Carnaval II
Tomar o metrô. Saltar no centro da cidade. As fantasias cuidadas, os chapéus - mais que chapéus enfeites de cabeça formando o conjunto com as “asas”, compondo os “esplendores” que nos emoldurarão os rostos, os corpos – carregados carinhosamente no colo para a avenida.
Saltar no centro da cidade, todos reunidos no mesmo trem, passistas, percussionistas, membros de quaisquer alas de escolas de samba, reunidos num rio de gente, a dirigir-se para o sambódromo.
O Rio é das cidades mais perigosas do mundo, dizem as tvs e os jornais. Das mais violentas, as rajadas de metralhadoras e os tiros cobrem suas ruas como um manto mortal.
Saímos do metrô nadando num rio desarmado de armas e sorrisos agressivos, ao contrário, palpava-se no ar a solidariedade, a compreensão amistosa da tarefa, da expectativa.
Chegar à concentração, o lugar onde nos reunimos, para que a escola se organize em alas conforme o enredo do ano. Conforme a história que pretendemos contar ao longo do desfile, em música, fantasias, harmonia, exaltação e eficiência, vozes e raça.
Pois bem, estávamos há algum tempo na concentração conversando. A concentração acontece na ruas que ficam fechadas ao trânsito, logo perto do Sambódromo. É o o lugar de organização e paradoxalmente lugar de descontração. Reúne pessoas que se conhecem e pessoas que jamais se viram antes. É a hora da cerveja de última hora, de conversarmos, conhecermos as pessoas que dançarão conosco buscando a vitória da escola. Ali ensaia-se o samba – “você já o sabe de cor? tem certeza?” – e alguém sempre leva a letra para que os esquecidos nunca esqueçam, precisamos cantar sem errar, sem “atravessar” o samba, a canção na boca de todos. “Atravessar” é um pecado mortal, nos alija do paraíso das escolas de samba, a Marquês de Sapucaí. Atravessar é o desencontro sonoro mais grave, parte da escola a cantar um trecho do samba, enquanto outra parte está cantando um outro e a canção se embaralha no ar. Assim repete-se a letra na concentração e depois os olhos e ouvidos estarão atentos aos diretores de harmonia que percorrem a escola cantando durante o desfile para não perdermos o fio desta meada quando o carro de som ou a bateria não estiverem tão próximos de nós.
Éramos um pequeno grupo de amigos no meio do grupo maior da ala. portávamos, nós as mulheres, uma fantasia que tinha um belo esplendor
preso às costas por um arame grosso encapado com espuma de tecido macio. Neste ano a escola tinha mais componentes que no ano anterior, algo em torno de 4.500 pessoas, o que fazia com que o espaço da concentração ficasse algo apertado, digamos . De pé na rua conversávamos, ríamos, bebíamos, fazíamos novos amigos, dividindo a alegria e a excitação de “daqui a pouco é a nossa vez”, na antecipação do início do desfile.
Entra na concentração um carro alegórico muito grande, o que nos apertou um tanto, de modo que ao nos movimentarmos, ou caminhar as fantasias enrascavam nas outras. Há que tomar cuidado com isso quando o espaço diminui. Mas a escola precisa dos carros alegóricos.
Ao meu lado uma das minhas irmãs ansiosa pelo começo do desfile – era sua primeira vez – volta-se para mim e diz : ai, estou me sentindo estranha, acho que vou desmaiar. Minhas duas irmãs, que são gêmeas, eventualmente têm pequenas lipotímias, isto é, quedas da pressão arterial. Aprendemos eu e meus irmãos a reconhecer os sintomas, a palidez, o suor frio, e respeitar quando elas nos avisavam. Elas sabiam bem como tentar evitar o desmaio. sentar-se, abaixar a cabeça e mantê-la perto dos joelhos.
Mas ali estávamos numa ala de umas cem pessoas, o carro alegórico nos dera pouco espaço e percorria a todos a mesma excitação, de modo que ao ouvir o que ela disse, apenas perguntei, esperando que não fosse verdade :
- O quê ??
- Acho que vou desmaiar, estou me sentindo fraca, repetiu. Acho que o esplendor está um pouco apertado, não sei.
E eu retruquei entre o sorriso e a seriedade :
- Nem pense nisso, aqui não tem espaço nem pra você desmaiar ! Pode ir respirando fundo, pra ver se melhora.
E ela repete :
- Silvia, acho que vou desmaiar mesmo.
Agarrei-a pela mão e saímos do meio da rua da concentração para perto da calçada onde ambulantes vendiam cervejas em caixas de isopor com gelo. A um deles eu pedi :
- Moço, por favor, me arranja uma pedra de gelo para a minha irmã aqui, que está se sentindo mal ?
O engraçadinho me responde :
-São dois reais.
- Dois reais ?! eu repeti indignada. Mas que absurdo!
- Olhe aqui, continuei, vou lhe dizer uma coisa só. Você está me cobrando por um pedaço de gelo, não é? Pois bem, vou pagar pelo gelo. Mas atenção, eu sou médica e um dia desses eu e você vamos nos encontrar numa emergência médica de um hospital desses, e aí conversaremos. Tá certo?
- Queisso, moça. Eu tava brincando, pode levar o gelo, é de graça. A senhora é médica, é? e ao mesmo tempo foi me entregando uma pedra de gelo.
Disse à minha irmã que se sentasse num pequeno caixote que eu vira junto ao meio fio, e que esfregasse o gelo nos pulsos, mantendo a cabeça baixa. Ela se sentou, e assim fez.
Ao mesmo tempo ouço a bateria da escola começando, com aquela força que se sente ao sair do silêncio de percussão para mil tambores, bumbos, tamborins, cuícas, pandeiros, a tocarem, vibrando nos nossos estômagos. Arrepio. Voltei por um minuto a cabeça na direção da bateria, como um hábito de confirmação e para ver se começara o movimento das alas, o início do desfile . Ao olhar novamente para a minha irmã, notei que ela não estava mais lá. E o rapaz do gelo me disse :
- Ela foi para o meio da ala.
Nossa ala começava a evoluir, cantando o samba daquele ano, já não havia volta, nem olhar para trás, e divisei os cabelos dela mais adiante uns dez metros. Depois foi o samba, a loucura da emoção nos pés, a voz afinada com todos, a avenida. Ah, a avenida onde a beleza da escola, sua alegria, sua vitória é nossa. Do nosso desempenho para o público e para o mundo depende a escola. Uma ou outra vez divisei o meu cunhado dançando por perto, e minha irmã sambando o que sabia e o que não sabia, mas acabara de aprender. Sosseguei e segui sambando, a alegria nos quadris, no sorriso e nos pés.
Meia hora depois, acabado o desfile, aproximei-me dela e perguntei sorrindo :
- Ora, mas quem diria...! Você não estava muito mal e ia desmaiar ali mesmo? Eu mal viro a cabeça a quando a procuro, sumiu? E depois foi esse sambar sem fim? Só te vi de longe, requebrando tudo que podia...
- Ah, Silvia, eu ia mesmo desmaiar, mas quando ouvi a bateria, não sei, me deu um “negócio” por dentro, uma emoção tão forte, o coração batendo com os bumbos na minha barriga, que eu sabia que tinha que ir, ia começar o desfile e a escola precisava de mim. E fui. Quando dei por mim sambava mais do que jamais sambei...E me olhou sorridente, o rosto, o corpo, encharcados de suor.
Nos abraçamos plenas de entendimento.
Silvia Chueire