi! E ainda vejo! Saravah Isabel Pinto, Joana, Fernanda da Bernarda, Teresa Feijó, Guida Lucas, Maria João Delgado!
Em terceiro lugar, espanto dos espantos, a greve de 69 foi vitoriosa. Caiu um reitor, caiu um ministro (esse Saraiva que agora fala tão democrata da nossa história numa especial e redutora versão dele mesmo). Uma vez ate nos pagou um café, à Isabel, ao Redondo Lopes –esse mesmo presidente da “tranquilidade” e a mim. Não serviu de nada porque nós de papo cheio continuámos a azucrinar-lhe a cabeça...
E além dessas quedas, outro milagre, os estudantes que tinham sido compulsivamente enviados para Mafra, regressaram a Coimbra para continuar os estudos. E a Universidade deu-nos mais uma época especial de exames. E o novo reitor, da confiança dos estudantes, Professor Doutor Gouveia Monteiro, foi a uma Assembleia Magna, solicitar o nosso apoio.
Só quem conheceu Coimbra é que consegue perceber o que isto teve de revolucionário.
A “insurreição estudantil” que grassava na Europa, nos Estados Unidos e no México, chegou a Coimbra com alguns meses de atraso mas isso só nos atiçou mais a vontade de, ao entrar nessa luta geral e generalizada, o fazer pela porta grande, escancarada.
Volta e meia encontro amigos, companheiros e colegas desse tempo e no primeiro momento, o dos abraços, do examinar as respectivas barrigas, os cabelos brancos, as rugas, há sempre um brilhosinho no olhar, uma senha e contra-senha, vinda desses dias longínquos de luta, de entusiasmo, de abnegação e camaradagem.
Eu estou a escrever isto com muito mais coração que cabeça, mas que querem, o 17 de Abril é o nosso “Crispin’s day” (Shakespeare, Henrique V), um momento grave e mágico na nossa formação de cidadãos. E como no discurso de Henrique, poderemos, agora que tantos anos passaram, contar a filhos e netos (eu aos sobrinhos e à enteada...) como nesse dia honrámos uma academia, uma universidade e uma cidade que nos acompanhou festiva e solidariamente.


* O título é inspirado numa banda dos anos sessenta em S Francisco "It's a bautiful day" (David Laflamme, Linda Laflamme, Patty Santos, Hal Wagonet, Mitchell holan e ValFuentes) cujo primeiro LP tem este título que é tambem o nome do grupo.
ilustração: "A liberdade guiando o povo", Eugene Delacroix




hímen complacente



voltando

Acabei de ver uma boa parte de um programa sobre o valor das universidades privadas. Afinal são todas boas, excelentes, óptimas... O Estado é que não dá aos alunos delas o que dá aos das públicas... Logo vi que a culpa era do Estado.
O camera-man da sessão merece porém um aplauso: é que, de vez em quando, filmava os senhores reitores & assimilados de algumas universidades privadas. E apanhou-os bem.
Quem tenha visto o famoso "Ivan o Terrível" de Eisenstein recordará que logo no início durante os preparativos para a coroação o jovem Ivan está rodeado de boiardos que não querem um czar forte mas um mero joguete nas suas (deles) mãos. Há um longo travelling sobre esses boiardos que revela exorbitantemente o que eles no íntimo querem.
Foi isso o que vi quando a camara apanhou alguns desses "magnificos reitores". Não tão majestosos quanto os boiardos mas o mesmo olhar, a mesma cara fechada.
O segundo ponto (isto vai telegráfico porque é tarde) foi a espantosa actuação do ex-ministro Durão agora reitor de uma privada. Com defensores daqueles a causa das privadas não precisa de inimigos.
Terceiro ponto: não sou um fã do ex-reitor da universidade do Porto, Alberto Amaral. Tenho porém que reconhecer que ele conseguiu desfazer o que parecia ser um acordo total: somos todos bons, todos bonitos, todos pelo bem comum. A.A. disse alto e bom som que não poria um filho numa universidade privada. Jesus, Maria, José, o que ele foi dizer...
O quarto ponto é o seguinte: alguns dos senhores dirigentes das universidades privadas tiveram o desplante de chamar à colação as grandes universidades americanas (MIT, Harvard, Yale etc...) Parece que ninguém lhes disse que a tradição anglo-saxónica foi sempre a de criar universidades desse tipo. E que essas universidades gastam em laboratórios somas que nem mesmo o maior ganancioso português é capaz de imaginar.
Finalmente, já que falaram em universidades privadas versus públicas seria bom que soubessem que na lista das 500 melhores universidades do mundo Portugal tem três: Coimbra, Nova de Lisboa e Católica. Nesta exacta ordem. E já agora: Coimbra está no lugar duzentos e cinquenta ou algo semelhante, a Nova vai atrás cerca de 30 pontos e a Católica está bem no meio da terceira centena.
A listagem é obviamente feita por um instituto americano e apresenta nos primeiros lugares Harvard, Yale, Cambridge, Oxford como seria previsível.

