31 março 2007

Au Bonheur des Dames 56


Olhando para longe, melancolicamente

É uma quase do citação do Osborne, este título, ponhamos uma cópia indecente mas, como dizia o Manuel Sousa Pereira quando um professor das Belas Artes achava que ele modelava muito á Brancusi, copiar por copiar antes os grandes mestres, não acha professor?
O título é, pois, tomado de empréstimo mas a melancolia essa é mesmo minha, própria, antiga, recidivante (ou recidivista, sei lá como é que isto se diz, sente-se e já é suficientemente difícil, portanto não vale a pena começar a ver se a palavra existe) que aparece mansamente, de quando em quando, sem data certa.
Hoje foi assim: o João Vasconcelos Costa anda a pôr em dia os velhos discos revolucionários e manda a um grupo de amigos alguns dos resultados em curtas gravações. Eu propus-me mandar-lhe umas coisas italianas “ci ragiono, ci canto”, um espectáculo cantado sob a batuta do Dário Fo e, na passada, uma cópia de uns “canti rivoluzionari italiani” que me pus a passar de LP para CD, uma aventura! E foram estes os culpados deste meu estado de alma ou de desalma.
O dia até tinha corrido bem. Fui ler os jornais para o molhe, quase deserto, pude escolher a mesa, não havia ninguém em frente a tapar-me o mar e a rebentação, o dia tinha sol suficiente e entre mim e as ondas havia uma poalha finíssima, talvez as últimas lágrimas da chuva da noite a evaporar-se, ou espuma trazida por uma brisa amável, sei lá, uma perfeição. Depois, a CG mandou a Ana telefonar prevenindo que estava numa orgiástica sessão de cabeleireiro que ameaçava demorar. Almocei sozinho numa casa de pasto simpática onde caímos quase todos os sábados. E comi as primeiras sardinhas do ano. Sardinhas em Março! E estavam boas, ó lá se estavam, claro que não são as do fim do Verão mas comiam-se muito bem. E eu sou de uma terra sardinheira, fui desmamado a sardinhas, linguados, robalos e outras maravilhas de Deus, não me deixo enganar sem mais nem menos, pelo que, acreditem, estas sardinhas de 31 de Março, Março marçagão, de manhã sol de verão, de tarde cara de cão, estavam excelentes.
E a meio da tarde munido de uma chaleira de chá meti-me na árdua tarefa de gravar. E de repente, ao som de La Lega a melancolia entrou sem pedir licença. Foi, tenho a certeza, quando li na capa do disco “Verão de 75, Milão”...
E vieram ao de cima, as imagens de um curso de direito do trabalho comparado, em Ljubljana e Trieste e mais uns dias de empréstimo em Arezzo em casa da Carlotta que eu conhecera anos antes em Berlin, no Goethe Institut. Uma italiana bonita e cheia de genica, muito do “pottere operaio”. A Carlotta e eu tínhamos trocado direcções nesse longínquo 71 mas nenhum de nós se lembrara do outro até Março de 75, quando recebo, via tia Néné, uma carta a perguntar o que é que se passava. Respondi num italiano mascavado com a ajuda de uma amiga do Instituto italiano que ao telefone me soletrava as palavras de que precisava, e a verdade é que lá fomos mantendo uma correspondência periclitante até à minha ida para Itália. Quando desembarquei em Milão, a caminho de Trieste, a Carlotta lá estava com um par de amigos e almoçámos numa trattoria que ainda hoje recordo. Foi a primeira vez que comi um risotto milanês e isso fez com que passasse a respeitar e a gostar da cidade dos Sforza.
No regresso, parei em Arezzo e demos umas voltas pelas pequenas cidades toscanas antes de rumar a Milão. Quando me dispunha a embarcar, a rapaziada da Alititalia entrou em greve e à conta disso estive mais três dias em Milão com a Carlotta que foi uma guia excepcional e me apresentou a uma fornada de tranquilos revolucionários italianos ligados ao pottere operaio. Naquele tempo, este grupo, antes radical, já tinha sido ultrapassado pelas Brigate rosse, Prima Línea, Stella rossa e não sei quantos mais. Com eles segui consternado boa parte do verão violento em Portugal: os jornais italianos traziam títulos deste género: “Portogallo colonnello falce e martello”. A Itália começava a parecer-me um excelente sítio para ficar mais uns tempos, que eu, das tontices de 75 já estava mais que farto. E trinta e tal anos depois o dr Salazar ganha uma votação merdosa na televisão ao dr Cunhal subitamente travestido em nº 2 do seu inimigo mais tenaz. (E note-se que já aqui, neste blog escrevi que do século XX português passavam à história Salazar, Cunhal, Soares e... Afonso Costa se entretanto se desfizesse a nuvem histórica que paira e amaldiçoa a aventura da 1ª Republica). Portanto, estávamos em 75, na Itália, em Milão, à custa da greve.
E foi isso tudo que me desabou em cima á segunda xícara de chá. Um rosto oval, uns olhos claros, pensativos, a loja dos discos, as explanadas generosas de Milão, as trattorie baratas, um concerto inolvidável e eu a decidir regressar à pátria madrasta malgrado as notícias dos jornais de esquerda italianos que falavam em pré guerra civil. Que se lixe, terei dito ou pensado, vou ver o que se passa e se as coisas estiverem mesmo beras, ala que se faz tarde, fronteira de Melgaço e pernas para que te quero. É claro que este “discorso” foi amplamente debatido com a Carlotta e o resto dos compagni italianos em noitadas monumentais em casa de A e de B, muito cigarro, bastante vinho e eu meio apaixonado. O dever chama-me, pensei ou disse, um tipo em estado de graça diz burrices infames, ou nem isso. Claro, ter-me-ão apoiado, de resto já sabes, tens cá uma casa e amigos.
Mas isto, leitora gentil que até aqui chegaste, isto, é chuva de Verão, mesmo que seja Março ainda, e a verdade é que a terra natal tem visgo, e eu regressei com um disco debaixo do braço, perdendo aliás dois voos, um de Barcelona a Madrid e outro de Madrid a Lisboa. Duas semanas depois estava a caminho de Madrid para mais um curso, desta vez sobre instituições europeias, outro longo mês e meio fora, e novamente a ideia que, depois de anos a aturar um regime cadaveroso, valia a pena ver como a ele se regressava por excessos revolucionários. Ficaram assim para trás Arezzo e a Carlotta, ficou mais um bocado de mim perdido entre a Toscânia e a Úmbria, e ficou também esta visita ao som do “ si ben che siamo donne/ paura non abbiamo...” que resiste a tudo, mesmo ao exorcismo de um litro de chá bebido devagar, sentado no chão com uma “furtiva lágrima” a correr por uma face que já viu melhores dias, madame nostalgie, “madame nostalgie... avec vos yeux de brume ...tes douceatres litanies” ...pourquoi me parlez vous de l’Italie?
E é com esta modificação à bela canção de Reggiani que vos deixam

mcr e a sua solitude.

na gravura "Melancolia" de Chirico

Notas soltas

1. Num dos últimos dias de exibição, fui a Serralves visitar a exposição “Anos 80: uma topologia”. Confesso alguma desilusão com a mostra, sobretudo por acreditar que os anos 80, afinal os anos da minha maioridade, deram ao mundo e à arte muito mais do que aquilo que a exposição de Serralves nos mostrava.

2. Comemorámos os 50 anos do Tratado de Roma, génese da União Europeia que hoje temos e a que já não podemos, nós portugueses, nós europeus, renunciar. Homenageando o passado, há que olhar para esta Europa com uma visão de futuro, integradora de todas as suas realidades e valências. É essa Europa multicultural que vale a pena construir, sobretudo se pensarmos a uma escala global.

3. Nas comemorações dos 50 anos, o “Expresso” publicou duas entrevistas com Durão Barroso e Jacques Delors, personalidades de dimensão desigual. Na sua entrevista, Durão Barroso resguarda-se nas citações de Umberto Eco, Averróis, Maimónides, Sloterdijk, Denis de Rougemont, Nilkas Luhmann, Ortega y Gasset e Paul-Henri Spaak. Ufa! Tanto conhecimento esmaga o comum dos europeus…

4. Parece que terminou um concurso na RTP e que vai por aí grande alarido sobre o desfecho final. Acho que vou ali ao quiosque comprar uma dessas inúmeras revistas da TV ou do social para saber mais sobre o vencedor. Será que foi outro Zé Maria?

