30 junho 2008

Estes dias que passam 115


A manipulação do sucesso,
do direito ao mesmo
e as consequências que se adivinham



Uma criatura que exerce o cargo de dirigente de uma DRE e que já se tornara famosa há um par de meses por levantar um processo a um dos colaboradores que alegadamente teria, em conversa particular, insultado o Primeiro Ministro, decidiu, após o conveniente período de nojo, mostrar de novo as pérolas do seu pensamento.
Proclamou (cfr. “Público” de 28 de Junho pp) que os “alunos têm direito ao sucesso” e que para que se cumpra tão luminoso desiderato deverão ser classificados por professores que não se distingam nem pela excessiva exigência nem pela igualmente excessiva permissividade.
Disse mais um par de coisas que poderão ser utilmente consultadas na mesma edição do citado jornal.
Vamos lá a ver se nos entendemos: os alunos não têm qualquer espécie de direito ao sucesso. Têm, isso sim, direito a um ensino responsável, digno e não excluidor. Depois disso, caso façam o que têm a fazer, isto é caso estudem, têm direito a ser avaliados pelo seu trabalho por avaliadores competentes e conhecedores do programa que lhes foi ministrado. E bonda.
Proclamar o “direito ao sucesso”, coisa muito na linha do que se vai ouvindo por aí fora, numa onde de publicidade para imbecis e mentecaptos, não quer dizer coisa alguma, ou pior, quererá dizer que o sucesso está ali mesmo, ao virar da esquina, não é preciso fazer nada, que ele está à nossa espera num Ferrari que conduziremos (mesmo sem carta) a caminho de umas ilhas paradisíacas onde o leite e mel (ou melhor o champagne e o caviar) escorrem directamente da árvore das patacas para os beiços mal lavados do consumidor ad-hoc.
Claro que esta declaração grotesca não é inocente. Ou não parece inocente. Ela visa cobrir a inaudita aventura das “provas nacionais” que todos os especialistas (ou pelo menos os que se podem arrogar desse título) consideraram inacreditavelmente fáceis. Aliás basta considerar (“Público”, edição referida, pagina 5) o quadro onde se comparam perguntas de aferição de Matemática do 4º ano de 2007 e do 6º ano em 2008.
Diga-se para já que em ambos os casos a pergunta é indigna. Uma criança de dez anos merece que lhe respeitem a inteligência e não lhe façam perguntas tontas e demasiado fáceis.
Mas aqui a coisa é ainda pior: Se a pergunta é fácil para o tal 4º ano (de 2007) é facílima para o 6º ano de 2008!!!
A pergunta que imediatamente ocorre é esta: a que título esta balda? Será porque os resultados ao longo dos anos têm sido miseráveis e nos colocam no fim do fim? E que é preciso, em ano pré-eleitoral, marcado por ásperas campanhas sobre a qualidade do ensino, provar que a excelsa figurinha que preside aos destinos da Educação obtém resultados estatísticos fiáveis que indiciem sucesso (o tal sucesso a que não só os alunos teriam direito mas também a Senhora Ministra e a coorte de responsáveis do eduquês que tragicamente se abateu sobre as cabeças das criancinhas portuguesas)?
De há tempos a esta parte, há a sensação difusa de que “eles” (os governantes) não sabem às quantas isto anda. “Eles” só ouvem o que querem, quando querem, e desde que seja música celestial para as suas orelhinhas. Para isso há uns escribas (até no Público) vindos dos cafundós do salazarismo e do estalinismo (les beaux esprits se rencontrent) que lhes sussurram que tout va bien madame la contesse.
De vitória em vitória até à derrota final!
"Eles" só ouvem o que servilmente lhes dizem uns responsáveis regionais, locais, uns assessores recrutados no aparelho e pinguemente pagos para não fazer nada, uns militantes que confundem o interesse nacional com o interesse próprio, enfim o pior do que se pode assacar à democracia, coisa demasiado nobre e demasiado vulnerável para ser usada por esta gente.
As famosas reformas, o famoso rigor, as famosas medidas lançadas sob um acompanhamento de acusações vagas e indiferenciadas a grupos inteiros (magistrados, professores, funcionários, agricultores etc, etc...) têm sido escamoteadas sob uma avalancha de promessas, de tgv, de aeroportos, de obras e inaugurações duvidosas que não resistem ao efeito combinado da alta do preço do petróleo (ora aí está uma bela desculpa) e da derrota da selecção de nós todos. Num momento, vai tudo pelo cano, os jornais anunciam que a bolsa de Lisboa teve um deliquio, que o investimento baixa, que a auto-confiança dos cidadãos se afunda.
Mas quereriam realmente outra coisa, estes apóstolos do sucesso, da facilidade, da manipulação estatística (porque obter resultados à pala da borla não é outra coisa senão isso)?
Pensaram porventura que, no futuro próximo, estas crianças contrabandeadas da ignorância para o quadro de honra, terão acesso às grandes escolas, ao grande ensino e aos grandes empregos?
Tenho uma sobrinha que fez com brio e trabalho o seu curso secundário numa escola particular onde a balda não tinha lugar porque felizmente as ordens ministeriais, as instruções dos GAVES e quejandos não têm eficácia. Foi assim que pode inscrever-se numa grande e prestigiada universidade inglesa que consta em todos os rankings mundiais. Ela sabe que uma vez concluído o curso difícil e trabalhoso que escolheu terá possibilidades acrescidas de emprego, de um bom emprego, de um emprego interessante e não falo só do aspecto económico.
As vítimas do novo sistema de sucesso terão em contrapartida, se tiverem essa sorte, um lugarzinho num balcão medíocre, a vender produtos medíocres, um destino incerto e um modo “funcionário de viver” como dizia Manuel da Fonseca, um autor que provavelmente não soará aos ouvidos delicados dos responsáveis da educação.
Escrevo este texto diante duma televisão exuberante que transmite a chegada apoteótica da selecção de futebol espanhola a Madrid. Ora aí está uma lição de trabalho e exigência. De dignidade e humildade. De recusa de facilitismos, Aragonés que o diga. E se alguma coisa poderia propor ao ver esta festa vermelha e dourada é que este cavalheiro de 69 anos (44 jogos de selecção quarenta vitórias) seja contratado para Ministro da Educação de Portugal (pior não faria e é muito provável, quase certo, aposto dobrado contra singelo, que faria melhor, muito melhor).
Com ele o sucesso não é um direito, é um objectivo que só se alcança com trabalho, trabalho e mais trabalho. O céu como dizia, num romance pungente e admirável, Richard Kaufmann, não paga dividendos. Será que os da Educação percebem isto ou é preciso fazer-lhes um desenho?
Para o ano as provas de Matemática do 12º repetirão as do 6º deste ano, vai uma aposta. E as notas excelentes tombarão da cornucópia ministerial como os pardaus que corriam, é o que afirmava Sá de Miranda, por Terras de Basto.

* Na gravura: a gatinha Ingrid Bergman de Andrade tenta resolver o seguinte problema: uma gata está deitada numa caixa de canetas. A caixa está sobre a estante do corredor dos quartos. Quantos objectos estão debaixo da gata? Proposta de pergunta para o exame nacional de matemática do 9º ano.

Farmácia de Serviço 44


dois incursionistas "instalados"

A Filipa César, uma artista instalada desde há anos em Berlin, resolveu pegar nas histórias clandestinas de quatro "passadores" de fronteira nos anos já longínquos de 1972/1974, filma-los no local e por aí, misturar, baralhar e o que mais se verá (e que os visados desconhecem).
A estreia é a 5 de Julho como se vê.
A autora, a fundação que a subsidiou, a galeria que a expõe chamam ao acontecimento "instalação" .
Os instalados, hoje senhora e cavalheiros respeitáveis, puxaram pelas meninges e pela memória e falaram para a câmara que os visava ameaçadoramente. O resultado ver-se-à.
Na Ellipse Foundation (contemporary art collection) Rª das Fisgas, Pedra Furada, Alcoitão Cascais. Desde 5 de Julho até 14 de Setembro.

Para a petite histoire: eis os "passeurs" ora "instalados": Cândida Alves Simas Santos, José Teixeira Gomes, Manuel Simas Santos e Marcelo Correia Ribeiro.

Na gravura: convite reproduzindo o mapa de Estado Maior dos locais por se contrabandearam fugidos à polícia política, clandestinos políticos e desertores.

29 junho 2008

Missanga a pataco 55


Indiscutível

Bilhete ao meu amigo João Tunes, navegador solitário do Agualisa 6, um blog que anda por aí a chatear o indígena. Que nunca as mãos lhe doam!

Foi uma grande equipa, caro João, uma equipa e não um somatório de géniosinhos. Uma equipa e não um ajuntamento. Com um treinador que não se esconde atrás de desculpas nem invoca a Virgen del Pilar ou outra do mesmo teor. Foi uma bonita festa, a festa do futebol como a malta gosta, um futebol franco, aberto, prazenteiro, um futebol que a malta pensa que é o mesmo que jogávamos na praia, no recreio da escola, um futebol em que nos esfarrapávamos para ganhar, cuspindo meio pulmão e alegria. Uma equipa que não perdeu um jogo, que não facilitou, que não descansou, que uniu, que deu o litro, o hectolitro, que suou bem suada a camisola. Assim, vale a pena!
E uma palavra para Luís Aragonés a quem tantos e tão poderosos auguravam um mau fim. El viejo mostrou com que lenha se aquece. E deve estar a rir-se como um cabinda à custa dos adversários entocados que lhe juravam pela pele.
A CG esteve aqui a meu lado, a perguntar coisas, coitada, ela de futebol, nicles, um zero à esquerda, nunca deu um chuto numa bola, nunca arreou uma canelada matreira no adversário imbatível, nunca marcou de cabeça, nem sequer um falhanço clamoroso, baliza aberta e bola ao lado... A enteada Ana, uma fanática de sofá, também não, mas teve um namorado que jogava futebol de salão e isso faz dela um oráculo aos olhos da mãe embevecida, queria a derrota da Alemanha porque os germânicos nos mandaram para casa. Não tem razão, fomos nós que mostrámos que devíamos vir para casa ao perder com os suíços. Com os suíços! Arre, porra, que é demais. Depois disso não merecíamos andar a enganar os nossos emigrantes para quem essa vitória seria tudo. Jogadores emigrantes contra trabalhadores emigrantes!
Voltemos aos espanhóis, á malta aqui do lado: assim vale a pena. Não se deve perder nem a feijões, não se deve facilitar, isto é uma coisa muita séria e os milhões que se ganham nos estádios devem ser retribuídos com um futebol profissional, vivo e limpo.
Esperemos que o próximo treinador, as criaturas da FPF, dos Clubes, da Liga, da imprensa esparvoada e sobretudo os jogadores portugueses percebam isto. Só se ganha quando se merece. Só se merece quando se é humilde e persistente.

