De tudo, de nada, da vida e dos amigos
Este Outono está a dar cabo de mim. Demasiado doce, o dia de hoje então foi um espanto, demasiado carregado de comoções, como se não bastassem os figos maduros, as castanhas (que já se vendem por aí!...) o regresso de férias, o reavivar das rotinas interrompidas pelo verão.
Ora pratiquemos: então os mercados já se não corrigem a si próprios? Então a barracada das hipotecas dos subprimes que os pariu e mais uma série de truques especulativos iam dando com tudo isto em terra? Afinal o tal mercado que se auto-regula foi pelo cano? E a América (a verdadeira, a da Bayer, a dos grandes bancos, de Wall Street, do Bush...) põe-se de repente a adoptar medidas de um intervencionismo feroz, injecta biliões e biliões no mercado, ampara os bancos em risco, as seguradoras na falência como se isto fosse um paraíso socialista? Bush, ontem, parecia o Lenine a fazer a apologia da NEP, a famosa Nova Economia Política, que era a negação do bolchevismo puro e duro que ia mandando para o outro mundo algumas dezenas de milhões de pessoas que pura e simplesmente morriam de fome (para não falar dos outros milhões que morreram mesmo, convém dizê-lo, mesmo que isto soe a politicamente incorrecto.
O tovaritch Bush veio agora com falinhas mansas avisar que não podia deixar o mercado regular-se prometendo mesmo mais dinheiro se necessário fosse para parar a hemorragia e a queda da bolsa. Assim, sem mais nem menos. Só depois dele é que os ingleses de Brown, que é suposto ser socialista, se começaram a mexer.
Que diz disto o capitalismo indígena e os seus apóstolos (quase todos ex-esquerdistas radicais (que há muito viram não só a luz, na estrada de Damasco, mas também as prebendas que um oportuno volte-face lhes poderia proporcionar)?
Lembremos, com um piedoso sorriso que estes rapazolas eram mais papistas que o papa, mais liberais que o senhor Joe Berardo. E agora?
Recordemos também o senhor ministro da Economia que resolveu de repente ameaçar as petrolíferas. Irá nacionalizá-las? Irá impor preços máximos e mínimos?
E a Câmara Municipal do Porto que também ela de repente viu a luz (estou a repetir-me, já sei, mas a verdade é que me faltam palavras para definir a reviravolta no negocio do Mercado do Bolhão). Ainda há dias se ouvia dizer que os contestatários do projecto do Bolhão eram uns tontos (in)úteis e afinal agora já não são...
E o deputado senhor José Lello que também repentinamente descobriu que o ex-maoista Pedro Baptista é um esquerdista? Por onde andaria Sª Exª nestes últimos anos para só agora descobrir um perigoso radical na pele do cordeiro Baptista. Eu bem sei que o deputado José Lello é só isso, um deputado eterno que jamais terá frequentado qualquer esquerda (Deus o livre de tão feio pecado!) e que nunca terá tido a tentação de discorrer politicamente. A política é uma maçada e a ideologia pior ainda. Todavia, subitamente descobre o passado, morto e enterrado do ex-dirigente do Grito do Povo (enfim mais queixume do que grito que aquilo durou o que durou. Ou seja o tempo de um foguete de lágrimas, mas enfim há-de ter arrepiado as carnes tenras do deputado Lello que terá visto neste Pedro tão Baptista um similar do Pierrot le fou, o verdadeiro e não o de Godard, entenda-se, o mau, o que matava e não a personagem desempenhada por Jean Paul Belmondo).
A propósito (isto hoje vai ser assim, às voltas e reviravoltas, quem quiser seguir-me que ponha o cinto de segurança que nem eu mesmo sei o que vem a seguir) há por aí alguém que tendo visto o filme se lembre da maravilhosa Anna Karina, a actriz que chamava Pierrot ao “Ferdinand” e que tinha uma linha de anca, e outra da sorte (linhe d’anche ligne de chance como rezava a canção) ?