30 março 2007

Expediente 3



"amigos em revista"*
Hoje vou falar um pouco dos outros, ou de outros, para ser mais preciso. De leitores e colegas bloguistas, de acontecidos por este mundo fora que bem preciso de tratar de coisas interessantes para me lavar a alma e os olhos e não ter de me azoar com labruscos e fulustrecos numa laruça sem fim nem remédio. Antes de prosseguir convém dizer que estou a usar palavras portuguesíssimas da costa, que andam por aí esquecidas de todos nós, cada vez mais dados a uma fala básica, insípida inodora e incolor. Então é assim azoar quer dizer enfadar-se, labrusco significa tolo, fulustreco, pessoa insignificante e laruça discussão, briga de palavras.
E isto vai como homenagem à minha querida Sílvia (alô, alô, Sílvia, um beijao!) e ao Forjaz de Sampaio, portuga emigrado na Bélgica, depois de ter corrido meia Europa e, ao que sei, um regimento de mulheres bonitas e estrangeiras a quem o parlapié daquele pássaro bisnau endoidou. Ora o FS (assim mesmo em sigla) parece que anima um curso de português para estrangeiros ou algo semelhante. E vai daí dá-lhes como leitura os meus textos (coitados dos estranjas!) e depois vê-se e deseja-se para lhes explicar o significado de algumas palavras que uso. E eu, com a idade, com uma vaga sandice que me vem de longe, com o toque anarquista que foi o que de melhor me ficou de algumas leituras extravagantes e/ou bizarras (e já iremos a esta palavra...) e com a absoluta falta de disciplina que a minha parca experiência de “mocidade portuguesa” me deixou (nunca passei de chefe de quina e isso mesmo só durou uns parcos meses...), sirvo-me da língua pátria como quem vai à lota de Buarcos (que já não há, raios partam a sorte macaca!). Ou seja, uso, abuso, torço, invento, enfim dou tratos de polé à língua de Camões. Os pobres leitores e as fosforecentes leitoras é que têm de se aguentar no balanço. Toma lá que amanhã há mais!
Portanto FS amigo, quando não souberes apita que “este outeiro é mais fácil de descer do que subir”. E a propósito "como vai essa bizarria? (ah, ah, ah: bizarria também quer dizer garbo, boa postura, viste?)
Púnhamos em 3º lugar, nesta saudação a amigos, a Maria João, minha ex-mulher que, surpresa das surpresas, e agradável!, consegue ler-me. Manda-me um mail a falar na Helma Sanders-Brahms, cineasta e realizadora do “Alemanha, mãe pálida”. ‘brigadinhos!, Joanica Puff, mas eu referia mais os livros (suponho que dela) qe correm com este título na internet. É que fui por uma referência ao Brecht e nada! Raspas de raspas! Que diabo a expressão foi inventada por ele! Mas a internet é mesmo assim.
A propósito: vai sair um livrinho chamado “Histórias do Senhor Keuner”. O autor é, outra vez, arre!, o Brecht. Compem-me esse livro, pelas alminhas! Comprem que é leitura da melhor. Ai, Berlin nos idos de 70 e as histórias do Keuner em alemão e a malta do Grundstuffe 1 a traduzir aquilo dificultosamente. Mas depois que sensação! Comprem, pois o livro e ofereçam-no a vocês mesmos como amêndoas de Páscoa.
Em quarto lugar perfila-se a sombra de um fantasma felizmente vivo, o António Horta Pinto, meu velho amigo do Mandarim, da Brasileira e ocasionalmente da Faculdade de Direito. Leitor atentíssimo muitos livros que hoje me são de cabeceira foram por ele sugeridos. Estou a vê-lo, numa mesa da Brasileira, sempre do lado esquerdo (o nosso lado) meão de estatura, enxuto de carnes, uns óculos enormes e se mal não recordo, uma barba à passa piolho. De repente deixámos de o ver: o “hortinha” tinha-se pirado para as franças e araganças cumprindo galhardamente o seu serviço militar em terras menos propensas a matar pretinhos. Cavou, sem dizer água vai, com a discrição que o caracterizava e que se espelhava num sorriso, melhor num meio sorriso entre o irónico e o melancólico. Que bom ter novas dele!
E já agora, se o apanharem, comprem “Um homem sorri à morte com meia cara”, um belo livro de José Rodrigues Miguéis, outro autor que os subscritores da carta à Seara Nova aí de baixo, terão começado a ler por essa época ( o belo Leah e outras histórias revelou-me este açoriano emigrado, porra de destino!, escritor tão esquecido e tão bom). Ora aqui está como o Horta dá passagem a um autor de grande talento.
Finalmente salte para o tablado o João Vasconcelos Costa, um tipo das arábias, cientista do melhor que se produziu em terras lusitanas, colega de curso do meu irmão e dele testemunha abonatória num vergonhoso e infame julgamento político. O João agora bloga que bloga furiosamente. Tem dois blogs em grande actividade:
meubloconotas.blogspot.com e gosto-comer.blogspot.com. Lê-los é, além de uma delícia, um dever cívico. No primeiro o João arreia no que vai vendo de esguelha neste pais que precisa de ir ao endireita. No segundo, os leitores que não estão a fazer dieta aprenderão coisas de pasmar, comer e chorar por mais. O raio do homem sabe de gastronomia que se farta. Ler uma receita de cozido à portuguesa dele é um desespero para quem, como eu, tinha a mania de saber fazer um verdadeiro cozido. De capitão passei a soldado raso e a cumprir serviço em Penamacor se aquilo ainda é castigo como dantes.
O João nestes últimos dias meteu-se amável e alegremente comigo mas a verdade é que agora, e só para um círculo de fieis, anda a enviar velhos cantos revolucionários. Agorinha mesmo chegaram por mail, mais quatro raridades a começar pelo canto a Thaelmann até ao hino da sexta division, guerra de Espanha, creio que ainda os não ouvi. Ele devia era pô-los no blog para toda a comunidade os poder apreciar. Quem não gostar, assobia para o lado, canta o Hino da Mocidade ou o Angola é nossa e que lhe preste.
Este texto chegou até aqui e aqui se fica. É que não me apetece falar no concurso da rtp que os pariu a todos sobre o português mais ilustre e muito menos da chatinagem à volta das empresas municipais. De facto o barulho à volta da funçanata pública parece feito de propósito para esconder esta vergonha escandalosa em que o favorecimento de amigos e camaradas (para não falar no próprio) assume foros escabrosos.
Chatim: o que faz comércio pouco honesto. Era insulto noutros tempos...
Este é 3º número da minha série “expediente”, dedicada a gente que respeito e prezo. Em querendo é só carregar no marcador ou etiqueta e logo aparecem os anteriores.
A gravura é uma homenagem ao Horta Pinto e à sua “tropa” em França ou lá onde esteve exilado.

* o título deste texto é obviamente uma citação de Alexandre O'Neil

Petas e Tretas




o poster-fotografia e o subsequente consequente

post

no bibliófilo politicamente iconoclasta

Almocreve das Petas



29 março 2007

missanga a pataco 8



As coincidências...(42 anos depois!)

O Público dava a conhecer há dias a miserável espionagem de que Torga foi alvo. Alguma vez contarei outras mas para já vai esta que é fresquíssima.
Manda-me o António Horta Pinto, advogado em Coimbra e velho, velhíssimo amigo e companheiro, a fotocópia de um documento constante no seu processo político que retrata bem como uma alegre brincadeira de um grupo de estudantes não escapou aos olhos vigilantes dos amigalhaços do "maior português de sempre". E de como o discurso sério de um deputado da União Nacional não mereceu honras de publicação na "Seara Nova".Ei-lo:

-6 Ind.
Coimbra, 27/3/965
Exmos Senhores
Vimos, cordialmente, chamar a v/ atenção , tendente à publicação na secção “Factos e documentos” deste saboroso e carnudo naco de prosa parlamentar, constante do Jornal de Notícias de 26/3/965, que junto enviamos.
Agradecendo a publicação (para gáudio dos leitores) no próximo número, somos, respeitosamente, grupo de estudantes universitários, e assinantes
José de Sousa Quitério
José Mendes Gomes
António Horta Pinto
José Guilherme Stuart d’Almeida Coutinho
Marcelo Correia Ribeiro
À redacção da revista Seara Nova
.................
De
Café Mandarim
Praça da República
Coimbra

Trata-se do texto do discurso proferido na assembleia Nacional pelo Deputado Dr António Marques Fernandes, em Março de 1965, através do qual enaltece as qualidades dos comunistas.

No verso
PIDE/DGS
Proc CLI (2) 18565
NT 7818

Notas: dois dos subscritores já cá não andam. José Gomes foi um talentoso actor de teatro e de televisão. José Coutinho (monárquico e democrata) morreu faz muitos anos mas deixou nos amigos uma recordação terna de um homem angustiado, bom leitor, bon vivant e bom bebedor. Ao Zé Quitério e ao Horta dois abraços do tamanho do mundo.


A negrito:os comentários da pide e os números de ordem do processo.

Na Cozinha dos Artistas



(autor: Saskia Bremer)


Um LIVRO e uma EXPOSIÇÃO
inaugura no dia 30 de Março
(Almancil, Algarve)


“Na Cozinha dos Artistas”, 40 artistas, portugueses e estrangeiros, todos dotados de uma personalidade artística distinta e de uma linguagem singular, responderam ao convite do Centro Cultural revelando a sua receita preferida.
Para ilustrar esta receita aceitaram realizar uma obra de arte fora do seu contexto de trabalho habitual, uma obra que seria relacionada à arte culinária, destinada a ser reproduzida no livro e exposta nas salas do Centro.
O resultado é uma compilação heterogénia de receitas e obras. Daí o seu interesse e a sua originalidade. Além de divulgar uma receita e uma obra de cada artista, o livro permite um olhar discreto-indiscreto na cozinha destes, mostrando-os a trabalhar com a panela e a colher em vez do pincel e do lápis.
O livro, repleto de cores e de imagens, é editado em três línguas: Português, Inglês e Alemão. Tem um prefácio de Gigi, homem conhecido nos meios gastronómicos Algarvios e sobretudo, amigo dos artistas e do Centro.»

Pode ver algumas das obras em exposição (algumas de autores consagrados, nacionais e estrangeiros) aqui.


«Sobre cães e donos realmente perigosos»


Lido no blawg InDex

(faço copy paste do post mas não deixem de visitar o blog, um opinar diferente e uma POESIA que merece divulgação)

«A recente morte de uma mulher, provocada por quatro cães (de raça supostamente perigosa), vem renovar a justificada polémica sobre a responsabilidade dos seus donos.

A previsão de uma tal responsabilidade - pelos danos causados por animais - encontra-se estabelecida, desde há muito, no âmbito da teoria juscivilística.
É, no entanto, rara - se não mesmo inexistente -, a efectivação de uma tal responsabilidade no plano criminal.
A nossa jurisprudência, que se acomodou a esquemas mentais de funcionamento pré-estabelecidos, tem uma insuperável dificuldade em admitir que a flagrante violação de normas regulamentares de cuidado e protecção de interesses supra-individuais (como as consagradas no Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro) possa integrar, ao menos, a figura da actuação por negligência.
Ao menos, que a dorida morte imprevista de uma mulher, à mercê de quatro cães, tenha tido a virtualidade de fazer inflectir uma tal atitude.