28 junho 2008

Au bonheur des Dames 128


A dança das cadeiras
e o rolar das cabeças


O Senhor Ministro da Agricultura (se a estas horas ainda o é) não me aquece nem arrefece. Nunca tive qualquer opinião sequer sobre o seu bigode, que sempre me pareceu ser a coisa mais interessante da criatura.
Dito isto, não me move contra a pessoa em causa, nenhuma animosidade. Não sou agricultor, Deus me livre!, não vendo maquinaria agrícola, adubos, não tenho interesses nas serrações ou nas indústrias papeleiras e apenas distingo uma dúzia de árvores.
Por outro lado, nunca fui entusiasta das associações agrárias desde a CAP à CNA. Aceito a sua existência e julgo que alguma utilidade terão. É preferível que os interesses dos homens do campo estejam defendidos deste modo do que por encobertos lobbies.
Também não me causa espécie que na CAP haja um valente par de reaccionários e na CNA outro tanto de progressistas a outrance. Mal estaríamos nós, e mal estaria a agricultura portuguesa se nela não se reflectissem as fracturas políticas do resto da sociedade.
E nem sequer me importa muito que um ministro, mesmo esta espécie de ministros que Sócrates, à imagem e semelhança de Cavaco, gosta de ter (uns funcionários prestáveis e fungíveis que façam o que se lhes diz, durante o escasso tempo de antena que dispõem) digam coisas como esta última que o Senhor Ministro Silva disse. Para mim, ele limitou-se, muito a La Palisse, a constatar uma evidência.
Todavia, não foi só isso que o Senhor Ministro Silva disse. De facto ele pareceu (ou quis mesmo) querer desqualificar os adversários. Ou seja: com aquelas conotações políticas ele pode ter pretendido assacar aos agricultores ricos e pobres uma acusação que neste pais liofilizado é terrível: que há gente nas confederações agrárias que faz política em vez de ordenhar as vacas ou semear salsa ao reguinho. E com essa gente é inútil e contraproducente discutir. Se foi isto que o (ainda) Ministro quis dizer é muito bem feito que lhe cheguem a roupinha ao pelo. Não pela inverdade da afirmação mas pelo que ela tem de desqualificante e de ataque à política. Um Ministro deveria saber que a política está no posto do comando. Que isto não é mera técnica, mais imposto ou mais subsídio. É política, nom de Dieu! É par isso que há Ministros, senão bastava um capataz.
Ora o Senhor Ministro Silva comportou-se, ou pareceu comportar-se, como um mero capataz se, porventura, quis acusar elementos da CAP e da CNA de política!
Eu sei que no serralho governamental a palavra política cheira a enxofre. Eles não gostam dela. Prefeririam, sei lá!, polka. Olha, aí está: polka. Bela palavra! E musical que se farta. E cultural, muito ao estilo de saudosas personalidades ministeriais entretanto passadas compulsivamente à reforma antecipada. Imaginemos, por um momento, uma reunião do Ministério sob a batuta do inefável Primeiro Ministro. Um minuete a abrir, enquanto Suas Excelências comem canapés. Umas flûtes de champanhe (da Bairrada ou da Murganheira, que a crise aperta) e um absinto para o titular da Cultura. E uma garrafinha de “Magos” para a Senhora da Educação (se ainda por lá anda...). De repente, soa um clarim, ou vários, ou umas trombetas, e o Senhor Presidente do Ministério lê a ordem de serviço enquanto alguns ministros, mais gulosos ou menos rápidos, metem o resto dos canapés no bolso das librés. Segue-se uma azougada valsa que pontuará o discurso de Sª Ex.ª aos discípulos sobre o que dizer, fazer e negar durante a semana que entra. Permitir-se-ão algumas contra-danças, sempre marcadas pelo senhor Ministro do Reino e dos Cultos, perdão, das Finanças, a cargo de alguns responsáveis das pastas de maior relevo que Sª Ex.ª ouvirá com a sua habitual bonomia. Se responder com uma marcha (nunca a de Radetzky por óbvias razões) é sinal de negativa. Se a música escolhida for uma polka, saber-se-á que um Ministro, durante um momento único e irrepetível da sua vida, fez jus aos favores do Chefe. Quando for exonerado a seu pedido haverá certamente uma sinecura interessante em que ocupar os seus ociosos e futuros dias.
Mas isto, este idílico retrato, servirá para povoar o sono de algum crédulo habitante da Lusitânia que ainda pensa em ganhar o Europeu de futebol graças a uma decisão da FIFA, mas não serve seguramente para segurar um Ministro (mesmo com bigode) ao lugar ou para (no caso de ele ainda por lá estar) o levar a sério quando afirma que continua na posse de todas as suas funções. Não continua. Nem ele, aliás, acredita nisso.
Sic transit gloria mundi...

*na gravurinha: uma polka!

25 junho 2008

Estes dias que passam 115


efeméride

Foi o blog do João Tunes, um dos meus vícios diários, que o relembrou. Faz sessenta anos que Berlin foi bloqueada. Em poucas palavras o que ocorreu foi o seguinte: uma vez derrotados os nazis, a Alemanha foi dividida em quatro partes. O sector soviético ficava a leste e englobava a cidade de Berlin que, por sua vez, também estava dividida em quatro sectores.
O sector soviético ocupava também a zona leste da cidade e, curiosamente, a sua parte mais antiga e central (Mitte). Os três sectores ditos aliados não se distinguiam porquanto não havia quaisquer barreiras entre eles. As passagens para o sector soviético estavam relativamente guardadas mas em 1948 não existia nada que se assemelhasse ao sinistro Muro que depois se construiu. De todo o modo, o clima dentro da antiga capital do Reich milenário, que só durara escassos onze anos, era de cortar à faca. Por razões óbvias, e apesar das privações por que todos passavam, aqui ou no resto da Europa, os sectores “aliados” exerciam uma forte atracção e eram os preferidos da população. A guerra fria só ajudava a tornar mais forte esse sentimento e terá sido essa uma das razões por que Stalin entendeu proibir o trânsito terrestre entre a Alemanha Ocidental e Berlin. Com essa medida estrangulava economicamente a cidade e sobretudo cortava-lhe drasticamente os víveres e o carvão, essencial para o aquecimento durante o longo, frio e seco Inverno berlinense.
Todavia, os ocidentais, melhor dizendo os americanos (que eram quem tinha meios aéreos, combustível e logística) criaram uma ponte aérea que ainda hoje é um exemplo de organização e eficácia. Em Berlin quase que aterrava um avião a cada minuto. Aviões que traziam comida, vestuário, combustíveis, brinquedos para os meninos berlinenses (e isso foi um dos pontos importantes do programa) enfim tudo o que era necessário para manter uma aparência de vida normal na cidade sitiada.
Convém aqui relembrar os habitantes da cidade que não só se portaram com uma enorme calma mas que também rapidamente criaram sistemas de entre-ajuda exemplares. Os berlinenses são gente bem humorada e expedita.
A situação durou praticamente um ano e terminou surpreendentemente com o recuo dos soviéticos. Foram restabelecidas as ligações ferroviárias e por estrada, nos três famosos eixos de acesso à cidade.
Anos mais tarde, o Muro reeditaria, de certo modo, esta tentativa de isolamento da cidade.
Foi já nesse contexto que vivi em Berlin durante dois meses, em 1970. Vivia, aliás, num Studentenheim, em Wedding a poucas dezenas de metros do muro.
O ambiente, obviamente menos carregado do que o de 48, era todavia especial. As pessoas sentiam-se numa ilha em que um muro sinistro e ameaçador fazia as vezes de mar. Havia fortes restricções ao trânsito dos berlinenses e mesmo os estrangeiros tinham de se sujeitar a pequenas humilhações (e longas demoras) para atravessar o check-point Charlie, perto da Friederichstrasse. Nós, alunos do Goethe Institut, tínhamos por hábito ir de quando em quando ao “outro lado” para comer (era mais barato, sobretudo se se conseguia contrabandear os marcos orientais comprados nos cafundós do Zoogarten à taxa de quatro por um, ou seja quatro vezes melhor do que a taxa oficial da DDR que trocava os marcos um por um. Claro que havia o risco de se ser caçado na passagem da fronteira onde não era raro revistar as pessoas de alto a baixo. E disse para comer porque em Berlin oriental não havia nada que se comprasse. Ou melhor, o que havia era de tão fraca qualidade e tão feio que nem o preço por mais barato que fosse era atractivo. E quando digo que havia coisas para comprar convém explicar que eram poucas. Berlin oriental era, para qualquer pessoa com dois dedinhos de testa uma prova provada do falhanço do sistema “socialista” (era assim que os do leste chamavam à tremenda e ineficaz bagunça que tinham criado e que, dizia-se, era, apesar de tudo, a menos má de todo o bloco oriental. Quando uma vez, já regressado, me perguntaram pelas lojas de Berlin oriental apenas pude murmurar que me pareciam piores e menos fornecidas do que as do Buarcos da minha infância. Ou seja, em 1970, os berlinenses, habitantes da capital da DDR, farol da paz e do “socialismo”, tinham menos produtos à sua disposição do que os pobres habitantes de um arrabalde piscatório da Figueira da Foz no imediato post-guerra.
Berlin oriental para um português habituado ao sufoco salazarista parecia um susto. Nem a ideologia conseguia suprimir aquela sensação de tristeza morna, de falta de tudo, inclusive de ar, aquele bafio que se respirava numa cidade cinzenta e ainda com visíveis sinais da guerra. Berlin oriental era deprimente. Era uma antecipada confissão de derrota, de falta de futuro, uma falácia que nem sequer a lembrança do odioso regime anterior desculpava. Nem os museus sumptuosos, o teatro da Weigel, a ópera e a música em geral conseguiam disfarçar o espectáculo acabrunhante duma imensa esperança perdida.
De certo modo, poderia pensar-se que Stalin tinha ganho a partida. Perdera o ocidente mas criara entre a sua distante capital e as fronteiras do inimigo, uma imensa zona morta, uma terra de ninguém em que nem sequer os fantasmas que a percorriam poderiam evocar o do “Manifesto”.
A resposta, mas quem a conheceria em 70?, seria dada quase duas décadas depois no dia em que um equívoco fez afluir aos postos fronteiriços do Muro uma imensa multidão que, de facto, o destruiu. Nem os alemães de leste estavam mortos, nem o Muro era eterno. E muito menos aquela temível corruptela de palavras antigas e justas (revolução, socialismo, liberdade) que diariamente e durante décadas foram cuidadosamente dessoradas por uma clique de funcionários para quem a palavra povo soava a algo de pernicioso.

