Isto não era para ser assim, mas Deus põe e a televisão dispõe. Eu ia debruçar-me sobre dois ou três casos que agitam a vida nacional mas, de repente, o canal Arte sai-se com um documentário impressionante sobre o saque levado a cabo pelos nazis na Europa ocupada. Parece que Hitler queria homenagear Linz, a sua cidade natal, com um belo museu todo recheado de obras roubadas aqui e ali, curiosa a moral deste vago pintor de tabuletas, isto sem desprimor aos profissionais do ramo que não têm culpa que um borra botas que fez uma guerra inteira sem conseguir passar de cabo, dê mau nome à classe. Portanto, pintores da construção civil, caiadores de casas alentejanas (as únicas que todos os anos são caiadas e de quando em quando mais do que uma vez) pintores de arte & similares (mais estes do que aqueles) e restante público que se diverte com um guache ou aguarela domingueira, isto não é contra vocês mas apenas contra a gandulagem que saqueia museus, galerias à força tout court ou à força de dinheiro.
Íamos que Hitler & comparsas entenderam cevar-se nas colecções públicas e privadas dos países que conquistavam. E das peças de que não gostavam, vendiam algumas e queimavam as restantes (no Museu do Jeu de Paume, gigantescas fogueiras consumiram, Picassos, Dalis, Miros para já não falar na célebre “arte degenerada”). Goering para não ir mais longe comprava com o dinheiro da Luftwaffe os quadros que lhe caíam no goto. Não que eu o censure, para quê gastar os maravedis próprios quando há dinheiro público a pedir para ser arejado?
Nem sei porquê, mas esta história faz-me lembrar aquele líder insular que. em apanhando uma eleição a alcance de tiro, pimba!, desata a inaugurar coisas como se depois dele se esperasse o dilúvio. Também eu inauguraria um porradão de coisas se o cacau fosse alheio. Ao lado deste pequeno idi amin (já sei que preferiam bokassa mas ao que sei já foi usado e eu só plagio os grandes, nunca a equipa da casa, equipa de segunda divisão, convenhamos, pouco entusiasmante, mas esse o nosso triste fado) até parece um gesto de sábia economia o daquele presidente camarário que paga aos seus subordinados ordenados dignos de um marajá dos pequenos. Vivemos uma época de generosidade à custa dos dinheiros públicos que, decerto, ficará para a história. Então não é que, esta gentinha que desgoverna o Porto, está já disposta a abrir mão da negregada linha de metro da Boavista? Isto, depois de fazerem com o dinheiro do supracitado metro um par de obras de “requalificação” da Avenida da Boavista. Agora que o metro já não se passeará por aqui como é que se restitui a massa gasta? Ou, melhor, quem vai pagar? Melhor ainda, iremos nós, mais uma vez, pagar e não bufar? É claro que a fantasmática linha de metro Matosinhos sul- Casa da Música, não é nada perto da linha de “alta velocidade” Lisboa-Porto (de que agora já corre, à boca cheia, que nunca será rentável) ou da outra, ainda mais pindérica e espalhafatosa, Porto-Vigo. Isto de gastar o dinheiro dos contribuintes com esta alegre inconsciência não é, pois, fenómeno insular ou portuense, mas nacional. Até parece que, a cada cinco anos, há nos responsáveis um irreprimível orgasmo gastador. Devem dizer-se uns para os outros, ora vamos lá criar mais um elefante branco. Este proboscídeo albino não saiu da imaginação de Salgari, autor que muito me apraz e que, há dias, foi apontado em letras garrafais como “politicamente correcto” não sei bem porquê, li o artigo todo e nada vi a respeito disto. Às tantas foi o editor, o copy-desk ou lá como agora se chama o “inteligente” da redacção, quem entendeu meter essa bucha para despertar os leitores do letargo que o “Público” agora se encarrega de nos provocar. Este novo “público” não cessa de me surpreender: ainda hoje se comentava o desastroso francês de um colaborador da área musical que inventou para “ombre” o significado de “ombro”. Dava jeito, lá isso dava, mas os franceses são uns macacões e usam ombre para significar sombra, uma chatice para os nossos intelectuais e para estes críticos musicais. No exacto dia em que o provedor dos leitores puxava suavemente a orelhinha carnuda e felpuda do citado cavalheiro, ele voltava à carga com os mesmos erros, mormente “ne me quittes pas” onde o esse do verbo é excessivo e pode mesmo ofender o espírito de Brel para já não falar na canelada na gramática. Ora aí está um sério candidato à gestão pública de comboios metros aeroportos und so weiter.
Eu nem sequer me comovo com estas tretas politiqueiras que tingem de roxo o país, como se estivéssemos condenados a uma Quaresma infinita. Já vi tantas que nem sequer o drama patusco da Câmara de Lisboa me comove. Aquilo é a coisa mais parecida com um jazigo que conheço. Um jazigo desses que às vezes povoam os cemitérios, abandonados de vivos e provavelmente sem poder recorrer aos mortos que guardam. Noutro tempo ainda se poderia esperar um fantasma ou um sinal enviado directamente do paraíso mas agora parece que inferno e paraíso não são sítios mas apenas sensações. Já tínhamos perdido o limbo e agora, sem inferno nem paraíso, ficamos condenados ao desenxabido purgatório que não sei porquê sempre pareceu ser o local onde se tomam purgantes.
E, por acaso, ressalvadas as semelhanças com as canalhices perpetradas pelos fasci di combattimento, às vezes apetecia mandar uma garrafa de óleo de rícino a todos esses figurões que nos malgovernam. O pior era se gostavam, esta gente é insaciável e não larga a gamela nem morta.
Hoje o meu amigo MSP veio até cá a casa dar uma ajuda de carácter técnico e exprobou-me o pessimismo do texto “sixty five” (au bonheur...64). É que às vezes ser português cansa. E muito.
Na ilustração: políptico de Gand, também conhecido por “cordeiro místico” de Van Eyck. Foi uma das obras de arte roubadas pelos nazis.
PS: Alguém conseguirá explicar-me o desaparecimento da fotografia de Rostropovitch que ilustrava o texto imediatamente abaixo deste (estes dias... 62)?