É que, ao lado de um animal potencialmente perigoso, está quase sempre um dono realmente perigoso.»

28 março 2007

Estes dias que passam 52


Deutschland bleiche Mutter


Desculpem lá o título em arrevesado alemão, quer apenas dizer “Alemanha mãe pálida” e é obviamente de Brecht. Ou melhor não tão obviamente porque um leitor amigo perguntou-me se isto não era de um poema (É, claro que é... e de Brecht) porque, dizia, numa consulta á internet só lhe saía uma senhora que fez um filme com este nome. E que até havia livros com este nome. É provável mas se os há, não conheço, espero que expliquem, muito explicadinho que é uma “citação”.
Aproveito pois a boleia desse leitor suspicaz (adoro esta palavra, sobretudo porque o dicionário do computador a repele por errada. Errado estás tu ó dicionário de meia tigela!) e "pranto" um título à crónica, que isto de arranjar título que se veja não é coisa de somenos (desta vez o computador não estranhou; está a civilizar-se!) Eu suo as estopinhas para arranjar um título se, acaso, ao começar a dedilhar o teclado ainda o não tenho. É que um título é como um muro em volta da crónica, não a deixa arrebitar cachimbo nem fugir à ordem do dia. Quando ainda não há título é uma desbunda: a prosa vai e vem como as ondas do mar de Vigo onde eu já não tenho velidas e muito menos veleidades. Quando lá vou é por livros e por marisco e tapas! Ai a velhice é uma chatice das antigas!
Bem, vamos ao que importa e que é a libertação de Brigitte Mohnhaupt, ao fim de 25 anos de cadeia. Cadeia mais que justa convém dizer que a rapariga não tinha frio nos olhos quando se tratava de assassinar um inimigo de classe. A graça disto tudo, se isto pode ter graça!, é que a Rote Armée Fraktion (fracção do Exército Vermelho, grupo Baader-Meinhof...) foi constituída fundamentalmente por jovens vindos da burguesia alemã, e da burguesia acomodada. Nunca conseguiram penetrar nos meios operários da antiga República Federal e não creio que os de Leste os tivessem por revolucionários. Mesmo se, em algum momento, lhes deram guarida. A RAF produziu uma literatura confusa e nunca foi perceptível um programa político para a Alemanha de que eles não gostavam. Sei que não é bonito dizer coisas destas de gente da minha geração mas faço já aqui a minha “declaração de interesses”, como parece ser moda: a RAF, a Action Directe (em França), os GRAPO (Espanha), a ETA e as Brigadas italianas (e similares que nisto a Itália exagera sempre) nunca foram da minha simpatia. Nunca lhes compreendi a acção, a falta de perspectiva, a arrogância intelectual de quem dá lições ao proletariado, como se já não tivessem bastado o finado e mumificado Vladimir Illitch e réplicas múltiplas que criaram a famosa teoria do “partido revolucionário de quadros profissionalizados”. E digo isto sem amargura. A época era outra e eles não tinham antecedentes nessa entrada numa vida monástica e rarefeita à base de revolução, linha justa, cisão, expulsão e critica destemperada a todo o bicho careta que tivesse um pelo fora do sítio. É claro que deram com os burrinhos na água e agora vai-se por ela, pela Revolução, e sai-nos um regime que criou igualdade por baixo, enxovias (outra de que o computador não gosta!) aos milhares, atraso económico e reacção generalizada. Não é em vão que na Polónia governa quem governa e que nos “Länder” do antigo leste alemão haja tanta receptividade ao nacionalismo mais torpe.
Mas voltemos à libertação da quase sexagenária Birgitte. Parece que causou muita celeuma a sua libertação. Que ela não tinha pedido desculpa; que ela ia voltar à mesma vida gangsterizada; que era uma vergonha libertar a criatura condenada a cinco prisões perpétuas (é obra: cinco perpétuas! O melhor é ser gato que assim ainda pode permitir-se pensar que lhe sobram duas vidas!). Tudo isto me faz sentir nojo, desculpem lá... É que eu venho de um país de brandos costumes, e como tal penso que vinte cinco anos é suficiente. A prisão perpétua não tem mais sentido do que a pena de morte. Sobretudo se a lei depois diz que perpétuo é apenas 25 anos. É que das duas, uma: ou a prisão é apenas um castigo e um castigo que deve ser adequado ao crime ou também tem uma função de recuperação social (os meus colegas penalistas vão dar urros... mas eu nisto sou assim, pouco dado a grandes especulações sobre essa coisa tremenda e temível que é estar encerrado entre quatro paredes 23 horas por dia). Se a segunda hipótese é boa então deixem a Birgitte em paz, a paz que ela não respeitou nem concedeu, mas a paz apesar disso. O resto chama-se vingança. E, em querendo, adoptamos outros valores, olhem os que presidem à charia (agora são os islamistas que me vêm chatear...) ou ao celebre “olho por olho” tão judaico e tão praticado. E se ela pedisse desculpa não viria logo alguém dizer que era para poder sair da cadeia?
Eu, desculpem lá, esta agora das desculpas parece-me uma burrada em três actos. Há uns tempos, o dr Mário Soares, pessoa que muito estimo e respeito, entendeu pedir desculpa em nome de Portugal, pelas maldades feitas aos judeus! O dr Soares pensou muito generosamente que isso era bonito e importante. Só que sem qualquer espécie de eficácia retroactiva! Ninguém saiu da fogueira, do auto de fé e de mais um par de canalhadas das inquisição. Ninguém! Os séculos XVI, XVII e XVIII não se apagam nem se modificam. O importante é o que hoje pensamos e fazemos. A história nunca se pode reescrever mesmo que com bons sentimentos. E mais: os judeus de há quatrocentos ou trezentos anos não eram como os de agora, melhores ou piores isso pouco importa. Nem os portugueses eram como somos...
Acabemos esta anarqueirada cronicante com uma referência a esse enorme poeta chamado Wolf Biermann. A cidade de Berlin entendeu conceder a este homem vindo do leste nos anos sessenta, a cidadania honorária. Nada mal para uma cidade onde os poetas nela nados e criados não são multidão. Pois logo se elevaram vozes discordantes: Biermann foi contra a guerra do Iraque, escreveu e escreve coisas pouco correctas politicamente, é uma espécie de comunista contra os comunistas do leste, alguém finalmente pouco fiável e recomendável. Depois espantam-se que apareçam as Birgitte, as Gudrun, as Ulrike...
Ai, Alemanha pálida mãe...
a gravura(eu acho-a um achado!) é de um cartaz alemão contemporâneo ou quase do poema de Brecht já citado. Cartaz nazi, claro, mas era isso mesmo que B.B. criticava...

26 março 2007

missanga a pataco 7



Küß die Hand gnädige Frau!

Acredite, excelente Senhora no título desta prosa e perdoe o que vem a seguir. É que eu tinha de Si uma impressão, digamos para ser simpático, extremamente moderada.
A Senhora era, para mim, um mal menor, mas mal, um acidente de percurso na história recente da recente democracia alemã. Sou, não me custa dizê-lo, um “berliner” de adopção, e por isso mesmo um “rot”. Berliner porque amo essa cidade tanto quanto Paris ou Buarcos ou, noutro registo, Lourenço Marques, Amsterdam ou Roma. Berliner ainda porque estudei durante uns meses num Berlin dividido e inesquecível em que até o berliner Luft soava e cheirava bem. Nem eu, na altura sabia, que imitava os passos do meu trisavô Ernst Richard Heinzelmann, estudante que foi na Wilhelm Universität (hoje Humboldt Un.) nado e criado em Havelberg a uns escassos setenta quilómetros e que se banha no mesmo rio que Berlin. Berliner , finalmente, porque me aqueço ao sol da mesma liberdade que permitiu o milagre de uma cidade esquerdista cercada por um muro odioso.
Tudo isto, excelente Senhora, tem pouco a ver com o seu partido, a CDU, e menos ainda com os aliados incómodos da CSU bávara. Todavia, ao ler extractos do seu discurso de ontem, dia da Europa, ao perceber nas entrelinhas o cuidado com que conseguiu que tantos e tão diferentes europeus assinassem uma declaração que nem por ser mínima deixa de ser importante para o nosso futuro de habitantes neste velho continente. Comovi-me, não há que recear dizê-lo com a sua alusão aos tempos difíceis em que um muro dividia a cidade, os rios, a floresta, as famílias e os afectos. Percebo, talvez, melhor essa sua dedicação a uma causa a que tanto democrata que se proclama de esquerda não quer ver. Que uma Europa de nações foi, e poderia voltar a sê-lo, uma Europa de guerras incessantes, paz frágil, desconfianças brutais e diferenças de toda a espécie. Esses falsos arautos do socialismo esquecem depressa a letra imortal das velhas canções (por todas a Internacional) de combate pela igualdade e pela liberdade. Já as não cantam há muito ou esqueceram-se depressa. E foi preciso aparecer uma mulher conservadora para relembrar que o combate de cinquenta anos por uma Europa pacífica, próspera, livre e democrática é ainda um combate actual.
Não vale a pena alargar-me muito mas pelo que acima digo fácil é de perceber porque é que o autor, como seu adversário político, lhe beija a mão respeitável Senhora.


fotografia do restaurante Paris Bar de que tenho as melhores recordações quer do ano de 1971 quer de 1982. ainda por cima come-se bem! Fica na Kantstrasse em Charlotenburg o mesmo é dizer no centro.
A expressão que serve de título e que está traduzida na última linha do texto é, de facto ,mais vienense do que alemã. Mas eu quero crer que na cidade do Spree e do Havel estas cortesias também têm sentido. Berliner Luft (ar de Berlin) é uma conhecida peça musical que se toca impreterivelmente no fim de cada concerto popular e refere também uma velha blague sobre o ar pouco respirável de um Berlin de há 30 ou 40 anos.