* na gravura: um pedaço de "muro" nos seus primórdios

24 junho 2008

Estes dias que passam 114


Na noite de S João era previsto escrever sobre coisas mais leves, com um ligeiro toque licencioso até, um dia não são dias e o toque erótico está na moda, aliás esteve sempre, não vale a pena fingir que somos todos gente muito séria, a malandrice vem ao de cima e ainda bem, que seria deste mundo se não lhe déssemos com um toque de sem-vergonhice, da boa, da verdadeira, da Bayer, ou seja umas mamas a apontar para o infinito, uma mão pronta a saltar do infinito para o finito, isto é para a mama que estiver mais perto, que mais vale um pássaro na mão que dois seios a voar, não sei se me estão a seguir...
Só que Deus dispõe e um filho da puta qualquer põe a pata na escrita divina e borra a pintura. No caso o filho da puta é preto, preto retinto, um filho da puta preto, que também os há em quantidade não negligenciável. Este chama-se Mugabe e não deixa os seus créditos por mãos alheias. O homem terá sido vagamente combatente pela liberdade, ou seja, mandava uns desgraçados chatear o Ian Smith no tempo em que aquilo se chamava Rodésia do Sul, e quando os portugas arrearam a coisa tornou-se canja. A África do Sul sozinha, com o seu apartheid a romper pelas costuras já não dava hipótese aos rapazes de Ian Smith e foi assim que nasceu o Zimbabue. Desculpem a brevidade do resumo histórico mas creiam-me que a coisa foi mais ou menos assim. A África austral branca só tinha significado toda junta, sobretudo se tivesse ao lado um protectorado chamado Malawi governado por um cavalheiro “responsável” que só queria enriquecer-se e não ter chatices. A chatice foi que o 25 de Abril atirou de pantanas com Moçambique e Angola muito mais cedo do que se esperava e isso pôs em cheque os boers e por maioria de razão os 300.000 brancos da Rodésia.
Estes cavalheiros que punham e dispunham naquele território tinham criado uma forte economia agrária, baseada em culturas de exportação, grandes propriedades rigorosamente organizadas, enfim a coisa mais parecida com capitalismo que um “domínio” de Sua Graciosa Majestade Britânica poderia ter nesses anos de colonialismo puro e duro.
A tomada de poder por Mugabe fez-se por acordo, conservando os brancos o controle da quintas-empresas. E durante anos o sistema pareceu funcionar. As exportações agrícolas davam solidez à economia zimbabuana e havia mesmo um simulacro de democracia.
Subitamente tudo mudou. Os brancos foram expulsos, as “farms” foram ocupadas, as terras divididas, as exportações desapareceram e a pobre agricultura de subsistência que as substituiu não consegue sequer alimentar as multidões ocupantes. Ou seja: no século XXI os meios e os modos de produção não podem ser os do século XIX.
Junte-se a isto uma outra maldição. Na maioria dos novos países africanos instaurou-se o (mau) hábito do partido único. Partido único, significa utentes únicos das prebendas estatais. O mesmo é dizer que há fora desse círculo uma pequena multidão que se constitui em oposição por todas as razões possíveis, desde o patriotismo até á mais descarada ambição. Mas partido único significa também que todo e qualquer gesto político exterior pode ser considerado um acto de traição (como os últimos acontecimentos e as acusações recentes ilustram veementemente). E os traidores não podem ganhar eleições. E se, acaso, as ganham, perdem-nas logo a seguir por meios variados, violentos de preferência.
E é isso que ocorre desde há bastante tempo no Zimbabué. Demasiado tempo. Hoje soube-se que Morgan Tsvangirai, o chefe da oposição no Zimbabue está refugiado numa embaixada, que dezenas de adeptos seus foram já mortos pelas milícias do partido único. Centenas de militantes oposicionistas estão, neste momento, refugiados na sede da candidatura e correm risco de morte.
Entretanto, Mugabe que já avisara que nada nem ninguém o derrotaria, continua a ter activos apoios em África e foi, como se lembrarão, recebido em Lisboa com honras de Chefe de Estado apesar de lhe estar vedada a entrada na União Europeia.
A vaidade estúpida de fazer uma cimeira inútil foi mais forte do que o sentido ético. O sangue que depois disso se continuou a derramar no Zimbabue salpica indelevelmente os organizadores da cimeira que aliás foram avisados e viram vários políticos europeus boicotarem a reunião justamente porque esta estava inquinada pela presença de Mugabe.
E isto, esta burrice e esta falta de sentido de Estado não se apaga com as orvalhadas de S João. Nem se lava com a chuva miudinha que neste instante cai.
As brejeirices amáveis ficam para a próxima crónica...

22 junho 2008

para um domingo, dois poemas

o sol

elevamo-nos solares
algum dia,
em alguma terra habitada pelas oliveiras.

tinhas as mãos cheias de mim,
aproximavas teus lábios dos meus cabelos
e me dizias tudo,
depois depositava-os nos meus ombros.

éramos o sol ,
a exaltação da vida.


pensamento

grande é o universo do pensamento
ora caminha
com pés de chumbo
rente à terra
ora tem asas
espalha-se no céu
e voa infinitamente

silvia chueire

18 junho 2008

missanga a pataco 55



tantos verões que ela dançou...

Ai Casino Peninsular nesses anos gloriosos em que a infância esmorece e as pernas de uma mulher nos começavam a dizer mais do que um duelo entre o Roy Rogers e vinte maus, armadaos até aos dentes.

Ai anos e anos de salas escuras, a magia do ecran, a música, a dança, Ninotchka, mil outras ninotchkas com mil outros nomes, a graça, a leveza, o júbilo o profissionalismo, a técnica, o feeling, o encantamento, o movimento em estado puro, o movimento puro, o movimento...

Uma mulher destas não morre, é impossível. Uma mulher destas é raptada por dois anjos pícaros, respectivamente Fred Astaire e Gene Kelly, e levada para um palco longínquo onde se produzirá eternamente diante dos seus pares.

Ai Cinema Peninsular, Figueira da Foz anos cinquenta, também eu dancei no escuro, no verão, levado pela mão dessa emoção feita carne que se chamava Cid Charisse.

*o título é uma homenagem a Arne Matsson, autor premiado de "Ela só dançou um Verão" (princípios de cinquenta). E este texto tem um grande destinatário, tão de luto quanto eu: o escultor Manuel Sousa Pereira, é a vida mano, a nossa e a dos nossos amigos...

17 junho 2008

SCUTS

A guerra contra as portagens nas SCUTS está de volta. A comunicação social tem feito eco destas notícias. As SCUTS em causa situam-se no Litoral Norte, Grande Porto e Costa de Prata. Ou seja, tudo vias são de ligação à cidade do Porto.

É conhecida a posição do Governo em alterar o modelo de financiamento das SCUTS. Em consequência dos estudos que fez o Governo anunciou, creio que no último ano transacto, a decisão de cobrar portagens nas SCUTS que cumprissem dois critérios principais: 1) a existência de vias alternativas gratuitas; 2) que as zonas beneficiadas pelas SCUTS tivessem um produto interno bruto (PIB) igual a superior a 80 por cento do PIB nacional.

Se relativamente ao segundo critério parece que o mesmo estará garantido para o território atravessado por aquelas SCUTS, já não é certo que as alternativas existentes satisfaçam o primeiro critério, isto é, que o tempo gasto nas correspondentes Estradas Nacionais não ultrapasse em 1,3 (indicador adoptado no estudo realizado pelo Governo) o tempo necessário para percorrer o mesmo percurso nas SCUTS.

Como é óbvio não basta invocar a aplicação do princípio do utilizador-pagador para fazer recair sobre os utentes mais um encargo. É necessário que, no mínimo, se verifiquem os pressupostos, definidos pelo Governo, para que aquelas SCUTS deixem de ser de utilização gratuita.

E até já nem se fala de
outras opiniões e da fortíssima carga fiscal que recai sobre a utilização dos veículos automóveis: imposto sobre combustíveis, Imposto automóvel, Imposto de circulação, receitas que, em princípio, se destinariam a suportar a rede viária…

Diário Político 87


Perder tempo

Não se deve perder tempo. Sobretudo se for a gastar velas com ruim defunto. Porém, uma vez não são vezes e o caso merece um par de linhas. A drª Pires de Lima volta a atacar. A atacar, é como quem diz. Volta ao local do crime e diz mais um par de coisas que se não estivessem escarrapachadas no jornal, ninguém acreditaria.
Comecemos pela teimosa convicção da drª Pires de Lima: insiste em não perceber que um “centro de programação”, seja lá o que isso for, de uma cinemateca teria forçosamente que passar os filmes dessa cinemateca. Em que condições? Operados por quem? E onde?
A resposta ao último item é a Casa das Artes. Exactamente o edifício anexo à transferida Delegação Regional de Cultura do Norte. Que está devoluto por alguém ter entendido que o lugar desta delegação era numa cave manhosa em Vila Real...
Só que... só que a Casa das Artes está fechada. Para obras!!! Ou melhor para obras se...
Havia, diz a drª Pires de Lima, 200.000 euros para a reparar. Havia mas não houve! O dinheiro (no ministério que presumivelmente era gerido pela drª Pires de Lima) terá ido para parte incerta. Ou seja: não foi para a Casa das Artes, eventual sede de um pólo de programação. Às tantas foi o João Benard da Costa que assaltou os cofres e fugiu com o dinheiro...
Claro que se poderia sempre pensar que se a Casa das Artes está na mesma é porque não houve vontade política de usar os citados 200.000 euros na sua recuperação. A menos que o Ministério da Cultura fosse gerido não pela ministra mas, por exemplo, pelo contínuo das fotocopias.
Mas o mais risível vem em caixa. João Benard da Costa atingiu o limite de idade durante o penoso consulado da drª Pires de Lima. Foi ela quem assinou o despacho que o manteve no lugar de Director. Todavia a drª Pires de Lima, com enternecedora inocência, vem dizer que não o queria fazer. Mas fez! Fez porque a mandaram. Ou seja andou por ali, pelo ministério a fazer coisas que não queria (e são conhecidas as suas constantes derrotas, perdão: as suas constantes vitórias até á demissão final.). tudo pelo amor da pátria. E da cultura, claro.
E terminemos com uma pérola: a drª Pires de Lima “sabe que há limitações à passagem a digital de certos tipos de película mas também sabe que...há meios técnicos que possibilitam uma mais ampla e frequente divulgação”. Ficamos sem saber que limitações, que meios etc...
Tudo isto com a mesma cantiga: a necessidade de passar filmes anteriores a 1990. Se se tiver em linha de conta que no mercado existem milhares de cópias de filmes produzidos entre 1960 e 1990; que existem bastantes cópias de filmes produzidos entre 4o e 60; e que são raros para não dizer raríssimas as cópias das décadas anteriores e inexistentes, ou quase, as do mudo, pareceria lógico que se começasse justamente por estes. Por uma questão de história do cinema e de dificuldade na divulgação. Ou não? O resto, o que está mais próximo, anda por aí a preços de saldo.
Mas isto não deve fazer parte dos conhecimentos dos rapazes que mandam para a internet petições tontas. Nem de quem subitamente aparece como sua advogada.