A Ana Karina era apenas uma lindíssima actriz que nunca se terá metido em política ao contrario dessa nova Egéria americana, a senhora Palin que há dias dizia com uma candura brutal que a Geórgia deveria estar na NATO. E que se já estivesse, os Estados Unidos deveriam tê-la defendido de armas na mão, mesmo que isso significasse uma guerra nuclear. Aliás percebia-se que mesmo sem a Geórgia estar na aliança deveria ter havido uma reacção mais musculada... Ora aqui está uma mulher “de armas tomar”. Mc Cain que se cuide.
E um bom exemplo para o acima nomeado deputado Lello que julgo lembrar ter sido um grande defensor da NATO. Há socialistas assim: vermelhos por fora mas verdinhos por dentro. Enfim, passemos adiante, que a criatura já teve o seu minuto de glória literária.
E que dizer do arranque do ano lectivo? O governo em peso nas escolas a dar diplomas aos melhores, e um cheque aos melhores dos melhores? Por mim, não faço reparos de maior. Ainda bem que as criaturas se lembraram do mérito, mesmo que isso pareça incongruente, com o abaixamento dos critérios de selecção, com a queda do rigor mínimo nas provas de avaliação, com o facilitismo de que aqui já se falou. Claro que teria gostado de ouvir que essas aberrantes práticas de “passar” à força as criancinhas que não estudam para gáudio de pais irresponsáveis, de educadores do eduquês e da senhora ministra da educação (cujo curriculum acabo de conhecer e que nem me surpreendeu, já esperava algo parecido, parvos fomos nós que suámos as estopinhas para obter uma licenciatura, uma miserável licenciatura em mais tempo do que o doutoramento da excelente senhora...) irão ser abolidas e que a escola voltará a ser o que em teoria deveria ser: um sítio onde a par do ler escrever e contar se ensina a ser cidadão responsável e livre.
Mas o espectáculo da entrega de diplomas desagradou aos sindicatos não por ser espectáculo mas por ser a apologia dos tais diplomas. Mal vamos, senhores sindicalistas, mal vamos se se tira a seriedade ao trabalho e ao mérito. A escola deveria ser meritocrática em vez de ser uma rasoira onde a mediocridade corre sérios riscos de triunfar. Sócrates será ridículo a fazer a apologia do mérito escolar (logo ele com o seu inglês técnico e restantes trapalhadas...) mas o princípio é salutar. Juízo, dr. Nogueira, juízo e cabeça fria.
E as eleições angolanas? Houve por aí uns comentadores apressados, recém-democratas que se apressaram a saudar os oitenta e muitos por cento de votos no partido MPLA/PT. Ia dizer partido único mas a Unita arrecadou umas migalhas e os restantes dez, vinte ou trinta partidos ficaram a chuchar no dedo.
Oitenta e tal por cento cheira muito a “democracia popular”, convenhamos. Deve ter sido por isso que os “órfãos de Estaline” deliraram com o resultado e se apressaram a passar um atestado de democracia ao partido no poder. O cheiro do petróleo e avalanche de votos endoida quem quer ser tonto. Que lhes preste. Convém dizer que não tenho a menor simpatia pelo segundo partido mais votado, a Unita, nem agora, nem antes. Deixo esses amores pouco exaltantes para o dr João Soares que terá visto em Savimbi um Mandela mais gordo e a falar português. Todavia, não posso deixar de me comover com as centenas de milhares de mortos das guerras civis angolanas, das guerras incivis angolanas, dos massacres de Luanda e de tantas outra terras. E algum direito tenho, quanto mais não seja porque fui amigo de alguns dos mortos, de muitos dos presos, de tantos exilados de ontem e de hoje. E mais outro escasso direito terei, por, nas palavras sempre certeiras de um relatório da PIDE, ter em algum momento da minha longínqua e desvairada mocidade sido apoiante activo da ideia de liberdade para a África dita portuguesa. Isto num tempo em que não era certa nem segura a orientação do principal partido de oposição a Salazar no tocante a participar ou não na “guerra colonial”. Fiquemo-nos por aqui porque mais seria levar a sério quer os órfãos do Zé dos bigodes quer as viúvas de Savimbi.