25 março 2007

Diário Político 45



Regressado do limbo computacional

E aqui estou de novo, renovado se é possível dizê-lo, ou melhor escrevê-lo. Os computadores são umas máquinas diabólicas, endiabradas, endemoninhadas e nem sei que mais adjectivos pôr.
Disse adjectivo? Desculpe lá Senhora Ministra da Educação, escapou-me.
Disse "da educação"? Bem, escapou-me também esta. É que a"educação" passa por ser uma coisa séria, alfobre de virtudes cidadãs, de conhecimentos úteis, e de mais um par de coisas que por ora não recordo.
E a Educação Nacional, a nossa, ou melhor a de quem manda e desmanda, parece-me andar com uns tiritos na asa. Muitos, mesmo. Tantos que se calhar nem vale a pena contar. Passa-se-lhe a certidão de óbito e já está.
É que todos os dias há novidades. Bem, novidades, o que se diz novidades, é talvez um exagero. Também não vou dizer que se passam tropelias. Credo! Era o que faltava! Uma Ministra não está aí para estragar o retrato da virtuosa governação que nos rege. Uma Ministra despacha, põe, dispõe mas não descompõe.
Ora o que me vai chegando ao ouvido e ao olho leitor é suficiente para pedir na botica um emplastro para o "pavilhão auditivo" e uma venda bem preta para um olho. Assim, a modos de pirata, se é que me percebem...
Mas deixemos este tema da Educação que é pouco sumarento e vamos ao que importa: regresso ao convívio dos leitores e colegas depois de resolvido um extraordinário caso de incompatibilidade computacional. De facto o computador não me deixava assinar o que escrevia com o meu nome. Foi mister pedir a um companheiro generoso uma boleia para me publicar.
Todavia a ilustre (e bonita, olarilolé) administradora do blog, a guerreira Kamikaze, lá se condoeu deste desinfeliz e por fas e por nefas voltei a ser eu, propriamente dito, d'Oliveira com apóstrofe que é mais fino.
Isto só acontece neste computador em que estou a dar ao dedo. No do lado, da mesma empresa e marca, o d'Oliveira não tem direito a usar o brouser Firefox mas apenas o Safari! Porquê? Raio de pergunta, porque sim! E com uma agravante: o Safari não tem, ou se tem não me diz, a função compose. E isso faz com que as linhas saiam tortas, torna-se impossível pôr itálicos, negritos, cores, enfim fica-se reduzido a uma apagada e vil tristeza. À portuguesa! À Ministra da Educação, com certeza. E sem surpresa...

surripiei a um excelente fotógrafo chamado Rui Cunha a fotografia acima posta. Pior, recortei-a. Um abraço Rui Cunha e não me leve a mal. O raio da fotografia é mesmo boa.

d'Oliveira fecit

24 março 2007

estes dias que passam 51



Eu estava lá!

Passam hoje quarenta e cinco anos. Quarenta e cinco anos, já! Nem acredito mas tenho de me render à evidência: há quarenta e cinco anos este que estas escreve metia-se, muito cedo e sorrateiro, com mais umas dúzias de colegas e amigos, num comboio em direcção a Lisboa. Já perto, alguém sugeriu que nos apeássemos e tomássemos um desses comboios de cercanias que paravam em sítios inverosimeis. E graças a esse pequeno expediente chegámos sãos e salvos à estação de Entrecampos onde rapidamente saímos e em grupo cerrado, “capas negras, rosas negras”, chegámos à Cidade Universitária.
Quem nos viu chegar –e seríamos poucos mais de cem, se tantos éramos... – passou a palavra: “São os de Coimbra que vêm!” e entrámos num espaço cheio de raparigas e rapazes da nossa idade entre aplausos entusiásticos, abraços, gritos, muito vivório a que correspondíamos com o velho e coimbrão “efe-erre-á”.
Em poucos minutos já dispersos soubemos que a polícia estava por perto, que já houvera uns tantos ou quantos choques entre ela e a malta estudantil e que começavam a surgir notícias de que vários autocarros vindos de Coimbra, estavam a ter dificuldades para chegar a Lisboa. De facto, patrulhas mistas da GNR e da PIDE já teriam mandado retroceder alguns desses autocarros. E à Estação de Santa Apolónia acabava de chegar um outro contingente policial que, supunha-se, iria parar os colegas do Porto e de Coimbra que viriam em comboios depois do nosso.
A quarenta e cinco anos de distância compreender-se-á que as memorias exactas desse Dia do Estudante, se confundam um pouco. Recordo-me todavia que, aqui e ali, na zona da Cidade Universitária se realizavam pequenos comícios ao mesmo tempo que nos contavam o que até ao momento se passara e que, como de costume, se reduzia a cargas da polícia, pancadaria e fugas precipitadas para todo o lado. Porém, o que era novo e diferente, é que cessadas as cargas voltavam a juntar-se os perseguidos e reocupavam os lugares de onde tinham sido anteriormente expulsos. Uma segunda lembrança vivíssima é da presença de inúmeras raparigas que não desarmavam, não fugiam antes nos encorajavam com a sua enorme serenidade.
A história do dia do estudante é por demais conhecida e já hoje o Público a recordou: a ocupação policial da zona universitária, a mediação do reitor da Universidade de Lisboa, Professor Doutor Marcello Caetano. A breve acalmia nas hostilidades. O convite a todos os estudantes presentes para se dirigirem a um “restaurante Castanheira” (que nunca conheci e onde nunca cheguei...) para jantar dado que a cantina fora encerrada pela polícia. A carga policial em pleno Campo Grande quando, sem aviso, a polícia de choque interveio contra as centenas ou milhares (que sei eu) de estudantes que pacificamente se dirigiam para o restaurante. As correrias sem fim a que isto deu lugar. A especial ferocidade dos polícias em relação às capas e batinas que denunciavam não só o estudante a espancar mas, mais ainda, o estudante vicioso e coimbrão que conseguira passar as apertadas barreiras estabelecidas à volta de Lisboa.
A enorme solidariedade dos nossos colegas lisboetas que nos deram casa e cama e comida... E por vezes nos emprestavam roupa para passarmos mais despercebidos. O milagre de nos encontrarmos em pequenos grupos noite fora em sítios para a maioria de nós desconhecidos. Pela minha parte alguém me levou ao CUJ (clube universitário de jazz) e depois por aí fora até às tantas da manhã, numa ânsia de falar, de contar, de prometer solidariedade e de preparar o dia seguinte, enfim as horas seguintes, numa tentativa de vencer a polícia voltando a reunirmo-nos. Se a memória não me falha, no dia seguinte pela manhã encontramo-nos uns tantos ou quantos na sede da pró-associação de Medicina, em pleno Hospital de Santa Maria. E, se continuo a recordar-me bem, também esse local foi invadido pela polícia comandada por um certo capitão Maltês que, espantosamente, garantiu aos de capa e batina saída segura sem bastonadas. Saímos sim, mas todos, de Coimbra e Lisboa mais alguns do Porto que terão conseguido passar a malha policial sem serem mandados para trás.
Depois... regressamos a Coimbra, sem mais problemas, mas decididos a fazer pagar caro as bastonadas e as mentiras que rapidamente o poder pôs a circular desqualificando as Associações de Estudantes e reduzindo a batalha campal a uma suave admoestação policial a meia dúzia de estúrdios mal intencionados.
A greve foi proclamada em Coimbra e Lisboa e há que dizê-lo foi fortemente seguida mesmo se, em Coimbra, as franjas mais conservadoras argumentassem que a questão era meramente lisboeta e que “a Academia não fora ofendida nem atacada”. Pela primeira vez, provavelmente, o princípio puro e simples da solidariedade venceu (e convenceu...) o argumento especioso e isolacionista proclamado pela direita coimbrã. Acho que, tantos anos passados, podemos, os de Coimbra, dizer que honrámos os nosso compromissos. Claro que a crise estudantil de 62 foi mais sentida e vivida em Lisboa, tanto mais que, só tardiamente a polícia começou a reprimir as movimentações coimbrãs. Mas os números de estudantes posteriormente presos, processados e expulsos da universidade provam que Coimbra esteve sempre envolvida e solidária. De resto também ali a Associação foi encerrada, a Queima das Fitas foi suspensa e não chegou a realizar-se para já não falar nos jogos de futebol que envolviam a Associação Académica em que se registaram violentas manifestações.
Velhos amigos meus, entrevistados, dizem em substância que 62 foi para eles um ano decisivo e de viragem. Também para mim e para muitos, uma multidão, que em Coimbra estudavam. E curiosamente, sete anos depois, em 69, sob condicionalismos diferentes é verdade, foi ainda a recordação de 62 um dos motores da greve. Com uma diferença: em 69, foi Coimbra em peso que se levantou. E tão forte e unida se mostrou a massa estudantil que essa greve total conseguiu o impossível: a demissão do reitor e do ministro, a nomeação de um reitor da confiança dos estudantes, o levantamento dos castigos aplicados aos dirigentes estudantis, a criação de épocas especiais de exame e, surpresa das surpresas, o regresso a Coimbra de todos os estudantes incorporados por castigo na tropa.
Agora, hoje, umas centenas de “sexagenários” vão juntar-se e celebrar esse já longínquo combate. Por várias razões (ou por uma só: esquecimento e desatenção!) não estarei lá fisicamente. Gostava porém de dizer que é como se estivesse. Há coisas que não esquecem. E 62, esses dias febris de Março, Abril e Maio, como os dos anos que se seguiram, podem confundir-se na memória, podem trazer lembranças penosas de prisão e de medo, de conspiração e de fúria, de desânimo (que também houve), de vinho e rosas, mas têm o cheiro fortíssimo da solidariedade e da vida que mereceu ser vivida.
Vai esta em memória do Vítor Wengorovius, do Jorge Aguiar e dos dois Abílios (um de Lisboa e outro de Coimbra) e do Francisco Cordeiro (Porto). E de tantos outros que não se nomeiam mas de quem seguramente daqui a pouco em Lisboa haverá quem se lembre. Com uma lágrima e um sorriso.
Isto não é o dia de S. Crispim de Henrique V e de Shakespeare, mas também nós poderemos dizer como os sobreviventes vitoriosos de Azincourt: “Amanhã é o dia do Estudante”. E cada um “beberá à lembrança do nosso pequeno exército, do nosso bando de irmãos” porque aquela “jornada enobrece(rá) a sua condição”.
E dirá, comigo, “eu estava lá”. E comigo estavam também alguns felizmente vivos, frequentadores deste blog, João Vasconcelos Costa, Rui Namorado e António Lopes Dias. Um abraço, malta!