o cavalheiro da fotografia chamava-se Murnau. Foi autor de uma vintena de filmes dentre os quais se cita sempre, e justamente, Nosferatu. Para o caso que nos interessa aqui convem dizer que também foi autor de Herr Tartueff (1926).

d'Oliveira

16 junho 2008

Uma nova política, Precisa-se

“O mundo precisa de repensar as fontes de crescimento económico. Estando o crescimento económico alicerçado nos avanços científicos e tecnológicos e não na especulação imobiliária ou nos mercados financeiros, os sistemas tributários têm de ser reajustados. Por que razão os que obtêm os seus rendimentos jogando nos “casinos” de Wall Street têm taxas de imposto mais baixas do que os que ganham dinheiro de outras maneiras? A tributação dos lucros do capital deve ser, pelo menos, igual à que incide sobre os outros tipos de rendimentos (esses rendimentos têm, em qualquer caso, um benefício substancial porque o imposto só é cobrado depois de realizado o lucro.) Além disso, deveria existir um imposto excepcional sobre os lucros das empresas petrolíferas e de gás.”

Joseph E. Stiglitz, Prémio Nobel da Economia em 2001, escreve mais um interessante artigo no D.E. em que defende, mais uma vez, uma nova política na tributação dos rendimentos. Só não se entende a razão que leva os políticos a não adoptar o que parece óbvio e que ajudaria na guerra contra os especuladores financeiros.

15 junho 2008

o caminho faz-se caminhando

carta à desaparecida administradora deste blog, madame Kamikaze de seu nome, mulher das arábias (algarve incluído), editora, animadora cultural e tudo o mais

Cara administradora,
Serve esta para lhe comunicar o nascimento de mais um blog (mais outro!) prontinho a fazer-nos uma concorrencia danada, falta de vergonha!, e com uma tripulação de respeito. cito só as do deu sexo, que chegam para acrescentar ao gentil rol das padeirinhas de aljubarrota, deu-la-deus martins e similares: diana andringa, manuela cruzeiro e irene pimentel!!! Livra!
Aproveitei, para em nome da tripulação incursionista, lhes dar as boas vindas a este mundo degenerado sem rei nem roque.
E já agora avisar as/os leitoras/es: A concorrencia é boa neste nosso ramo. Eis o poiso dos recém-chegados: caminhosdamemoria.wordpress.com

Au Bonheur des Dames 127


Metáfora de uma cidade e de um país

Uma explicação: há um par de anos o Porto foi uma espécie de capital cultural ou algo semelhante. Foi um presentinho que um governo (Guterres?) resolveu dar à cidade prometendo-lhe fundos, glória imortal, muita e boa cultura, turistas à pazada e muito dinheiro a ganhar.
Quando a esmola é muita o pobre desconfia, diz um ditado. Ou devia desconfiar. O Porto e a triste câmara que o geria não desconfiou (depois disso veio o senhor Rui Rio e foi bem feito) e atirou-se entusiasmado para a magna tarefa. Como de costume (já Lisboa tinha tido uma experiência decepcionante em termos de público com a Expo que prometia igualmente multidões inimagináveis a pontos de até fretar uns paquetes luxuosos para alojar quem não conseguisse hotel. O naufrágio foi o que se viu, como estarão lembrados), as multidões esperadas fizeram-se rogar e não apareceram. Em termos de público de fora da cidade e seus confins a coisa atingiu as raias duma modéstia decepcionante. Os grandes negócios ficaram por fazer e os lucros não se verificaram.
Das obras, entretanto, efectuadas uma espantou mais que todas (e foram várias as coisas que ainda hoje intrigam um cidadão mesmo benevolente e ingénuo): entre o mar e o parque da cidade, quase em pleno areal edificou-se um “edifício transparente”, uma coisa caríssima, encomendada a um desses arquitectos cinco estrelas. E qual era o programa dessa oitava maravilha do mundo? Pois desconhece-se. Era preciso arejar uns milhões e por isso fez-se uma coisa semi-oca com muito vidro para o lado do mar e para o parque cuja utilidade era, digamos por piedade, indeterminável.
E tanto foi, que o “edifício transparente”, pago com o dinheirinho dos cidadãos, andou de Herodes para Pilatos à espera que alguém lhe encontrasse um destino. O meu amigo K foi, ao que sei, a única pessoa que avançou um alvitre eventualmente rentável. Convocavam-se os cidadãos irados do Porto e seu termo que mediante uma prestação monetária variável alugariam martelos, maças, tanques de guerra, canhões enfim qualquer coisa que permitisse demolir e era-lhes dada licença para começar a destruir a obra de arte. Quem quisesse fotografar, pagava. Quem quisesse um diploma de pedreiro pagava e assim sucessivamente.
Porém, os termos radicais desta proposta que K insistia em considerar artística (chamava-lhe, mesmo “desinstalação”!!!...) não foram aceites, ou não chegaram aos ouvidos de Rui Rio. O resultado, triste resultado, foi perder uns largos anos a tentar arranjar alguém a quem impingir a obra de arte. Por duas ou três vezes os concursos ficaram desertos. Finalmente um samaritano apareceu. Se lhe fizessem um preço de amigo, ele tomava conta do elefante branco e dava-lhe destino. Ao que consta entregaram-lhe aquilo de mão beijada. Fizeram-se umas obras (numa obra de arte? Num cume da arquitectura contemporânea? Na maravilha das maravilhas? Nisso tudo!) e apareceram umas lojas, uns restaurantes e a casa encheu-se.
Aquilo, visto de fora, não prometia mas este cronista é como S.Tomé: ver para crer. E no sábado passado, arrisquei-me a percorrer os diferentes pisos do “edifício semi-transparente”. Se eu quisesse ser mesmo mau, teria apresentado uma queixa contra incertos. Quem entregou aquilo aos mercadores do templo? Então aquela peça cara, caríssima, está agora entregue a um comércio pouco menos indigente do que a feira dos treze, a meia dúzia de restaurantes manhosos e a mais duas ou três coisas do mesmo teor? Todavia, achei que não valia o incómodo. E que talvez os restaurantes não fossem assim tão fraquinhos. Sentei-me num e pedi a ementa. Em cinco minutos estava verificado que aquilo, um restaurante de cozinha estrangeira, tinha tanto a ver com o país que dizia representar como eu tinha com a Bósnia-herzegovina. Fechei a ementa (que precisava de substituição urgente por sebosa e em mau estado) e retirei-me. Da esplanada, do restaurante e da edificação transparente. Não tão transparente porque por dentro a limpeza também não parecia ser uma das preocupações principais de quem gere aquilo.

E marchei à procura de um restaurante italiano que tinha um nome pouco abonatório mas que prometia cozinha siciliana. Entrei um pouco admirado. Num espaço amplíssimo, agradabilíssimo, um pé direito que já não há, umas largas dúzias de mesas bem ataviadas, guardanapos de pano e tudo, vazias. Eu era o único comensal! O único, repito, para o caso de terem pensado que isto era uma figura de estilo.
Desconfiado (um restaurante vazio à uma e meia de um sábado sem sol) lá me resolvi a ler a lista. Eu tinha dito restaurante siciliano? Se disse, não desdigo, mas a Sicília, devia andar muito ocupada naquele dia porque brilhava pela ausência. Não tem mal, pensei, a Itália é como o porco, aproveita-se tudo.
E requisitei spaghetti de frutos do mar (prometia-se amêijoa, mexilhão, camarão e lulas). Pobre, quando a esmola é grande desconfia, já o disse. E mais uma vez se comprovou a sabedoria do rifoneiro luso.
O que me apareceu em dose generosa (há que dizê-lo) foi um prato de spaghetti mergulhado numa molhanga castanha clara onde navegavam uns camarões que retintamente mostravam vir dos congelados, algumas amêijoas e mexilhões nas suas cascas e uns nacos de lula que também tinham conhecido os frios polares. Atrevi-me a provar tanto mais que estava com fome. As leitorinhas gentis que me aturam sabem que eu não sendo um cozinheiro, sei cozinhar. Sou como as antigas criadas de servir que quando se lhes perguntava pela arte respondiam que sabiam fazer o trivial.
Só que o meu trivial naquele bonito restaurante atingiria as raias do fenomenal, do óptimo, face àquela desolada molhanga, á massa recozida e saída do ponto “al dente” pelo excesso de líquido. Líquido desnecessário, diga-se de passagem, tanto mais que, se tivesse sabor, aniquilaria os frágeis sabores dos mimosos frutos do mar. As lulas sabiam a nada, os camarões idem aspas e os bivalves tinham perdido o frágil gosto.
Estava explicado o mistério da minha intensa solidão refeiçoeira. Aquele restaurante era um cenário para um entremez de quinta categoria, com actores amadores e ignorantes. Salve-se todavia, o empregado de mesa, simpático e compassivo que ao ver o pouco que comi, se atreveu a perguntar a razão e a sugerir que eu respondesse a um inquérito da casa para melhorar o serviço. Avisei-o que não valia a pena o esforço. A ementa era demasiado grande mas á custa de pratos vulgares. As pizzas propostas só tinham a originalidade de meter umas picardias desnecessárias mas muito estilo pizza hut. Fora das pastas não havia um vero prato italiano e eles são muitos e bons. Para comer bife de pimenta não se vai a Itália que fica longe. E menos à Sicília cuja cozinha opulenta se descreve (tão bem) nos romances de Andrea Camilleri (leiam-no leitorinhas que é um notável escritor. E leiam também, os restantes sicilianos que a terra não é só mafiosos e luparas. Ainda agora trouxe da minha excursão romana uma senhora – Simonetta Agnello Hornby – que escreve que é um espanto). Portanto, o problema não era só de cozinha, era de programa e de alma. Aquele velho casarão tão bem aproveitado (ao contrario do “transparentinho”) era uma casca maravilhosa de pérola falsa.
De quando em quando, algum dos camaradas desta galera ou algum leitor, censura-me o facto de só referir o “negativo”, de não me babar gozosamente perante os progressos formidável da pátria valente e imortal. Talvez tenham razão, mas a mim, o patriotismo dá-me para reclamar. Vivo aqui há sessenta e seis anos, aqui me criei, aqui fiz pela vida, aqui tentei melhorar o que podia melhorar. Nunca desanimei, nunca me calei mesmo quando isso era difícil, para não dizer coisa pior. Tenho, mais do que o direito, o dever de continuar a reclamar. A terra é sáfara, metade areia e metade montanha, o clima é doce, as gentes amáveis, cordatas e, uma vez emigradas, trabalham como mouros ou como galegos. O que é que nos falta para “nos cumprirmos como nação”?
Estas duas frustrações ilustram bem o modo de estar portuense (desculpem lá amigos e vizinhos mas é mesmo assim.). Reclamam de Lisboa mil coisas, querem tgv para Vigo, para ganhar dez minutos no caminho e fazer o frete aos do lado de lá que não choram. Querem o perfume do poder sem o cheiro das estrebarias. Querem ser Barcelona sem perceber que os catalães se fizeram a eles próprios e são repugnantemente realistas.
E ilustram o modo de estar português: construir castelos na Índia, em Marrocos (gloriosa estupidez!), naufragar ao peso da canela, usar o ouro dos brasis para ganhar um patriarca e um convento gigantesco onde os percevejos caçam soldados e o fantasma duma inexistente Blimunda faz chorar as pedrinhas da calçada. Portugal, que não é o Sião, é o verdadeiro país do elefante branco. O de pedra, o inútil, o caro e o ridículo. Assim não vamos lá, manas e manos. Não vamos lá!