Adeus Princesa

A preclara Professora Doutora Clara Pinto Correia, sempre com opinião pronta na ponta da língua, integra o júri do concurso A Bela e o Mestre, uma alarvidade que passa na TVI, ao pior estilo reallity show. Diz a senhora, em entrevista ao JN, que apenas aceitou integrar o júri para conhecer melhor aquela gente do submundo, com um vocabulário reduzidíssimo, enfim, um Portugal que ignorava.

A senhora, que também circulou por equipas reitorais, como agora se diz, dessas misteriosas universidades privadas, e é especialista afamada em copy/paste, procura justificar com motivos “elevados” a sua presença no programa. Não seria mais honesto dizer que a TVI paga bem, tem muita audiência, chega a públicos muitos populares e tudo isto faz jeito para quem gosta de escrever a metro, seja livros ou crónicas? Pois é, a vida custa a todos e não havia necessidade…

16 abril 2007

Primeiro e último aviso







Literatura, literatura, sempre a abrir...

E vão duas... Ou seja as jornadas Literatura em Viagem organizadas pelo prodigioso Francisco Guedes, alma das "correntes de escritas" na Póvoa (já em 8ª edição) e apoiadas (e muito bem, pela Câmara Municipal de Matosinhos entram na sua segunda volta. O programa que se segue é para cumprir mas sabe-se que aparece sempre mais livro para apresentar e mais um par de escritores que já se tornaram assinantes. E jornalistas, críticos, leitores, curiosos, editores, gente ligada à edição e promoção do livgro, enfim uma alegre comandita que prossegue noite fora os encontros mais formais. Este vosso criado também por lá estará a moderar moderadamente um grupo compósito que de certeza fugirá ao tema, voltará, fará o pino, enfim o habitual. E o público... que sem ele isto era uma chatice das antigas.

Literatura em Viagem

Quinta-feira 19/04/07 21h30 — Galeria Municipal
Exposição: Estaremos sós?, de António Chaves

Sexta-feira 20/04/07 — Biblioteca Municipal Florbela Espanca
• Salve a Língua de Camões — espectáculo de teatro Mulheres na Laginha, de Germano Almeida por CAIRTE TEATRO REACTOR

Sábado 21/04/07
11h30 — Abertura — Salão Nobre da Câmara Municipal de Matosinhos
• Conferência de Eduardo Lourenço, com apresentação de José Carlos de Vasconcelos

Lançamento de Livros — Biblioteca Municipal Florbela Espanca
• 15h00 — Do Rumor da Água ao Som do Bronze, de Joaquim Pinto da Silva e A. Cunha e Silva
As Sete Estradinhas de Catete, de Paulo Bandeira Faria


Exposições - Biblioteca Municipal Florbela Espanca
• Viagem pelo meu ser, de Maria Cerveira
• Peregrinações, de Pedro Campelo


15h30 — 1ª Mesa — Galeria Municipal “On the road”
Fátima Pombo
• Ondjaki (Angola)
• Paulo Bandeira Faria
• Senel Paz (Cuba)
• Sérgio Godinho
Fernando Venâncio (moderador)
Lançamento de Livros — Biblioteca Municipal Florbela Espanca
17h30
• No Céu com Diamantes, de Senel Paz,
• A Cova do Lagarto, de Filomena Marona Beja,
• Os da Minha Rua, de Ondjaki,