roubei ao João Tunes e ao seu excelente blog Agua Lisa 6 esta reprodução do emblema do dia do Estudante de 62. Pecado confessado está meio perdoado. E o JT é penso desta geração.
Osmeus leitores perdoarão o tom de "velho combatente" mas que querem? eu não resisto a certas evocações e certas efemérides: é o meu passado e mais do que isso, retrata a minha "construção" como homem e como cidadão.

23 março 2007

antes de ser

o poema é as notas que saltam do clarinete,
e batem nos meus ouvidos,
sem fazer perguntas
ou me permitir articular palavra.

é o prazer da melodia,
lugar onde me é dado fruir.
o poema é antes de o ser.

ali as palavras voam abaixo dos sentidos,
e o gozo da música
é o que me eleva.

o poema é o que nunca poderei dizer,
a experiência aguda da percepção,
a me encher o corpo do sentimento das coisas.

até derramar-se na insuficiência
das palavras e crescer nelas,
o poema é uma ave a voar.

silvia chueire

22 março 2007

missanga a pataco 6



Freiheit, liberté, libertad

O caso passa-se na Alemanha, ao que parece em Frankfurt. Uma sofrida esposa farta de apanhar do marido pede o divórcio e, de caminho, um divórcio rápido dado não estar com vontade de continuar a apanhar durante muito mais tempo. A requerente era de origem magrebina ainda que de nacionalidade alemã. O marido provinha da mesma região e, provavelmente, também já estaria nacionalizado alemão.
Uma senhora juíza do Tribunal de Família, alemã puríssima, mas muito multicultural, entendeu negar provimento ao pedido da esposa sovada baseando-se no facto do casal ter origem magrebina e portanto, entendia a exª e meritíssima juíza, lhes poder ser aplicado o direito muçulmano. E chamou em defesa da sua posição o versículo 34 da surata 4 do Corão que aconselha o marido a aplicar uns correctivos na esposa indócil.
Diga-se, em abono da verdade, que a coisa suscitou reparos e que a senhora juíza já não julga casos destes.
Eu não sei o que mais admirar: se o versículo caceteiro se a atitude da juíza. De todo o modo já ganhei o dia. A 17ª “Chambre correctionelle” de Paris mandou em paz o director da publicação “Charlie Hebdo”, leitura muito cá de casa, e que republicara, no meio da cobardia geral e multicultural, os desenhos dinamarqueses que tanto brado deram. E tantas virtuosos protestos ocasionaram. Desta vez a liberdade de expressão ganhou.
As leitoras que me aturam não se riam tão depressa: duas costaleras de Granada já não poderão carregar a imagem da padroeira porque a actual direcção da confraria a que pertencem desde há seis anos entendeu que “a presença de mulheres num espaço tão apertado poderia dar origem a roços pecaminosos ou pelo menos equívocos.” O Imã, digo o bispo, de Granada aprovou a resolução da direcção da confraria.
Integristas de todo o mundo uni-vos e o mundo será vosso e mcr será banido. Bem feito!

desenho de Siné no livro "Les Chats"


Diário Político 44

À boleia de O’Neil no "país pátria de exílio"

1 Se o engenheiro sempre não era engenheiro
e a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;

2 o retrato do entediante partido é aquele: um cavalheiro, ao que sei, de “cor” insulta desbragadamente uma camarada e desculpa-se lapidarmente: não insultei e muito menos agredi. Só me atacam porque são racistas. Como diz o poeta:
"um imenso tempo perdido."

3 O sr. engenheiro Belmiro de Azevedo passa “à peluda”. Durante dois dias o infatigável “Público” questiona-se sobre o destino da sonae. Que há candidatos fortes, assevera. No dia da verdade, sai a surpreendente notícia: Azevedo sucede a Azevedo, no meio do geral aplauso dos “públicos” candidatos. E o “Público” realça, na última página que a promoção se deve aos altos méritos do promovido. Provavelmente será assim. Mas alguém com juízo esperava outra solução?
Leitor que me pede a história
que já traz engatilhada,...

4 Discute-se gravemente se o sr. Robert Mugabe deve ou não ser convidado a vir a Lisboa para a 2ª cimeira Europa-África. Um cavalheiro chamado Luís Amado, supostamente Ministro de um governo socialista, de esquerda, portanto, ao que consta, acha que a situação interna no Zimbabué não deve inviabilizar a reunião. Por outras palavras: está firme na intenção de convidar esse bandoleiro de médio curso que aterroriza um pais indefeso, prende e espanca os opositores, quando estes não desaparecem pura e simplesmente. O Zimbabué parecia rico e próspero. Agora parece pobre e arruinado. Não se trata de fazer a apologia do antigo regime doutro perigoso indivíduo chamado Smith (Ian Smith, não esqueçam este nome) mas apenas de verificar que a África teve dias maus e vai ter dias piores. Para quem gastou alguma mocidade a apoiar os condenados da terra isto é difícil de engolir. Ainda que se não caia no disparate do Beco da Mal-Amada:
se acha que a vida não é boa
utilize gás da Companhia
o combustível de Lisboa.”

5 O re-falado envelope nove continua na berlinda: ler os jornais é, além de penoso, agoniante. Ninguém acredita que houvesse alguém que não soubesse do conteúdo das cassetes. A culpa ia direita para um par de advogados manhosos e tudo morria enfim feliz, no terceiro e último acto. Mas isto não é um drama teatral, sequer uma comédia de boulevard. Apenas uma funçanata desempenhada por amadores que decoraram mal os papeis e de tão surdos nem sequer ouviram bem o “ponto”.
Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim

6 Finale sem brio:
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
..........
se fosses só o sal, o sol, o sul
....
Portugal questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós.


Agradeço a boleia de mcr que me tem valido enquanto não dou com a solução de um problema que me não permite entrar no blog.
As citações são de poemas de Alexandre O Neil, respectivamente “Se”, “ Uma Lisboaremanchada”, “Inventário”, “Saber viver” e “Portugal”, publicados nos livros “No Reino da Dinamarca”, “Abandono Vigiado”, “Poemas com endereço” e “Feira Cabisbaixa”. Actualmente, os livros de O’Neil estão todos contidos em “Poesias completas” (Assírio & Alvim).
Este texto celebra propositada e tardiamente o dia da poesia. O título evoca também um outro grande poeta: Daniel Filipe.


d'Oliveira


21 março 2007

o leitor (im)penitente 13



Pela poesia é que vamos.
Há muitos, tantos anos, em tempos mais penosos e mais exaltantes,
um amigo meu,
numa noite inesquecível de Inverno,
na figueira-sobre-o-mar,
recitou-nos numa rajada
um poema enorme
tumultuoso,
torrencial, de um autor
que todos nós, ouvintes,
desconhecíamos.
Era o ano de 1962
eramos novos,
e a noite, o mar e algumas eventuais cervejas bebidas
tornaram único esse dia,
o dia em que conheci Herberto Helder, para mim o maior poeta português vivo e, seguramente o maior da segunda metade do século XX.
Vinte anos depois tive a honra e o prazer de o conhecer pessoalmente numa livraria do largo da Misericórdia em Lisboa.
E ele era igual à sua poesia por muito estranho que isto possa parecer.



o amor em visita


dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. com ela
encantarei a noite.
dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. seus ombros beijarei.

…..

dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
com uma flecha em meu flanco, cantarei.

…………………..
dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
à tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- então cantarei a exaltante alegria da morte.

…………………………..
toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
e eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
inteira, tua vida o deseja. para mim se erguem
teus olhos de longe. tu própria me duras em minha velada beleza.

. ……………………..

murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
onde está o mar? aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
em cada espasmo eu morrerei contigo.

e peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.
……………………………………………………….
ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

e à alegria diurna descerro as mãos. perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

herberto helder

nota: verificarão os mais atentos que se trata apenas de extractos do poema "o amor em visita". quem o quiser na sua integralidade fará o favor de mo pedir que o enviarei por mail.
Na gravura: Matisse, claro.
Em memória de António Carlos Manso Pinheiro "anunciador de grandes poetas"


Porque

Neste dia mundial da poesia deixo aqui um poema, de que gosto especialmente, de uma grande senhora da poesia portuguesa

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Andresen

20 março 2007

As casas de brincar

Vive-se um período alegremente triste na direita portuguesa. O PSD, ou o PPD/PSD, e o CDS, ou o CDS-PP, passam por momentos de tensão que, em diferentes circunstâncias, nos mereceriam uma boa gargalhada. Como disse “Zezinha” Nogueira Pinto, viraram autênticas casas de brinquedos!