14 junho 2008

Estes dias que passam 113


De vez em quando
uma pessoa sente-se divertida

Comecemos por esses dois belos países que, desde sempre, são alvo da minha preferência viajeira: a França e a Itália. Estão à rasca no Europeu de futebol! Com um ligeiro toque, por exemplo uma derrota da Holanda (já apurada) frente á Roménia e ala que se faz tarde: para casa sem honra nem glória. Convenhamos que ambas as equipas merecem o castigo. Aquilo não é futebol, é apenas uma tristeza...

Continuemos pela façanha irlandesa: toma lá que já bebes! Não ao tratado dito de Lisboa. Com um toque especial: parece que o senhor Primeiro Ministro de Portugal teria dito que isso lhe acabava a carreira política. Será verdade? Boa piada. EStes irlandeses são uns marotos: souberam disso e pimba!, aí vai lenha!

Continuando no mesmo tema: a recusa dos irlandeses tem muito a ver com as confusões do Tratado, com a sua linguagem que repele os leitores, com o truque do recurso aos parlamentos, solução que só se tornou evidente depois dos azares passados. Pessoalmente sempre entendi que é ao parlamento que incumbem estas tarefas mas, também pessoalmente, repugna-me que políticos populistas que se abaixam até se lhes ver o dito cujo diante da populaça (disse populaça, e repito) agora tenham feito marcha atrás com medo da voz dos .

Parece que há uns cavalheiros que dizem já que a recusa irlandesa pode ser ultrapassada! Como? Ouvi bem? Então quando anteontem massacravam os ouvidos dos irlandeses com a inexistência de um plano B também era mentira?

Acabou o lock-out dos pequenos transportadores. Disse lock-out e repito: mesmo quando se fala de camionistas, as mais das vezes estamos perante um trabalhador proprietário do seu veículo. São eles aliás quem se sente mais apertado. Dependem quase absolutamente das variações dos preços do combustível e, desde há muito, que o mercado lhes era desfavorável. Os opinantes opinaram: Pacheco Pereira, antigo marxista, ou algo parecido, fala em movimentos disruptivos, para cascar na acção sindical. Ou seja. Pacheco vem, agora, dizer que a cólera dos pequenos patrões é horrível. Pois é. No século XIX foram estes produtores que forneceram boa parte das hostes anarquistas. E das mais violentas. Com uma pequena diferença: nunca os anarquistas (o este tipo de anarquistas obtiveram ganho de causa. A sua independência, o seu escasso número, o seu medo da proletarização e o seu horror a associar-se aos operários industriais, ditou a sua sorte.
Júdice (José Miguel, ex-militante da extrema direita coimbrã (erros de juventude, claro) vem pasmosamente falar de proto-fascismo. Eu, pessoalmente (é a 3ª vez que uso este advérbio de modo!) não contesto a experiência de Júdice em questão de fascismos (de que só fui vítima involuntária, e voluntária quando pude): só que não é verdade. Estes produtores não estão à espera de um tirano de pata no ar, a uivar nacionalismos serôdios e corporativismos anormais. Estão arruinados! Comprimidos entre as grandes empresas que aproveitaram os pequenos como tropa de choque e homens de mão, e os preços do petróleo que não vão baixar, bem pelo contrario.

A crise não é conjuntural, senhoras minhas, é estrutural. Há dias, duas semanas, mais ou menos, o “La Republica” publicava com grande destaque um texto de Guido Rossi (“Così il supercapitalismo uccide la democrazia”) parte do prefácio ao livro de Robert B. Reich: “Supercapitalismo. Como muda a economia global e os riscos para a democracia”. Reich foi um dos principais governantes sob Clinton e é conselheiro de Obama. E parte deste simples facto: o poder económico na América e nos restantes países deslizou dos cidadãos para os consumidores e e para os investidores pelo que os aspectos democráticos do capitalismo declinaram. E por aí fora.

Não sei se isto é demasiada areia para a camioneta dos comentadores encartados mas é a opinião de alguém que se arrisca a voltar ao poder. De facto, segundo uma mega sondagem mundial, Barak Obama é o favorito de 70% dos europeus, africanos e asiáticos! Claro que estes não votam, mas isto diz muito do que se desde há tempos aqui se vinha dizendo sobre o impacto desse afro-americano, ligeiramente out-sider que desafiou a Senadora Clinton.

Voltando aos camionistas e á perversa política do abandono dos transportes ferroviários. Em Espanha sabe-se que os pequenos camionistas (agrupados na FENADISMER) são exactamente cerca de 16 a 18% (e metade do que facturam vai direitinha para o combustível). E em Portugal, quantos são? O cavalheiro do “jamé” poderia fazer o obséquio de nos informar. Ou o seu chefe. Ou alguém, diabos nos levem!
Vamos lá a ver: a crise dos altos preços dos combustíveis veio acompanhada de uma retracção no mercado. Há menos fretes. Por haver menos fretes, os fretadores pedem preços mais baixos porque sabem que se o primeiro camionista abordado recusa há outro mais enrascado que aceita. Este é, sempre foi, o drama dos pequenos patrões-trabalhadores. Não são fascistas, nem proto- são homens acossados.

Em Espanha, outra vez (Villa! Maravilla, quatro golazos!!!) sob o governo de um socialista, não houve contemplações para os piquetes de lock-out. Em Portugal foi o que se viu! Há quem diz que correu tudo bem, que o governo não cedeu, etc... É uma opinião. Só que a “fragilidade” do Estado está à vista e a sua pública confissão poderá dar ideias a alguém. Faltou, logo no início uma palavra: a legalidade tem de ser preservada. Não o foi e há vítimas: os pequenos e médios agricultores que perderam os produtos frescos e perecíveis, leite por exemplo. Quem é que os indemniza? Porque aqui o Estado falhou: esta gente tem o direito de escoar a sua produção e dois ou três dias de leite perdido pode significar o prejuízo de um inteiro mês.
Mas terminemos com um ou dois sinais positivos:
O FCP tem mais uma chance de ir à Champions. Juridicamente terá razão, como já a o disse. Eticamente a coisa fia mais fino. Muito mais fino...
A crise dos combustíveis e as longas bichas junto aos postos de abastecimento nunca existiu: basta lembrar os longuíssimos cortejos automóveis que encheram as ruas depois do segundo jogo da selecção portuguesa. Tout va bien quand finit bien!

E um reparo: eu sou da Naval 1º de Maio, o que já deve ser grave.E não sou nacionalista desportivo, o que é pior. Não gosto do senhor Scolari pela beatice e pela violência que ostentou. Todavia, não tenho a menor dúvida que a ele se deve uma boa talhada dos êxitos da selecção nacional. E que sem ele as coisas poderão ser menos boas. Bastante menos boas. E parece que os cavalheiros do Chelsea são da minha opinião. Aquela gente não joga a feijões, amigas e amigos. Não jogam a feijões...

* a fotografia foi pilhada por aí num blog simpático. "brigadinho..."



reconhecer

um corpo lembra com exatidão
outro corpo.
reconhece-o por sobre o tempo,
quando aquele é seu lugar definitivo.

silvia chueire

13 junho 2008

Uf!

O FCPorto vai disputar a Liga dos Campeões. Ainda bem! Fico aliviado! Se calhar é desta que me faço sócio!