18h00 — 2ª Mesa — Galeria Municipal “Corsários e escritores: os grandes viajantes”
Francisco Camacho
• Luísa Monteiro
• Miguel Real
Vergílio Alberto Vieira (moderador)

21,30h — Cinema em português – Biblioteca Municipal Florbela Espanca
Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes


Domingo 22/04/07
11h00 – Coro da Escola de Música Óscar da Silva – Biblioteca Municipal Florbela Espanca
Lançamento de Livros — Biblioteca Municipal Florbela Espanca
15h00 —
• Camilo e Ana Augusta, de Artur Costa
• A Menina de Cristal, de Iria López Teijeiro

15h30 — 3ª Mesa — Galeria Municipal “Da Literatura ao Celulóide”
Fernando Lopes
• Jorge Campos
• José Fonseca e Costa
• Tabajara Ruas (Brasil)
António Cabrita (moderador)

Lançamento de Livros — Biblioteca Municipal Florbela Espanca
17h30 —
• Niassa, de Francisco Camacho
• Estamos Todos Tão Sozinhos, de Paulo Nogueira

18h00 — Cinema em português
Sem Sombra de Pecado, de José Fonseca e Costa

18h00 — 4ª Mesa — Galeria Municipal “O desejo do desconhecido”
Adolfo Garcia Ortega (Espanha)
• Dulce Maria Cardoso
• Gonçalo Cadilhe
• Iria Lopez Teijeiro (Espanha)
Marcelo Correia Ribeiro (moderador)


22h00 — Salão Nobre da Câmara Municipal de Matosinhos Vagamundagens
Espectáculo musical com: Rao Kyao (flauta), Deolinda Bernardo (voz), Renato Júnior (teclas), Toni Pinto (guitarra clássica e braguesa)

Segunda-feira, 23/04/2007 Escritores nas Escolas
— 10h30 - Escola EB 1, Ribeiras, Perafita — João Aguiar
— Escola Gonçalves Zarco — António Sarabia (México) Maria Fasce (Argentina)

15h00 — Lançamento de Livros — Biblioteca Municipal Florbela Espanca
• Os Peregrinos sem Fé, de Sérgio Luís de Carvalho

15h30 — Biblioteca Anexa de S. Mamede — A ilustração — ateliê com Henrique Cayatte


15h30 — 5ª Mesa — Galeria Municipal “Lucy in the sky with diamonds”
Filomena Marona Beja
• Júlio Machado Vaz
• Lauren Mendinueta (Colômbia)
• Francisco José Viegas
Carlos Veiga Ferreira (moderador)

!8h00 — 6ª Mesa — Galeria Municipal “Viajar: abertura cultural para a diferença”
João Aguiar
• Paulo Nogueira (Brasil)
• Sérgio Luís de Carvalho
• Richard Zimler (EUA)
Vítor Quelhas (moderador)

21,30h — Biblioteca Municipal Florbela Espanca
Cinema em Português: As Cartas do Domador, de Tabajara Ruas


Terça-feira, 24/04/2007

10h30 — Biblioteca Anexa de S. Mamede – Lançamento do livro “Histórias de Pedro Malasartes” de João Pedro Mésseder
15h30 — Biblioteca Municipal Florbela Espanca — Auditório
• Suba aos Himalaias com João Garcia

15h30 — 7ª Mesa — Galeria Municipal “A Sul de Nenhum Norte”
Rui Vieira
• Germano Almeida (Cabo Verde)
• Afonso de Melo
• Jean Paul Delfino (França)
Helena Vasconcelos (Moderadora)

17,30h — Lançamento de Livros — Biblioteca Municipal Florbela Espanca
O Bairro dos Poetas, de Fátima Pombo

18h00 — 8ª Mesa — Biblioteca Municipal Florbela Espanca “O Mundo à Minha Procura”
António Sarabia (México)
• Maria Fasce (Argentina)
• Mário Cláudio
• Alcino Soutinho
José Carlos de Vasconcelos (moderador)