No PSD, o inefável Santana Lopes ameaça regressar para se vingar da desfeita da derrota - sim, porque ele não é homem para aceitar derrotas. Marques Mendes não consegue descolar e a sua aparente seriedade não chega para satisfazer as hostes. Menezes percorre o país para manter viva a sua presença junto das bases e continua a achar-se capaz de governar o país (safa!). Manuela Ferreira Leite e os barrosistas espreitam de esguelha, porque as elites ex-ministeriais não se querem misturar com os putativos líderes da plebe. A coisa promete no circo laranja.

Mais à direita, assiste-se porventura ao fim do CDS, ou CDS-PP conforme os tempos e as vontades. O espectáculo dado pelos dirigentes centristas no último fim-de-semana é, quanto a mim, suficiente para arrasar a eventual confiança que ainda se podia depositar naqueles senhores, sobretudo na “gangada” ao serviço de Portas. Parece que Ribeiro e Castro lidera um partido que já não se revê nos princípios e valores do velho CDS. Ah…e não resisto a lembrar a boutade de José Miguel Júdice quando disse recentemente que quem se veste como Portas jamais poderá liderar a direita. Sim, mas qual direita? A trambiqueira/marialva ou a tradicional/conservadora?

19 março 2007

missanga a pataco 5

Há males que vêm por bem!
Tenho o deplorável hábito de ler a jornalada de fim de semana numa esplanada frente ao mar. Basta um pingo de sol e aí estou eu, debaixo de um guarda sol a apurar o Público, o Expresso, o El País, o Le Monde e os suplementos literários dos dois últimos a que junto o do ABC. Isto dá-me para encher as manhãs de sábado e domingo.
No Porto, por uma questão de fidelidade, frequento a esplanada do Ferreira que foi praticamente a primeira que apareceu. Para os fins em vista serve perfeitamente. Além do mais, vejo alguns amigos igualmente fieis que não se deixaram seduzir pela concorrência mesmo se mais elegante ou mais design.
Em Lisboa ou, melhor, Oeiras onde vivem o meu irmão e a minha mãe, ainda não tinha poiso mas descobri a marina e respectivas esplanadas. Com a vantagem de poder ir a pé. E assim mato dois coelhos de uma só cajadada. Ando alguns quilómetros, o que só me faz bem, para abater a barriga que tem diminuído notavelmente e bebo o meu café num sítio aprazível.
Mas esta escolha permitiu-me um par de constatações de que imediatamente dou conta. Por um lado é de aplaudir a ideia do passeio marítimo feito pela Câmara de Oeiras. O Porto e o dr. Rio poderiam aprender umas coisas ainda que eu duvide que o segundo sequer consiga perceber.
A segunda é que o país engordou. Engordou bem mais do que eu, diga-se de passagem. Durante as duas horas em que por ali estive vi passar seguramente duas toneladas de enxúndia, de carne supérflua e pouco saudável. Com este excesso de adiposidades alimentava-se um par de campos de refugiados do Darfur. Claro que não se podia dizer a origem da carne, mas a cavalo dado não se olha o dente. E a carne humana não deve ser pior do que muitas outras de que se fabricam esses duvidosos hambúrguers que por aí se vendem.
A terceira e última observação é esta: fiquei com a impressão de que boa parte dos passeantes que tentavam perder uns quilos depressa os recuperariam ao almoço dominical. Então com um par de quilómetros em cima aquilo deve ser um fartar vilanagem. Isto de andar a suar à beira mar dá de certeza uma traça do catorze.
É que a corpulência dos passeantes faz desconfiar das boas intenções que presidiram à jornada matutina. Tenho o pressentimento que o consumo de feijoadas, cozidos à portuguesa e outros pratos ligeiros do mesmo teor aumenta exponencialmente entre os peripatéticos atletas do passeio do dr Isaltino de Morais.
Moral: os autarcas que queiram ter munícipes saudáveis devem abster-se de construir estes agradáveis passeios à beira água. Eis como o há pouco acusado dr. Rui Rio fica absolvido pela sua não construção. Está a proteger a nossa saúde. Sem passeio marítimo não há passeantes. Sem passeio estes dormem até tarde. E é sabido que quem se levanta tarde come menos ao almoço.
E ao jantar?, pergunta uma azougada leitora. Bem o jantar é outra conversa. Fica para a próxima.
Domingo, Oeiras, passeio do Isaltino, a preparar-me par almoço frugal.

na gravura: Fernando Botero, "Sonhando"

os maldizentes ficam avisados que já perdi doze quilos, já só faltam 5 ou 6. A ver vamos...

18 março 2007

Estes dias que passam 50


Até os melhores falham ou
para a próxima corre melhor ou
mcr ri-se que nem um cabinda
Uma vez não são vezes mas desta confesso que quase acreditei que uma andorinha pode fazer a primavera. Como alguma leitora mais atenta recordará, vim até Lisboa com vários objectivos, ver a família, assistir à festa de lançamento da Sudoeste, editora do meu quase irmão João Rodrigues e estar com a Kami e o JAB por ocasião de mais uma apresentação do “13º passageiro”. Desta vez a coisa era em Sintra, sob a dupla égide de Eça no hotel Lawrence e do rei D Fernando, o 2º, o alemão, quase a única criatura digna da 4ª dinastia.
Para quem não teve o prazer e o privilégio de assistir a uma actuação em duo da Kami e do JAB nestas coisas de livros sempre se dirá que eles agora, se divertem em fazer uma primeira parte em power point fartamente interessante ao que pude entrever e sobretudo adivinhar. Parece mesmo que já estão tão calhados, tão entrosados, que se podem dar ao luxo de evitar o aborrecimento de testar com demasiada antecedência o seu pirotécnico espectáculo.
Isto é: podiam ou podem desde que isso não ocorra em Sintra e sob o atento e espantado olhar de mcr o analfabeto usuário de mac Intosh...
De facto, e para abreviar, lá nos encontramos à hora aprazada e depois dos cumprimentos da praxe rumámos à sala do acto apresentador. Aí a Kami sacou do seu computador, um maquinismo ibm se bem recordo e verificou contristada que se esquecera do cabo para ligar à corrente. Um espectador vindo do norte, apontava, in immo pectore, esta falha e ria-se escarninho mas só para dentro, para não desanimar a bonita artista. Todavia, alguém, mais previdente, um nativo local, desencantou um cabo e a coisa recompôs-se. Tratava-se em seguida de ligar o computador a um retroprojector coisa que pareceu correr sem dificuldade. Pareceu..., pareceu aliás por pouco tempo porque o dito retroprojector não reconhecia o computador maravilhoso, o pc portátil que não cai na asneira de ser mac! Aquilo era uma desbunda de dar ao botão, ligar, desligar e nada! No ecrã apareciam umas letrinhas a dizer que para lá do retroprojector aborígene tudo era “silêncio, escuridão e nada mais”. Um fantasma rondava por Sintra a bela como outrora outro andou há pouco mais de um século a assustar a Europa. Infelizmente este mais recente não teve nenhum Karl para o explicar mas apenas o modesto escriba que estas vai alinhando.
E se mudássemos de computador?, sugeriu alguém. É isso concordaram várias vozes perante a ignorância espantada do cronista. E veio outro computador. Com uma pen transferiu-se o artístico trabalho da engenheira Kami para o novo maquinismo que, como de costume, não pertencia à minoritária família mac. Copiou-se a apresentação, testou-se no novo computador, desta vez local, nativo, como o retroprojector, convencida toda a gente que entre sintrenses as coisas correriam melhor. Não correram.
No ecrã fatal (também de Sintra há que informar) “nem uma agulha bulia na quieta melancolia” da imensidão branca e vazia.
Bom, vai mesmo sem apresentação, decidiu JAB que olhava alarmado para o inexorável relógio e para um público impaciente. E foi. E foi bem porque o JAB tem várias qualidades que fazem o cronista ficar verde (o que em Sintra é aliás conveniente e muito cor local) de inveja: tem humor, tem segurança, tem verve para já não falar noutras qualidades que o distinguem. Mais uma vez o escutei com sincero prazer e o mesmo terá sucedido com a restante plateia. En fim, como quase toda, porque atrás de mim pareceu-me sentir uma má onda de profunda irritação. A autora, uma bonita senhora cujo nome misericordiosamente ocultarei, parecia querer gritar: porque é que não uso um Macintosh, porque é que não dou ouvidos ao mcr sempre tão prestável e bom conselheiro?
O resto do encontro decorreu muito bem e só pecou por curto. Curto mas provando que não havia arcas encoiradas. Jantei em óptima companhia e de borla! quem pode querer mais?
na gravura: uma modesta fotografia de um modesto mac book pro, objecto em voga entre índios, silvícolas e outros bárbaros pouco dados à informática. "Try a mac, K!, try a mac..."

nota: caro Nicodemos senti a sua falta, vamos lá a ver se para a próxima tenho o prazer da sua companhia.

17 março 2007

O Parto Difícil da Lei da IVG

Segundo o “Público” de hoje, o Presidente da AR “prende” a lei da interrupção voluntária da gravidez no Parlamento, dando cumprimento a uma norma regimental que, segundo o mesmo diário, raramente é observada.

Da notícia resulta claro que o objectivo é evitar que um eventual pedido de apreciação da lei pelo TC seja efectuado pelos actuais juízes, que já se pronunciaram, favoravelmente, quanto à questão colocada a referendo.

Ou seja, o tempo ganho com retenção da lei no Parlamento mais o tempo que o PR tem para a enviar para o TC faz com que esse eventual pedido seja observado pelo novo TC, o que pode dar alguma esperança aos que perderam no referendo.