12 junho 2008

Rapsódia

1. Mais um Serralves em Festa e mais um enorme êxito. No último fim-de-semana, passaram pelos jardins e museus de Serralves mais de 82.000 pessoas, de todas as idades e condições. Passei por lá no final da tarde de Domingo e pude testemunhar um ambiente de autêntica festa. É bom ver a cidade do Porto vibrar com um espaço único que, pelo menos uma vez por ano, abre as suas portas a todos e proporciona as mais variadas manifestações artísticas, contribuindo também para fazer novos públicos.
2. A General Motors foi condenada a devolver aos cofres do Estado 18 milhões de euros, correspondentes às ajudas recebidas e que se revelaram indevidas e injustificadas com a decisão de encerrar a fábrica da Azambuja. Por uma vez, o crime não compensou e a GM, neste caso, não se vai embora a rir dos portugueses. Andou bem o Governo em accionar a multinacional de origem norte-americana.
3. O protesto dos transportadores rodoviários chegou ao fim com algumas cedências do Governo. Todavia, não cedeu no essencial: a atribuição de um preço especial de gasóleo profissional. Se o Governo cedesse nesta matéria em particular estaria a abrir uma caixa de Pandora que poderia ter graves consequências. Folgo em saber, também, que o Governo estava a preparar medidas de excepção para fazer face ao bloqueio que se fazia sentir. O país não podia ficar muito mais tempo prisioneiro de camionistas de garrafão e pastel de bacalhau, como as inenarráveis imagens televisivas mostravam.
4. Scolari vai-se embora da selecção, pois pelo visto “enganou” Abramovich, o todo-poderoso presidente russo do Chelsea. Boa viagem. Sou dos que acredita que a nossa selecção tem obtido bons resultados, apesar do treinador. As imagens que a SIC tem passado sobre as campanhas anteriores evidenciam o primarismo de Scolari. Ele que vá para Inglaterra rezar ave-marias e passar a música de Roberto Leal nos estágios que vai ver o que lhe acontece…
5. Que Raça! O Senhor Presidente inebria-nos com as suas memórias de outros tempos. Ficar-lhe-ia muito bem ter vindo reconhecer o lapso, que ninguém lhe levaria a mal. Assim, fica um não-sei-quê-de-cheiro-a-bafio que não se compreende. Saia mais uma fatia de bolo-rei.

11 junho 2008

Diário Político 86

Declaração de interesses
Conheço João Benard da Costa desde há muitos anos mas as nossas relações são mínimas. Por junto leio de vez em quando os seus artigos no Público, infelizmente sem grande constância porquanto são normalmente excelentes. Aliás ganhou há dias o prémio João Carreira Bom de crónica o que deve querer dizer alguma coisa.

Como dirigente da Cinemateca Portuguesa, o mínimo que se pode dizer é que não desmerece dos dois anteriores a quem se deve uma obra exemplar. Benárd conseguiu ser um digno sucessor e de tal modo o terá sido que quando fez setenta anos, houve um enorme coro nacional a pedir que por uma vez o Governo o mantivesse contrariando assim a regra da passagem á reforma por limite de idade. Ou seja, o pais cinéfilo e mais geralmente o pais culto, demonstraram sem ambiguidade o quanto prezam JBC.

Espanta-me por isso ler no Público um desabrido ataque ao director da Cinemateca assinado por quem durante dois anos foi seu superior. Refiro á Drª Isabel Pires de Lima, ex-ministra da Cultura cujo desempenho à frente do Ministério não queria, por mera piedade, comentar.
A ex-ministra, ora no seu papel de deputada veio defender um projecto extraordinário proveniente de um auto-intitulado Circuito Universitário de Cineclubismo do Porto que reivindica um centro de programação da cinemateca no Porto.
Comecemos por isto que é simples e devia ser sabido: Normalmente, com raríssimas excepções, apenas há uma cinemateca por país. E há apenas um organismo porquanto uma cinemateca não é exactamente um armazém de filmes mas algo mais. É igualmente um complexo laboratorial que os trata, restaura, conserve e protege; um centro de documentação; uma biblioteca e um museu. É também um centro de exibição em condições especialíssimas e um centro de intercâmbio internacional de filmes.
Por estas razões, e por muitas outras que uma simples consulta aos Estatutos da Cinemateca permite saber, é que normalmente só há uma cinemateca por país.
Aliás, no já referido intercâmbio de filmes existe normalmente, creio mesmo que sempre, uma cláusula de exibição unicamente em cinemateca. E compreende-se: o estado dos suportes exige um tratamento altamente profissional que, neste momento, não seria possível ter em qualquer sala do Porto (ou em qualquer sala de Lisboa, cinemateca exceptuada).
Portanto quando o Director da Cinemateca Portuguesa, de seu nome João Bénard da Costa, vem dizer que não pode dar mais do que apoio moral aos subscritores de uma petição de um Circuito Universitário de Cineclubismo do Porto que reclama mais exibição cinematográfica no Porto de obras anteriores a 90 , está a dizer algo que qualquer contínuo do Ministério da Cultura sabe.
A drª Isabel Pires de Lima que foi, ministra da cultura até ser despedida há um par de meses, veio alvoroçada e como “deputada” do círculo do Porto (vê-se que as eleições parlamentares já não estão longe) atacar JBC e defender algo que nunca a vi defender enquanto foi ministra. Alguém, por aí, viu alguma declaração, algum compromisso, alguma promessa, sobre um eventual pólo de programação da cinemateca no Porto, durante os anos em que Sª Exª se esforçou no ministério que detinha a tutela da cinemateca “propriedade pessoal” de Bénard? É com alguma tristeza que vejo esta senhora (que quanto ao Porto deixou cair a direcção do IPPAR na guerra com Rio... deixando o Museu Soares dos Reis encolhido junto ao túnel de Ceuta) que perdeu todas as guerras em que irreflectidamente se meteu e saiu sem glória da Ajuda) a vir agora falar sanhudamente do “autismo” de Bénard (Público, como se disse, sexta-feira, 6 de Junho, p. 51) num artigo de opinião que nem sequer um Santana Lopes assinaria.
Mas há mais: a ex-ministra resolveu falar sobre o público numeroso que há 40 e 30 anos havia no Porto. E que até alimentou dois cineclubes. É verdade que o Cineclube do Porto chegou a ter quase 3000 sócios. E que no Porto havia uma boa dúzia de grandes salas que se mantinham sem grandes problemas.
Não menos verdade é que, excepção feita, à “Cinema Novo” e ao seu “Fantasporto”, a exibição portuense está de rastos, os cineclubes vegetam e que tal facto vem de longe. Precisamente desde meados de oitenta, altura em que começou (e ainda não parou) uma quebra de público e de cineclubistas acompanhada por um afunilamento na exibição (hoje em dia não se vê praticamente outro cinema que não seja o americano) e pelo fim das grandes salas.
Paralelamente, assistiu-se à explosão do vídeo e agora dos novos suportes de tal modo que qualquer pequeno grupo que queira conhecer os clássicos pode recorrer à distribuição onde, apesar de tudo, se encontram à vontade umas larguíssimas centenas de filmes. E se for necessário sair do mercado nacional: qualquer Amazon fornece a preços quase de saldo milhares de fitas desde Griffith até Fellini, de Renoir até Dreyer. Aqui neste blog (cfr. “Farmácia de Serviço) já se deu notícia de várias belíssimas edições de filmes. E se disto falo, é apenas porque, na sua ignorância, a ex-ministra da cultura fala em cópias de filmes novos suportes a ser fornecidos pela cinemateca em colaboração com as mais diversas instituições. Não é preciso: basta ir ao mercado que uma filmoteca de qualidade organiza-se em menos de um mês e por pouco dinheiro. Olhe, só nestes últimos tempos, o Publico (como antes outros jornais) está a disponibilizar uma trintena de filmes sob a égide dos “cahiers du cinema”.
Eu não sei que mal terá o João Bénard feito à drª Pires de Lima. Será que ela não gosta do seu artigo semanal e brilhante no Público? O homem fala de coisas interessantes, mostra cultura e inteligência, duas coisas que eventualmente agastarão a senhora ex-ministra. Mas, que diabo, basta, passar à frente e não os ler, coisa que eu teria feito com o texto dela não fora o caso de em letras garrafais ter visto uma menção ao “autismo” do João e à presumivel “coragem (que falta a todos mas não a esta novel padeira de Aljubarrota) de dizer que o rei vai nu” (sic).
A drª Pires de Lima, fala já em fim de artigo na “Casa das Artes”. Para quem não saiba trata-se de uma dependência da antiga Delegação Regional de Cultura do Norte, que um triste Lopes atirou para o mato. A drª Pires de Lima foi ministra durante dois anos: que fez por este espaço, em obras, dizem, que dinamização propôs, onde estão os despachos, os estudos, os documentos, que é que aquelas casas (pois há também a casa-mãe que parece que esteve alugada não sei a quem) beneficiaram do seu esplendoroso biénio no Ministério? A nudez forte do abandono teve porventura algum fantasmático e fantasioso paninho a tapá-la?
Estamos habituados a ver este país entregue a ferrabrazes que na oposição juram fazer mil coisas. Quando por milagre injusto chegam à mesa do orçamento esvaziam-se-lhes os ímpetos e a vontade. Regressam à feliz inocência de onde nunca deveriam ter saído e zás! Ei-los que, como o sapo boi, incham a barriga e imitam o dó de peito. Mete dó!

Em nota de rodapé: A Cinemateca e a Delegação Regional do Norte programaram no Auditório Nacional Carlos Alberto, por várias vezes, ciclos de grandes cineastas em v.o. O resultado foi catastrófico: o tal público que enche a imaginação desmemoriada da drª Pires de Lima brilhou pela ausência. Se bem recordo, houve um ciclo dedicado a Murnau que teve uma média de seis espectadores. Por acaso estava lá, bem como o Henrique Costa e a Manuela Bacelar o que significa que juntos já significávamos 50% do numeroso público...
Mas continuemos: a Cinemateca Portuguesa tem um orçamento ridiculo e vive no fio da navalha. Onde é que deve JBC cortar para satisfazer o apetite saudável da juventude universitária e cineclubista do Porto?
Eu sei que alguém me viria dizer que circulou uma petição na Internet e que essa petição obteve um impressionante número de assinaturas. Assinar é a coisa mais fácil do mundo e permite passar por culto sem pagar um cêntimo. Espanta-me que esses assinantes, e há pouco estive com dois (envergonhados...), não se decidam a tornar-se sócios do que resta em matéria cineclubista. A resposta destes meus dois amigos foi que não estavam para essa chatice. Como não estão para a mesma chatice os inexistentes espectadores que abandonam dia após dia a única distribuidora que ainda trazia filmes diferentes a uma sala do Porto. Daqui a pouco, restarão nas salas pipoqueiras dos centros comerciais apenas as distribuidoras do mainstream cinematográfico americano. Onde andam os buliçosos rapazes e raparigas (ou vice-versa) do tal circuito universitário?
Mas se à juventude se perdoam estas grandiloquências reivindicativas quanto mais não seja por falta de informação, o mesmo não pode ocorrer com quem, apesar de tudo, teve responsabilidade no sector cultural. Dá a ideia que, uma vez fora do MC, a Dra Pires de Lima resolveu ajustar contas antigas ou actuais e que para o efeito arranjou um bode expiatório na pessoa de Benard da Costa que, convenhamos, nisto de cultura, e não só, poderia dar lições magistrais à senhora deputada pelo círculo do Porto.
É por estas e por outras que sou a favor dos círculos uninominais na eleição de deputados: a gente pode não voltar e com isso libertar o parlamento de algumas inutilidades.