Diário político 47







A ver passar os comboios


Leio com a estupefacção que se adivinha que a junta da Galiza e a CCRN continuam empenhadíssimas no projecto de um comboio de alta velocidade entre o Porto e Vigo. A ideia é fazer com que a viagem entre as duas cidades (com uma paragem no aeroporto?!!) demore cerca de uma hora.
Indo por pontos: nunca me passou pela cabeça ir do Porto a Vigo de comboio mas acredito piamente que a coisa dê para rezar devagarinho um largo número de terços completos. Ou para ler um romance inteiro de Saramago. Ao que me consta o estado da linha não é brilhante, as máquinas são antiquadas, o conforto é uma mera anedota e o respeitável público não existe.
Criar um comboio atractivo entre as duas cidades significa em primeiro lugar criar condições de viagem idênticas em tempo gasto ao que demora o transporte em automóvel por auto-estrada. Ou seja coisa para hora e meia que foi o tempo que demorei ontem entre Porto e Vigo. E por um preço inferior, já se vê. Éramos dois e entre gasóleo e portagens terei desembolsado vinte e cinco euros. Ponhamos que iria sozinho. Alguém acredita que a viagem de ida e volta em alta velocidade me custaria apenas €12,5 ?
Desconheço completamente quantas pessoas se deslocam diariamente entre as duas cidades. Presumo, todavia que encherão um comboio, maxime dois por dia. Vale a pena?
Dir-me-ão que, se houver comboio aumentará a procura. Quanto? Mais: essa procura será apenas a de empresários ou alargar-se-á ás famílias ou aos malucos como eu que dão por bem empregada a viagem só porque se vai por uma ração de mexilhões ao vapor e três livros espanhóis dos que se não encontram na FNAC nem no Corte Inglês?
É que o investimento requerido (só para a parte portuguesa fala-se em mil milhões) parece respeitável mesmo sem pensarmos nas habituais derrapagens de preços.
Eu já tinha as maiores dúvidas quanto ao famigerado percurso Porto-Lisboa onde, informei-me, me dizem que se ganharão quinze vinte minutos em relação ao futuro pendular. Isto se não andarem a parar pelo caminho como é, ou parece ser, exigência de Coimbra e de Aveiro. As mal-intencionadas dúvidas pu-las honradamente a um amigo que desempenhou altos cargos na CP e é reconhecidamente uma autoridade em transporte ferroviário. Perante a minha insofrida ignorância explicou-me que a escolha entre o pendular e o “alta velocidade” acabava por ser uma questão política. E que os investimentos vultuosos tinham outra face completamente exterior ao mero transporte de passageiros. Apertei-o um pouco mais e ele acabou por me dizer que um alta velocidade, à francesa ou à espanhola, não fazia sentido entre as duas cidades. Assim sendo, tenho a certeza de que o projecto irá para a frente: em Portugal, os elefantes brancos são mais do que uma inocente mania. São uma exigência nacional. Assim se fez o Cachão, Sines, Cabora Bassa (que felizmente já entregámos e que nos custou mais do que todas as auto-estradas que ainda faltam, ou que a linha da alta velocidade, ou uma OTA!).
Provavelmente será por isso que querem fazer o Porto-Vigo. Já agora... O “já-agorismo” é outra lusitana característica. Se a gente já enfiou um pé na argola, porque não enfiar os dois? Vir aqui defender um comboio confortável mais ou menos pendular entre as duas cidades, sem paragens desnecessárias (ai meu Deus que dirão os de Braga?) ou mesmo um com as características de conforto e velocidade do inter-cidades que faz Porto Lisboa (trezentos quilómetros em menos de três horas e com paragens) parecerá assim tão despropositado?
Temo bem que um par de portuenses ferrenhos me apode de “mouro” que, para quem não sabe, é o insulto alarve dos ignorantes que ignoram tudo da história do rectângulo lusitano antes de Afonso Henriques.