Perante os factos, tudo leva a crer que estamos perante uma tentativa de aplicação do princípio: “Deus escreve direito por linhas tortas”

16 março 2007

o tempo esse grande simplificador 8



18 linhas no canto inferior direito
da página 14

António Carlos, 65 anos de idade, editor. Um cancro no pâncreas. A morte.
Assim em dezoito linhas se escreve a biografia de um morto que não é tão anónimo porque ainda tem direito a dezoito linhas num canto perdido de uma página esquerda do jornal. A notícia à esquerda de uma morte de alguém que saiu da esquerda há um largo par de anos.
Comecemos pelo princípio. Pelo rapazinho de onze anos que, por ser o mais baixo de todos os rapazinhos da fornada 52/53 do 1º ano do “Liceu Municipal da Figueira da Foz”, era o número 9 da turma B. A turma A era de meninas e sobraram oito ainda para a B. Ao todo no liceu (só com o primeiro ciclo) éramos 133, se não erro. Eu, mais alto, muito mais alto era o nº 13. O Mário Neto era o 18, o Bartolomeu o 10 e o Carlos Cruz o 11. Os primeiros dias foram difíceis. Eu vinha da escola de Buarcos, era aliás o único que vinha daí, o Bartolomeu vinha de Ponte da Barca porque tinha um tio cabo do mar na Figueira que por acaso era vizinho nosso e os outros eram da Figueira ou de concelhos a sul do rio. Estas origens geograficamente diferentes significavam um monte de desconfianças para os trinta caloiros do liceu. Demorou um par de semanas a homogeneizar a turma, a começarmos a tratar-nos pelos nomes e não pelos números que nos foram dados consoante a altura. A altura e um pouco a idade. porque para lá do 19 ou 20 havia colegas mais velhos, que teriam perdido anos na escola ou estariam a repetir o 1º ano. Naquele tempo, chumbava-se com alguma facilidade
Maus tempos comentarão alguns pedagogos actuais que acham natural um aluno não saber nada mas passar. Bons tempos dirão outros que vêm o passado com óculos de oiro fino. Tempos difíceis, atrevo-me eu. Tempos de fome, de miséria generalizada que eu, filho do médico de Buarcos bem a vi na escola, na rua, na aflita notícia de um naufrágio, de um incêndio num armazém de redes, ou num simples acidente da mina de carvão do Cabo Mondego.
Tempos difíceis até para a família do médico que era pago muitas vezes com um sentido e angustiado “Deus lhe pague” ou em peixe (ai o peixe, bom, fresco o peixe da gratidão nunca faltou lá em casa...E mais tarde, já os tempos eram um pouco melhores, quando regressei de Moçambique, ou quando frequentava a universidade e me calhava voltar à terra da infância quantas vezes fui recebido como um rei, um rei republicano e pescador, “ai meu rico filho do dr Marcelo, o teu pai é que pôs estes dois cá fora. E apontava para uns marmanjos da minha idade, nascidos em casa, à luz de um candeeiro de petróleo com os parcos meios do médico parteiro, obstetra, pediatra & similares que o meu pai tinha, naquela praia à sombra da serra da Boa Viagem, terra de pescadores e mineiros de carvão.
Mas eu cheguei aqui, à Figueira dos perdidos anos 40/50 pela mão do António Carlos Manso Pinheiro, editor, viúvo, e morto por um cancro. E da minha exacta idade.
Os rapazinhos bisonhos da turma B do primeiro ano, tornaram-se amigos, correram juntos as ruas da pequena cidade balnear, faltaram juntos à missa dominical das 11 como manda a boa regra, intimaram juntos um outro qualquer menos afoito a esperá-los à saída da missa ao pé da Tulmar para lhes dizer de que cor eram os paramentos do monsenhor Palrinhas (juro que é este o nome!) e o tem do sermão, digo do longuíssimo sermão que o monsenhor Palrinhas era um palrador do catorze, olá se era. E como é que o sabes, ó meu caramelo?, pergunta o inefável Pereira a ver se me caça numa mentirola. Ora, ora, Manecas, então tu não sabes que na Páscoa e no Natal nem o melhor se escapa de uma missa com a família au grand complet? Até o meu pai ia. E os avós paternos e a prima Fernanda. Nesse dia não havia baldas para ninguém. E o monsenhor excedia-se. Aquilo não acabava. Eu e o meu irmão olhávamos em volta e víamo-los todos, desde o patusco que nunca falhava até aos faltosos habituais, lavadinhos, penteadinhos roupinha melhor olhando para os lados numa cumplicidade que só a desmemória de pais e mães não percebia.
Depois do exame do segundo ano, dispersámo-nos. Eu fui exilado para Coimbra onde sonhava com o sábado, dia em que vinha a casa passar o pequeníssimo fim de semana que começava à tarde porque na parte da manhã havia mocidade portuguesa (pata que a pôs!). E o comboio nunca mais chegava, às vezes apetecia sair e empurrá-lo... Domingo, ao fim da tarde, zás, aí vinha eu com o coração amargurado para uma Coimbra estrangeira, uma casa de uma tia de quem nunca gostei, um massacre. E muita sorte, porque nos dias em que a Académica jogava em casa, era o meu pai que vinha a Coimbra e eu que me amolasse a ver um jogo odioso e a não ver a terra de infância, a praia e os amigos.
Isto não quer ser um exercício de ajuste de contas com o passado de um rapazito chamado mcr mas quem me conhece já sabe o que a casa gasta.
António Carlos outra vez: eu já em Coimbra e ele, mais cabulão, num estudo de trazer por casa, na Figueira. A ler alucinado os surrealistas, a começar a ter contactos políticos do 3º grau, partido comunista, claro. Aceitei de bom grado os surrealistas, mas o pc e toda a sua parafernália moscovita e stalinista dava-me uma azia tremenda. Fiquei-me pelas bordas, compagnon de route e depois, parvo e radical, entrei no cenóbio maoísta! Ficaram famosas as nossas discussões na Sacor em frente ao mar, com uma plateia de amigos mais novos que se dividiu irmãmente pelos dois. Claro que a polícia não dormia, e mais cedo ou mais tarde todos passámos pelos incómodos habituais de quem se metia naquelas alhadas.
Entretanto, enquanto o pau não nos acertava nos lombos idealistas e viçosos, salvávamos o mundo em imensas noitadas que começavam pelas nove da noite e só acabavam às seis ou sete da manhã. Rondávamos pela cidade, acordando os gatos vadios, vendo sair as traineiras da doca, acabando a madrugada na “Trancozense” onde, por meia dúzia de escudos, se comia um bife com batatas frita, na companhia de jogadores do casino, prostitutas e gente de empregos nocturnos que comia uma bucha antes de se ir deitar.
Quando o 25 de Abril chegou, o António Carlos estava entre os presos que saíram de Caxias. Comunista e orgulhoso por o ser. E excelente editor: ainda hoje a Editorial Estampa é uma referência.
Os nossos caminhos é que já não se cruzavam: eu no MES, no Porto e pouco inclinado ao delírio do PREC. Ele, guardador da ortodoxia num primeiro tempo, e depois dissidente até dizer chega. Quando nos voltámos a ver já não bastavam as comuns admirações por O’Neil ou Herberto Hélder, pelos grandes clássicos russos ou por uma boa centena de outros autores. Eu já andava a fazer a apologia do primeiro Soares candidato enquanto o António Carlos se inclinaria por Freitas do Amaral.
Curiosamente foi mais ele que se afastou. Não admira, fora mais radical e isso não passa como o sarampo. Ainda me recebeu fidalgamente em casa, quando a Ana Maria Alves ainda era viva. Escrevi-lhe uma sentida carte pela morte dela e ele agradeceu-me, delicada mas secamente.
Depois nunca mais nos vimos. Até hoje, quando em dezoito merdosas linhas, da página 14, ao fundo, o vejo. Morto, pequenito, com dez onze anos, a piscar-me o olho cúmplice da carteira do nº 9 para a do 13 imediatamente atrás e à direita. Era o sinal arriscado e difícil para o começo de um dos muitos jogos de batalha naval que travámos durante dois anos perante o olhar invejoso da Jacinta, a nº 8 e do Mário Neto, o 18 exactamente atrás de mim. Para a pequena história não fica a contabilidade das vitórias e derrotas de cada um mas este outro recorde: nunca fomos apanhados. Apanhou-o agora a morte.
Quem ganhou?, quem perdeu, António Carlos, querido amigo?


Na gravura: Figueira da Foz, anos 40, forte de Santa Catarina, onde todos nós brincámos aos polícias e ladrões, aos índios e cow-boys enfim a tudo o que os meninos desses anos brinncavam. Esta fotografia com mais 17 é uma gentileza do caríssimo leitor Ferreira. Obrigado e um abraço.


15 março 2007

Bob - março 2007















a verdade




sentas sobre mim os olhos quietos,
a cara crivada de perguntas,
e na calma esperas
que eu te diga a verdade dos humanos

não tenho a nas mãos a verdade.

a verdade sobe delirante
pelos elevadores da megalópole,
pela megalomania dos loucos,
e foge de nós.

tenho nas mãos a angústia,
alguma lucidez reservada,
e agarrada na face a surpresa cotidiana
do humano: sua grandeza impensável,
sua insuportável pequenez.


silvia chueire

14 março 2007

missanga a pataco 4



Ó QUE CALMA VAI CAINDO...