Maio, maduro Maio 6


... Fomos testemunhas duma época
Em que daqui a cem anos ninguém acreditará
Nessa altura será compreendida a revolução nosso túmulo
E os que manipulavam o rádio

Vitezlav Nezval
(em memória de V. I. Lenin, “Pantomina”, 1924 – recolhido em Prague aux doigts de pluie, Éditeurs Francais Reunis, Paris, 1960)

Os leitores perdoarão a pequena ironia da citação que abre este texto sobre 1968 nos países do “outro lado”.
Convenhamos que, agora, é difícil compreender o panorama político e social da Polónia, da Checoslováquia e da Jugoslávia nesse longínquo ano de 68. Aliás juntar três realidades tão diferentes é um risco que se assume mas que se espera justificar. Pretende-se apenas mostrar como é que um regime mais ou menos idêntico em três países responde a reclamações que de início eram extremamente moderadas e não o punham em causa.
Comecemos pelo caso polaco.
Tudo começou pela proibição da peça “Os antepassados” de Mickiewicz, autor do século XIX, cuja peça é um manifesto contra a política czarista, numa época em que a Polónia estava ocupada pela Rússia.
A época não estava para zurzir no grande irmão mesmo que os odiados czares já só fossem passado. E não estava porque, no caso em apreço, a Polónia era governada por Gomulka, um comunista discretamente anti-russo mas suficientemente cauteloso para não permitir que no seu país se instalasse uma desordem idêntica á que grassava na vizinha Checoslováquia.
Depois, assistia-se, nos circuitos internos da inteligentsia polaca a uma ofensiva “anti-burocrática” de que a “Carta ao Partido Operário Unificado Polaco” de Kuron e Modzelewski era o mais recente exemplo.
Em termos muito gerais, a batalha que se travava nas universidades polacas tinha muito a ver com a liberdade de expressão que, estranhamente tinha feito uma breve aparição na Polónia na sequência da contestação de Bierut e na ascenção de Gomulka. Jornais tinham aparecido (por todos Po Prostu) grupos de discussão e os famosos “Conselhos Operários”. Todavia, logo que a nova situação se estabilizou, as coisas voltaram ao ritmo anterior. Po Prostu foi silenciado, os conselhos foram descritos como um desvio anarquizante e as centenas de militantes que se tinham revelado começaram a ir para a prisão.
A elaboração do manifesto de Kuron e Modzelewski, resultado iasás de múltiplas contribuições e reuniões, respondia a esse ataque ás liberdades um tempo reencontradas.
A peça de Mickiewicz, apareceu no momento errado e sobretudo a sua estreia ocorria durante o desenvolvimento do processo checo. Se se acrescentar que o ambiente económico era pouco entusiasmante, logo se percebe que estavam reunidas as condições para uma explosão universitária que para ter êxito precisaria de apoio nos meios sindicais e nas fábricas.
Algumas greves esporádicas terão entusiasmado os estudantes que ocuparam algumas universidades e saíram para a rua. Mas os operários ficaram quietos e o fogo que ameaçava consumir a nação polaca foi apagado como fogo de palha que ao fim e ao cabo foi. Em Maio o movimento estava extinto. Gomulka poderia continuar a governar reprimindo aqui, diminuindo a pressão acolá. Durou mais vinte anos.

Na Jugoslávia, país tecnicamente não enfeudado a Moscovo, com liberdades inimagináveis para os habitantes do bloco de leste (liberdade de emigrar, de viajar, de criar empresas privadas etc..., o movimento tem origem num facto sem qualquer importância: uma rixa entre estudantes e uma brigada empenhada numa “acção de trabalho”.
A milícia intervém e os estudantes apanham pela medida grande. No dia seguinte são milhares a desfilar desde a cidade universitária nos arrabaldes até ao centro de Belgrado. Nova intervenção da milícia e novos combates de rua.
A greve universitária é proclamada, as faculdades são ocupadas e o já clássico Maio repete-se aqui em Junho.
A imprensa apodera-se do assunto. Os estudantes barricados sobem o tom das suas criticas. Não é só a intervenção da milícia que é criticada mas também as insuficiências do ensino, a falta de saídas profissionais para os licenciados, a “burguesia vermelha” de Belgrado e a falta de solidariedade internacional com os Vietnam e a revolução mundial.
Do lado do poder as acusações também não faltam: partidários de Djilas, saudosos do antigo regime monárquico, trotskistas ou, inimigos da Federação!, isto é nacionalistas pequeno-burgueses.
Finalmente, quando se pensaria que a situação atingia o paroxismo e que se assistiria a uma repressão selvagem, Tito, chefe indiscutível, que forjara o seu poder na resistência aos invasores alemães e na oposição à União Soviética, intervém e salomonicamente declara encerrado o conflito: a maioria dos estudantes é sã e tem razão. A culpa dos acontecimentos é toda de uma ínfima franja de anarquistas, da falta de cuidado da polícia e da situação internacional.
A intervenção dos “irmãos de armas” comunistas na Checoslováquia e a brutalidade com que é feita perante um vago e comedido protesto ocidental, convencem estudantes contestatários e autoridades diversas a esquecer afrontas antigas e fingir que tudo vai pela melhor no melhor dos mundos. Não ia, como já Voltaire provara dois séculos antes.

E agora, a excepção: Excepção porque no caso checo não se trata de uma revolta juvenil com maior ou menor ressonância na população. Não está em causa a oposição aberta ao regime mas algo mais profundo mesmo que isso nos pareça ridículo. É de independência nacional que se fala. De facto a queda de Novotny e a relativamente longa experiência de gestão de Dubcec como dirigente comunista, não faziam prever á partida nada mais do que uma mudança de equipa forçada pelas circunstâncias.
Nunca saberemos como é que um comunista eslovaco, educado na URSS, ex-resistente e homem do aparelho chegou á conclusão que era preciso temperar o vinho velho do comunismo em uso no leste. Levar a destalinização um pouco mais longe. Bastante mais longe, se entendermos por isso pedir a intervenção das massas na condução dos negócios públicos. E permitir o escrutínio de toda a actividade do Partido pelo povo, a todo o momento. E acabar com a censura. Ou seja permitir uma informação livre, heresia absoluta num sistema que fazia do controle da informação a pedra chave da luta pelo socialismo. A segunda pedra dessa “revolução” seria, deveria ser, teria de ser, a partilha do poder entre o Partido Comunista e outras organizações.
E era disso que se tratava. A primavera desagua no verão como se sabe, e as medidas tomadas por Dubcek, a pressão da rua, a mobilização da sociedade civil, a calma severa com que tudo se passava, faziam as autoridades dos países irmãos temer pelo pior. E provavelmente seria o pior que viria. Na óptica deles, claro.
Dubceb e Svoboda por seu turno acreditavam numa evolução pacífica do regime, numa adaptação dele que não pusesse em causa a direcção do PC. E essa é uma das ironias desta história trágica. Eles eram os únicos que acreditavam numa saída pacífica para a crise. Soviéticos, polacos, húngaros, alemães e búlgaros, estão convictos do contrario. E desta vez não deixarão os camaradas soviéticos sozinhos como em 56 na Hungria. O pacto de Varsóvia que nunca serviu para atacar o inimigo ocidental teve esta única e irrepetível aplicação prática: atacou o país que pretendia ensaiar um novo modelo de socialismo e de passo perpetuar um sistema em que os seus dirigentes, ingenuamente, acreditavam. Depois disso, ser comunista no ocidente foi, digamos, muito mais difícil. Para muitos militantes de esquerda foi mesmo impossível. Por uma questão de honra, de ética e de fé no socialismo.