Continuando sobre rails, medite-se agora no famigerado metro do Porto. Quando se fala de metropolitano vem logo à ideia um comboio subterrâneo que evitando o atravancamento das ruas nos põe rapidamente no outro lado da cidade. No Porto, como em algumas cidades europeias (que todavia têm condições diferentes) o metro é de superfície. Ou seja, desloca-se á vista do povo trabalhador com uma velocidade bastante controlada. Acrescente-se que corre em “via dedicada”. A dita cuja via dedicada foi obviamente roubada ao espaço público, às ruas pré-existentes e, se por um lado deixa o dito metro à vontade, atira para outras ruas as dificuldades que aqui se evitaram.
Isto dito, passemos ao misterioso caso da linha de metro da Boavista. A Boavista, para quem não sabe, é a única avenida digna desse nome que o Porto tem. Liga a rotunda da Boavista (aliás praça Mousinho de Albuquerque) às praias do Porto. Tem cerca de quatro quilómetros e serve uma zona de baixa densidade populacional. Bairros ricos, uma emergente zona de escritórios e a muito rica zona das avenidas do Brasil e de Montevideu (para quem também não saiba são uma e mesma rua frente ao mar que a meio inexplicavelmente muda de nome!!!).
Em tempos terá estado previsto, um eléctrico entre o Castelo do Queijo e a Rotunda da Boavista. Provavelmente ter-se-á antes previsto o prolongamento de uma linha de eléctrico que serve a marginal do rio e termina abruptamente no Passeio Alegre e que com um pequeno esforço chegaria às duas avenidas já citadas, ao Castelo do Queijo onde se ligaria com a linha da Boavista. E com um prolongamento para Matosinhos que, não se riam, foi destruído (por ordem do senhor presidente da Câmara?) para completar uma patética pista de automóveis antigos numa igualmente patética (para não dizer estúpida) tentativa de fazer reviver um circuito automobilístico que foi sempre provincial e provinciano (mas estamos no Porto cidade onde tudo é possível). O troço de linha de eléctrico destruído ainda nem sequer tinha sido estreado. Ora aqui está como se gastam largos milhares para nada... Alguns cidadãos protestaram contra esta burrice, contra a criação de uma via dedicada de metro que como se sabe exige também plataformas para passageiros que, dizem-me, deverão ter dois metros de largura (e lá se vai mais outra meia faixa de circulação ao ar!), contra uma linha de metro que custaria cinco vezes mais do que a do eléctrico, contra a mania do desperdício que afoga esta desgraçada cidade onde se fazem e desfazem coisas a uma velocidade meteórica, contra o mau planeamento do metro que, ao que “eles” dizem, já está saturado no percurso Senhora da Hora - Rotunda (!!!???), enfim contra esta incoerente política de transportes que dribla os usuários, que provoca manifestações violentas e que ocorre numa cidade em clara perda de velocidade e de habitantes.
O Porto, infelizmente, perdeu qualquer sentido cívico. A cidade admirável e admirada do século. XIX agora só pensa, só reage a uma palavra: Lisboa. Ou melhor a outra ainda mais enigmática: Terreiro do Paço. A ideia é que o Terreiro do Paço, agente maléfico da pervertida população lisboeta, só pensa em prejudicar o Porto. É uma espécie de Al Qaeda mas mais perversa e hipócrita. Mesmo quando dão dinheiro é para a gente o gastar mal e eles se rirem de nós. Se não derem é porque não querem o nosso progresso. E entretanto, os Xicos Espertos do Porto que usam este género de afirmações logo que podem piram-se para Lisboa e nunca mais se lembram dos indígenas.
Os que ficaram regougam coisas terríveis e durante um breve período calam-se como carpas. Mas é um silêncio falso: estão só a afinar a voz para pedir mais dinheiro para um qualquer outro projecto ainda mais megalómano. Pessoalmente aposto numa proposta de estádio ultramoderno para o Salgueiros e um ligeiramente menor para o Ramaldense! Ou uma pista de ski no morro de Pena Ventosa. E não me digam que não há neve. Se não há fabrica-se: ora aí está um investimento prometedor e muito apropriado a uma região onde o desemprego cresce.
É por estas e por outras exactamente iguais que os desanimados cidadãos preferem um Pinto da Costa, carregado de apitos dourados ou não e com a vida íntima exposta num livreco, à esmagadora maioria dos políticos locais, nativos ou importados. Apesar de pinto, canta de galo e ganha.