Um antigo colega meu de que só sei o nome mandou-me nozes. E mandou-mas porque eu lhe ofereci uma dessas pequenas lâmpadas de leitura que se prendem nas folhas dos livros. De facto, a mulher desse colega, Daniel de sua graça, trabalha com a minha mulher. As duas têm o feio vício de trabalhar até às quinhentas e Daniel que se amanhe no carro à espera. Ele até nem se importa. Leitor voraz traz sempre um livro de reserva para ocupar as horas de espera. Compreendo-o lindamente: quando namorava a Maria João, ela chegava sempre com uma atraso de meia hora pelo menos. Eu entretinha a espera com livrinho da colecção “que sais je?”. E tantos li nesses momentos de espera, e sobre coisas tão diversas como a geografia da América Latina até ao moderno romance americano, que ando sempre munido de um viático livresco para ocupar as horas de espera seja no barbeiro, na dentista ou num aeroporto. Perguntar-se-á: mas se o Daniel é leitor inveterado como eu porque não me mandou um livro? Ora porque desconfiou da sua capacidade de encontrar um livro que eu não tivesse. E vai daí, porque gosta de nozes, mandou-me uma bela saca delas.
Acontece que hoje fui por elas enquanto ouvia um disco de Sonny Stitt, saxofonista poderoso. E foi essa conjunção de Stitt, nozes e um sol que promete “primaveras românticas” (quem é que pega nesta citação?) que me recordou um longínquo dia em que falei com Stitt. Tenho ideia que foi cá, no Porto e no Carlos Alberto, mas a memória é traiçoeira. Seja como for falei com o homem. Ele estava no camarim e deliciava-se a provar tremoços, coisa que em absoluto desconhecia. Foi um amigo português que se desenrasca com um sax que mos ofereceu, disse-me. Isto é mesmo bom. E rematou: ah os amigos às vezes surpreendem-nos. E pimba mais uma mão cheia de tremoços com casca e tudo. Hoje ao estrear um duplo Cd “The Savoy recordings” de Stitt e Zoot Sims lembrei-me de repente dele, das nozes do Daniel que ainda não consegui encontrar e deste péssimo hábito de adiar encontros... Está decidido: para a semana, aviso a Graça que quero ver o Daniel quanto antes. Devemos ter para um par de dias só a falar de livros. Entretanto e sempre nesta boa onda da leitura espero estar amanhã com a Kami, o JAB e o Nicodemos. Antes que anoiteça a vida...


Farmácia de serviço 30



mcr endoidou de vez?
A ver vamos: não serei quem pode responder a esta pergunta, está bem de ver. Ao fim e ao cabo, sou parte interessada. Ou, se calhar nem isso. Com o que vejo lá fora, temo bem que só com uma boa dose de insanidade é que se aguenta o tempo que nos está a ser dado viver.
Aproveitando o facto de termos neste blog uma psiquiatra (uma bonita psiquiatra diria o Coutinho Ribeiro que nisto não tem rival, há que confessá-lo sem mágoa mas com inveja) deixemos que ela decida ainda que para isso necessite, eventualmente, de alguma explicação suplementar.
E agora pratiquemos neste mistério gozoso: três livros aparecem hoje como mote a esta crónica: “O seu a seu poema” de José Valle de Figueiredo, “As campanhas coloniais de Portugal (1844-1941)” de René Pélissier e “Portuguesismo(s)” de João Medina. Nada os reúne nesta crónica a não ser o azar da compra em simultâneo.
Azar? Só isso? Ou haverá nestas três compras algo mais do que a vontade do leitor? Acaso a poesia de José Valle, tão tributária dos azares da história recente, da intervenção do autor a contra-corrente, não terá que ver afinal com a meditação de Medina sobre as imagens identitárias portuguesas ou, enfim, sobre o conjunto de factores que explicam essa intenção sempre adiada por falta de condições de construção de um império colonial depois da perda do Brasil?
Comece-se com José Valle de Figueredo meu colega e amigo de liceu em Coimbra, contemporâneo na Universidade, adversário para não dizer inimigo desde os anos em que eu ia ancorando à esquerda enquanto ele deslizava para o “Jovem Portugal” de que iria ser senão um dos principais ideólogos seguramente dos mais convictos e dos que mais se comprometeram. Ponhamos que JVC levou até ao fim a sua paixão de extrema direita. As vagas notícias que fui tendo dele, nestes últimos quase cinquenta anos, davam-no como conselheiro do marechal Spínola, como artesão do golpe de estado(?), como ideólogo de todos os grupos de extrema direita que floresceram no após o 25 de Abril. Dizem-me que agora, envelhecido e sossegado, mas sempre na extrema direita, é assessor cultural numa Câmara Municipal do norte. Esperaria mais, mas se calhar isso acontece mas eu não o sei, a quem se entregou com tanta paixão ao combate “nacionalista”.
De todo o modo, não é da biografia que vinha falar mas apenas da saída da sua mais ou menos completa obra, “O seu a seu poema” (Imprensa Nacional Casa da Moeda, Dezembro de 2006). Comprei-o, movido por essa imprecisa recordação de uns largos meses de camaradagem, de entrada no mundo da cultura, quebrado pela deriva contraditória de ambos e pela militância assumida por cada um a partir do primeiro ano da universidade. Lembrava-me vagamente de alguns poemas do primeiro livro de JVF e da impressão de modernidade que na altura me produziram. A obra total, quiçá um centena de poemas, não desmerece dessa antiquíssima percepção. Trata-se de um conjunto honrado, equilibrado, de uma voz diferente mas é disso que (também) se faz a literatura de um país. Nesta apressada nota de pré-leitura cabe uma palavra sobre a pergunta que alguém me fará: nota-se a opção ideológica de JVF nos escritos apressadamente vistos? Pois direi que é discreta tal presença, e porventura só perceptível a quem conhece o autor. E querem saber mais? Estou a ler os primeiros poemas com algum prazer e sobretudo uma ternura antiga e leve, lembrança dos rapazes que fomos e dos sonhos que tínhamos. Estou definitivamente velho ou então...

Portuguesismo(s) de João Medina é um saudável exercício sobre algumas ideias feitas outros tantos narizes de cera e demais emblemas em circulação entre nós. E também um inventário de alguns mitos (con)formadores da nossa (ir)realidade nacional. Também não são, porque não podem ser, grandes as notas apressadas duma leitura que está quase toda por fazer. Todavia do lido e respigado fica a ideia muito clara de um sólido e interessante esforço por tornar perceptíveis alguns desvãos da nossa cultura identitária.
João Medina tem uma vasta obra e é reconhecidamente um bom especialista do nosso século XIX. Recordo-o de leituras muito antigas, talvez de meados dos anos sessenta quando colaborava na Vértice. Escrevia bem, acertava bastante e tinha humor. Também aqui há obviamente alguma cumplicidade geracional mas isso não impede o q.b. de rigor quando se trata de chamar a atenção para um livro ou um autor. É um sólido calhamaço dividido também numa boa centena de itens que podem ser lidos em desordem e sem preocupações de continuidade.
Finalmente, e porque eu agora, olho mais para a extensão dos textos que vou cometendo, fica outra nota sobre Pélissier e as suas “Campanhas coloniais de Portugal...” O autor é já conhecido e é tido (com justiça) como um especialista da nossa história africana. Pessoalmente, por toda uma série de razões, em que avultam as familiares e as políticas, estou entusiasmado na leitura deste livro. De facto, mesmo que já conhecendo a traço grosso as desventuras da criação e morte do nosso Terceiro Império, vale a pena ler este livro porquanto é das primeiras (pelo menos para mim) tentativas para dar uma visão de conjunto da aventura africana. Já aqui tentei, graças ao desafio de dois leitores, explicar as raízes do mito da nossa presença multi-secular nas colónias africanas. Se não me falha a memória tentei explicar a precariedade da ocupação das colónias africanas, a falta de incentivos, de gente, de investimentos, bem como a tardia ocupação dos hinterlands de Angola e Moçambique. De resto quem, por exemplo, tenha lido os textos de propaganda republicanos sobre a missão colonial portuguesa (e são imperdíveis os “Cadernos coloniais” Cosmos ed. vários autores ou a colecção de textos “Pelo Império”, Agência Geral das Colónias, 1935 até aos fins dos anos quarenta porquanto no afã de exaltarem o sacrifício colonial dão também a melhor prova da tardia ocupação efectiva dos territórios. E note-se que estamos perante autores de diferente formação e posicionamento político) vai encontrar, agora mais elaborada mas igualmente interessante, a história global dessa aventura. A aventura de um pais pobre que nunca teve o dinheiro suficiente para rentabilizar o esforço desmedido que dezenas e dezenas de campanhas de ocupação mereciam. E que muitos soldados, oficiais coloniais talvez merecessem. Recalco o “talvez”... Também não teve gente, gente para se estabelecer nas terras africanas. O Brasil, mesmo independente, primeiro e a Europa, muito mais tarde, atraíram a grande maioria dos emigrantes portugueses. E isso, esse pouco apego à colonização africana, exaltada por republicanos e salazaristas constituiu a mais forte resposta à agora renovada mitologia da “África Portuguesa”. E às acusações de “liquidação do império” apressadamente feitas por quem nunca lá pôs os pés. Por quem nunca amou aquelas terras, as suas culturas nativas, as línguas lá faladas. E eu sei do que falo e falo porque sei e posso falar.
Tenho por certo que a maior parte dos leitores vai ter motivo para se surpreender com a leitura deste livro. E, julgo, não darão por mal gasto o seu dinheiro.

nota: esta farmácia leva um número bem inferior às passadas. Agora com a introdução dos marcadores só foram consideradas como farmácia as crónicas que tinham esse título ficando as adendas e similares com os nomes que tinham no limbo da produção fora das séries deste escriba. As minhas desculpas ao leitor MSP, infatigável coleccionador destas páginas. E um abraço sincero aos meus contrincantes sobre África.

A gravura: mácara Makonde (cerca de 1930) Moçambique.