07 junho 2008

Estes dias que passam 112



Os ratos que rugem


Estava para deixar passar sem comentário a (agora famosa) ida de Manuel Alegre à festarola do Teatro Trindade.
Explico-me: aquilo, aquele ajuntamento sem pés e com pouca cabeça não merecia o tempo que uma pessoa leva a escrever um texto sobre o “eminente” significado político da reunião.
Bem fez o PCP que nem lhes ligou. Pudera! Com duzentas mil pessoas na rua, referir as escassas quinhentas ou seiscentas que enchiam a sala do Bairro Alto, era dar à coisa uma importância que não estava nos planos do partido e que, de facto, bem vistas as coisas, não tem.
Porém, o PS, sempre desatento e sobretudo sempre ansioso, viu na reunião um fantasma (ponhamos que, a exemplo do que escreviam Marx e Engels, há mais de cem anos, que viu o aterrador espectro do comunismo) e assustou-se, como há cem anos a boa burguesia em ascensão se assustou com a Internacional.
Teria o PS razões para se afobar ao ponto de lançar alguns dos seus “chiens de garde” (muito ladrar mas pouca ameaça) contra a presença de Alegre? Parece-me que não. A festinha era confidencial e sem o alarido inconsequente e queixoso do pobre Vitalino Canas, sem as eructações de Lello e sem a prestação ridícula de mais um par de figurinhas sensíveis, a reunião a pedir mais esquerda teria ficado no limbo das alminhas perdidas. Nisto de política só existe o que é falado.
Mas as pobres criaturas que se puseram em bicos de pés a ladrar à canela de Alegre (que chega bem para eles todos mesmo a fazer estas piruetas inconsequentes e sem sentido) não têm feeling. Pior: não têm a noção da galinhola e de política “política” e de ideário socialista estão parcamente fornecidos. Faltaram-lhes uns aninhos duros, de oposição a sério, no tempo em que isso doía e trazia consequências desagradáveis.
Ao trazer a participação de Alegre para o pretório da opinião pública portaram-se como meia dúzia de galinhas pedrês a falar das águias que voam um pouco (bastante) mais acima delas. De facto, e bem vistas as coisas, a discursata (frágil) de Alegre até ajudou. Afinal o PS é um partido múltiplo, com correntes de opinião, capaz de criticar os seus dirigentes, como se apressaram a dizer alguns socialistas mais sensatos e mais prudentes que sabem ou pensam que Alegre é um património socialista seguro e que já mostrou valer um largo par de votos.
Os patéticos acusadores de Alegre deram dimensão insuspeitada à iniciativa do Bloco, tornaram-na mesmo politicamente interessante, coisa em que, à partida, nem Louça decerto acreditava.
Criaram mais uma guerrilha tonta dentro do grupo parlamentar e dentro das estruturas centrais do PS.
Puseram o país a perguntar-se se, de facto, Alegre não teria razão em se juntar ao grupúsculo bloquista.
Tornaram mais visível a atrapalhação que reina na equipa dirigente do PS quanto à escolha de um candidato à Presidência da República, sobretudo sabendo-se, como se sabe, que há mesmo entre os mais altos hierarcas do PS, uma forte tendência para apresentar Alegre como candidato.
Finalmente, com a sua impudente precipitação, puseram em cima da mesa, aos olhos do público pagante, que somos todos nós, a questão da deriva preocupante da crise, do aumento de preços, da falta de perspectivas para se sair deste beco.
O PCP neste momento deve estar a mandar cestinhos de cerejas e outros mimos de época a estes auto-proclamados críticos de Alegre.
Disse no início, e repito, que considero esta “lança em África” de Alegre uma espadeirada na água turva. Uma asneira, dê lá por onde der. O PS, mesmo este PS, é de facto, incontornável. É uma tristeza mas é mesmo assim. Duvido que me apanhe o voto (e eu sempre votei nele) mas não é substituível pelo bloco ou pelo PC. Está cada vez mais à direita, sem dúvida, mas isso é mais resultado da vontade de acreditar em lideres carismáticos (Jesus! Logo o Sócrates!...) do que uma tendência profunda e “genética” como ora se diz a torto e a direito. O PS andou sempre a derivar entre o oportunismo contrabandeado pelo continuo assumir de um passado histórico de cento e tal anos (que além de ser medíocre do ponto de vista ideológico não teve sequer qualquer relevância do ponto de vista político) e a necessidade de se afirmar membro de pleno direito da social democracia europeia. O PS português viveu mal o conflito Soares – Zenha como vive mal com a sua bastardia maçónica. Viveu mal o conflito gerado por Manuel Serra, viveu mal a expulsão dos trotskistas do POUS, conviveu mal com os militantes trazidos por Sampaio e está demasiado agarrado a um aparelho medíocre criado à pressa nos fins de setenta e princípios de oitenta. A sua frente sindical é uma manta de retalhos, a sua jota é tão fraquinha quanto as congéneres de direita e actualmente não passa de uma agencia de empregos políticos e a sua frente autárquica pode rever-se no conflito latente que pode fazer perder a câmara de Matosinhos.
Pese a tudo isto, que é muito e é grave, só um autista é que não quer ver, o P.S. consegue ter uma vitalidade que vem justamente da mesma matriz dos seus defeitos: é feito por gente livre, com opiniões que porventura mereceria dirigentes mais interessantes e mais interessados na coisa pública, na causa da social-democracia e na auscultação da opinião pública isto é dos portugueses.
O que não merece é estas criaturas que volta e meia se tomam pelo que não são: políticos a sério.

o texto acima estava escrito e em lista de espera. Só quando o "postei" é que li o texto do meu camarada JCP. Discordo dele, como se vê mas não é, nunca seria, uma resposta ao texto dele que reflecte uma apreciação de um compagnon de route (ou militante) do PS e que milita e militou em situações bastante adversas, se é que o nome de Marco de Canaveses diz alguma coisa aos leitores. Não quereria de nenhum modo que alguém, depois de uma leitura enviesada, pensasse que JCP faz parte dos meus alvos. Bem pelo contrário, faz parte daquela massa generosa e limpa e profissional que torna o PS perdoável aos olhos dos cidadãos que, como eu, se afligem, com estes malabarismos a que assistimos.
Mas como cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a quem quer que fosse aqui se deixa este aviso á navegação.
mcr

06 junho 2008

missanga a pataco 54


De cabeça perdida

Cabeça é um modo de falar, a menos que apenas que me queira referir a uma das três antigas partes do corpo.
Mas comecemos por explicar: há no PS uma curiosa criatura, de seu nome José Lello e que é desde sempre um dos mais inúteis ornamentos daquele partido. Este cavalheiro tornou-se vagamente conhecido por, in illo tempore, ser um dos fervorosos adeptos do dr Jaime Gama, era mesmo uma espécie de cabo eleitoral do actual Presidente do Parlamento, ainda me recordo de o ver cerimonioso e serviçal a comboiar Gama numa reunião almoçante de uma coisa que se chamou “esquerda liberal” e onde estive. Fora isso, o homenzinho tornou-se conhecido porque durante um par de Natais oferecia um livro a uns políticos e o título do livrinho pretendia ser uma brincadeira com o alvo da generosidade lelliana. A coisa era mais ou menos inócua, se bem que oferecer livros assim me pareça no mínimo boçal mas gostos são gostos, e os livros são sempre úteis para equilibrar o pé cambo de uma mesa...
Fora isso, o deputado Lello terá sido vagamente secretario de Estado, coisa de que só por pecado de memória forte me lembro porquanto da sua patriótica actividade não resta qualquer fulgor.
Ora bem, foi esta criatura quem, num jornal, entendeu acusar Manuel Alegre de “parasitar o grupo parlamentar” numa reunião ocorrida nos Açores, aproveitando o poeta para lançar um livro ou seja teria viajado às custas do partido para fins eminentemente particulares.
A história é obviamente outra: Alegre lançou nos Açores um livro, encomendado pelo Governo Regional que lhe pagou as deslocações. Ao saber que ele lá estava, o presidente do grupo parlamentar, Alberto Martins convidou a Alegre para a mesa de honra das jornadas e Alegre aceitou. Este uma hora, hora e meia e depois foi ao que vinha.
Isto mesmo foi explicado por Alegre à lelliana criatura. Apanhada em falta total de veracidade, esta retorquiu que, se Alegre fora pago pelos Açores, então parasitara a reunião dos deputados. Isto mesmo depois de saber perfeitamente que Alegre fora convidado a vir até à reunião. E convidado a sentar-se na mesa principal pelo presidente do grupo parlamentar. E que quando finalmente abandonara a reunião e o jantar levara consigo vários membros da direcção parlamentar que quiseram associar-se ao lançamento do livro.
É gente deste teor que inça desde há tempos imemoriais os corredores do poder. Nada os predestinava a isso, excepto a alta ideia que têm de si próprios e a marginal utilidade que o Partido lhes reconhece para tarefas como esta que se relata aqui e que se pode ler mais desenvolvidamente na edição de sexta- feira do Público a pp 10.
Mas perguntar-se-á: a que vem este súbito acicate do ofertador de livros? Pois à falta de argumentos políticos. Incapaz de atacar Alegre politicamente, por segura falta de ideologia e competência, eis que arranja esta historieta de viagens pagas que o não são, de aproveitamento que não existiu, de “atitude muito diferente da postura ética com que (Alegre) gosta de se apresentar”.
E mesmo quando os desmentidos chovem em catadupa, desde os elementos dos Açores, até aos deputados e ao próprio Alegre, eis que Lello suicidariamente persiste virando o bico ao prego, como também se pode ler quer no Público quer junto da Lusa.
Voltemos, porém, um pouco atrás: este benfeitor do comercio livreiro por grosso tornou-se como disse, conhecido, enfim brevíssimamente conhecido, pela tal listinha de livros que oferecia ao um ramalhudo leque de personalidades. E como é que o público babado de admiração sabia disto? Pois, pelos jornais. E quem é que mandava a lista dos livrecos e dos beneficiados para os jornais?
Ele há gente que precisa de ser famoso de qualquer maneira. De todo o modo antes assim do que à maneira de Eróstato...
As consequências do incêndio é que são sempre as mesmas...

* O templo de Artémis em Éfeso.

O Senhor Vice-Presidente

Manuel Alegre é vice-presidente (da Assembleia da República) mas vive e expressa-se como se fosse o vice-presidente da República. Se o cargo existisse, Alegre faria jus a ele. Depois da sua experiência nas últimas presidenciais, em que ficou em segundo lugar, mas derrotado na primeira volta, Alegre, o quase-presidente, encontrou o seu estatuto político.
De mal com os seus companheiros de partido, no qual insiste em permanecer, Alegre decidiu agora fazer o jogo da oposição. Não discuto as suas ideias, pois é absolutamente livre de as defender. Discordo, sim, que participe e promova acções político-partidárias contrárias ao partido em que milita. Fazendo o jogo de um partido que, não há muitos dias, apresentou uma moção de censura ao partido que é suposto Alegre apoiar.
Alegre é deputado do PS desde a Constituinte e, tirando uma fugaz passagem pelo governo, aí tem desempenhado funções. Foi eleito pelos seus pares vice-presidente do parlamento, com direito e usufruto das sinecuras devidas ao cargo (terá Alegre ido para o comício organizado pelo Bloco no carro oficial? E o motorista ficou à espera?), que assim lhe deram o devido reconhecimento político. Contudo, Alegre, que discorda da política seguida pelo partido e pelo governo, falta a todas as reuniões partidárias e do grupo parlamentar, espaços privilegiados para criticar e interpelar.
Quem não tem estômago para integrar colectivos (algo) disciplinados, não deve insistir na militância. Eu assim faço. Quem está num partido, deve agir com observância de regras mínimas de solidariedade. O que não pode é aparecer no parlamento, no dia seguir a participar num comício com um partido da oposição, como se nada se tivesse passado, de óculos escuros, de perna estendida, com aquele registo próprio de alguém que faz o frete de passar por ali para assinar o ponto.

Uma Semana difícil para Sócrates

Os últimos dias não têm sido fáceis para o primeiro-ministro.

Depois de Mário Soares ter vindo a público colocar na agenda política a “crise social” veio, agora, Manuel Alegre unir a esquerda não PCP, pré-anunciando a fuga de uma fatia do eleitorado PS para a futura“União das Esquerdas”.

Na mesma semana, armadores e pescadores paralisaram as pescas; maquinistas da CP instalaram o caos na circulação ferroviária; motoristas dos transportes de mercadorias ameaçam paralisar cidades (a começar pelo Porto); a CNA anuncia uma eventual ida em massa até Lisboa; a CGTP junta mais de 200 mil manifestantes em Lisboa, a protestar contra a governação.

Como se isto não bastasse o Banco Central Europeu acaba de anunciar a subida da Euribor; o INE anuncia a forte
subida do desemprego nos últimos anos e as sondagens, referentes ao mês de Maio, colocam o Primeiro-Ministro em queda vertiginosa.

Com as movimentações em curso, com o progressivo agravamento dos preços (habitação, combustíveis, alimentação, saúde), Sócrates tem razões de sobra para começar a pensar: “como vou dar a volta a isto?”. É que as sondagens de Junho não se anunciam promissoras…