Os tribunais andam a dar cabo da vida aos juízes. Pedroso arrecada uma gorda maquia por quatro meses de prisão e opróbio. Ao ler a sentença fica-se com a sensação desagradável que anda por aí muito magistrado que deveria voltar aos bancos da faculdade, se é que a faculdade pode incutir prudência e bom senso (nem sempre incute, basta ler alguns dos seus mais excelsos produtos...)
Pinto da Costa ainda ganhou mais: por três horas de prisão absurda, leva 20.000 euros. O que dá cerca de 6.600 por hora. Ou seja, em boas contas de antigamente quase mil e quatrocentos contos de reis. Porra! Não há por aí um magistrado que me queira prender?
Mas Pinto da Costa não fica por aqui. Ganhou também, e definitivamente, no Tribunal Arbitral. E convenhamos que também aí o caso não parecia difícil. De que justiça desportiva poderemos falar depois destas sentenças arrasadoras?
Para cúmulo, ganhou o jogo de entrada na champions enquanto o resto dos clubes portugas (excepção feita ao Braga) fez a figura que se sabe.
Eu sou da Naval 1º de Maio e não tenho nenhuma simpatia pelos clubes do Norte (nem pelos do sul, diga-se) mas sou obrigado a rir-me do inútil gesticular dessa gentinha e a reconhecer que o FCP é o único com alguma credibilidade europeia. O resto é o que se vê. Ou que se vai ver daqui a pouco: fogo de palha verde.
Camaradas de blogue fizeram-me chegar reparos pela minha ausência na semana que finda. E inquietavam-se simpaticamente: o gajo estará doente? Nada disso, o gajo está são como um pêro mas andou por aí a fazer nem ele sabe bem o quê, preguiçou, espreguiçou-se, andou nos alfarrabistas a descobrir livros excelentes de que falará, foi a Lisboa assistir ao lançamento do álbum do filme “Le Passeur” em que, como saberão, contracena com outro incursionista, o Manel Simas (sem esquecer a Laurinda Alves e o Zé Teixeira Gomes), esteve com amigos, vai amanhã para uma reunião de curso em Coimbra, ver amigos e colegas tão velhos e jarretas como ele, beberá moderadamente, falará imoderadamente, comover-se-á, lembrará amigos que já não estão, o Zé Rita, o Aníbal Belo e tantos outros, puta de vida, estão a dizimar-nos e nós a assobiar para o lado, é pá estás na mesma, enfim quase, claro que não estamos, estamos mais velhos, mais gordos, mais sensíveis, menos indignados, com menos cabelo ou com o mesmo mas muito, muito branco, que se lixe, estamos vivos, estamos vivos, estamos vivos e por uns escassos momentos seremos os mesmos que há décadas descobríamos maravilhados e intimidados a liberdade, a universidade e a camaradagem que nos faz, apesar de tudo, voltar a estar juntos.
A CG não quer ir: para jarretas basto eu, e um bando de gajos como eu deve parecer-lhe uma viagem à pedra lascada. Tem razão. Mas eu vou. Com a idade que já tenho, o meu pai já não pode ir à reunião do seu curso. Morrera entretanto. Logo ele que era um coimbrinha radical. Também é por ele que vou. E pelos colegas dele: já só restam três ou quatro, todos com mais de noventa anos, é duvidoso que ainda reúnam. Lá irei ao Penedo ver se por lá está a placa da ultima reunião deles. Se fosse religioso iria à capela da universidade. Não o sendo, restam-me o Penedo e as ruas antigas de Coimbra e a recordação amável de alguns professores (Orlando de Carvalho, Ferrer Correia, Mota Pinto, Teixeira Ribeiro, todos de Direito e Paulo Quintela, Luís de Albuquerque, Joaquim Namorado, Fernandes Martins entre muitos que me aturaram as ousadias juvenis, me educaram, me ensinaram e são exemplos de cidadania e saber.)
No fundo, tive sorte, muita sorte. Mas também fiz por isso...
*Na foto Anna Karina