(in memoriam)
Chegou lá a casa, pequenino e felpudo. Raça indeterminada, isto é sem raça que se visse. Sem pedigree. Gato do povo, arraia miúda. Preto retinto mas luzidio como o melro de Junqueiro. Magro como um cão, se isso se pode dizer de gato pequenino, praticamente de mama. Que os gatos não gostam de ser confundidos com outros animais. E sobretudo com cães. Como Voltaire, o gato, me dizia: a canzoada ladra mas não morde, aceita um dono desde que este lhes dê de comer. Aceita coleira, trela e outras tropelias inomináveis. É mesmo capaz de lutar contra os lobos, primos dela (canzoada) mas pouco dados a civilidades. Ná, magro como um gato, se faz favor. Magro como um gato dos telhados.
Ao fim de pouco tempo, o gozo do gatinho esmoreceu entre os restantes humanos lá de casa. Não em mim, diga-se, que lhes aprecio a grácil felinidade, a perigosa indolência e o asseio. Os gatos são criaturas de um asseio extraordinário. Tem a sua retrete, não andam por aí á toa a mijar tudo. A menos que queiram marcar um território, mas isso é outro contar. E a retrete exigem-na limpinha, areia nova quase todos os dias, ou todos até se for preciso e se lhes quiserem fazer esse pequeno mimo. Eu fazia. Melhor: quem fazia era a fiel Margarida, empregada dos meus sogros que viviam na parte de baixo do nosso duplex.
Ou nós vivíamos na parte de cima, para ser mais rigoroso. Uma casa espantosa, ali à avenida do Brasil (no Porto colegas bloguistas, no Porto frente ao mar). No último piso. Da nossa casa nem víamos a avenida, só uma réstea de areia e o mar. E a América, Nova Iorque, para ser mais preciso, em dias de muito sol e vento a favor. Bom a América, propriamente dita talvez não. Mas imaginávamos. E naquela idade a imaginação era tudo o que nos restava. Imaginávamos um país livre e fraterno, por exemplo. E um feriado no primeiro de Maio. Éramos novos, claro.
Ainda que nisto, de imaginação, as coisas as vezes fossem mais além do permitido.
Então não é que um dia acordei e dei de caras com um navio a metros de distância, um barcalhão enorme que parecia querer entrar por uma varanda entre telhados onde se podia tomar banhos de sol absolutamente nu.
Primeiro pensei que ainda não tinha acordado. Depois suspeitei que ainda estava bêbado, logo eu que só lhe dou (moderadamente) no vinho e na cerveja! Depois pensei que era por ainda não ter tomado café. Finalmente rendi-me á evidência: aquele barco era um barco. E naufragado! Ai manas, um naufrágio á porta de casa, logo a mim, figueirense de Buarcos, leitor de Verne e Salgari. Que emoção.
Era mesmo um barco naufragado. Discuti isso gravemente sentado no muro que separa a explanada da praia munido de uma bica que um empregado diligente da “Ressaca” (já não há, puseram lá uma merdunça qualquer, banco ou algo idêntico em vez do café) me ali levava por mais cinco tostões. Um barco gigantesco carregado de milho. Milho que um bando de pobres carregava afanosamente. O Manuel António Pina, com aquela veia que o distingue deu um título ao naufrágio: “o primeiro milho é dos pobres!” Ai eu dava uma mão para ter escrito aquela frase. Mão metafórica, quand-même!
Mas perdi-me: estava a falar-vos de Voltaire o gato. Voltaire cresceu pois naquele ambiente simpático da parte superior de um duplex que por sua vez era o último piso mesmo em frente à praia do Molhe. De vez en quando desaparecia por umas horas numa circum-navegação pelo telhado. Voltava com o focinho cheio de teias de aranha. Mas via-se que vinha derrotado. Não havia ninhos naquele prédio recente, nem ratos no telhado. Voltaire, contrariado comia do nosso tacho, que remédio.
Tornámo-nos amigos, cúmplices mesmo. Eu quando chegava ao fim da tarde, chamava por ele e ele nada, raspas de nada. Eu dava três passos cautelosos e ele, zás, atirava-se a uma das minhas pobres canelas e fingia que ma mordia. Eu fingia que me assustava. Depois fazia-lhe umas festas, despia a fatiota, acendia o rádio e instalava-me no sofá deitado com um livro nas mãos. E o Voltaire das duas uma: ou se instalava em cima do rádio já quentinho ou preferia a minha barriga. Patada aqui, patada ali ia-me acomodando para se sentir confortável. E depois dormia o sono dos gatos que não têm dono mas que fingem ter para poder usufruir de uma barriga cómoda onde dormir.
Foram dias felizes estes que passámos juntos. Dias, meses, um ano ou dois. Até que alguém se intrometeu na nossa vida. Alguém achou que Voltaire, o gato, deveria ser capado. Ocultaram-me tão sinistro desígnio mas caparam o desinfeliz à mesma. Quero crer que Voltaire nunca aceitou a condição de eunuco. Vai daí entristou e morreu como um passarinho. Como um passarinho não. Como um gato que não aceita ser meio gato, mesmo gordo e manso. Nunca mais quis ter gatos. Também já não moro ali. Já não tomo café no muro. Já não há café. Felizmente ainda subsiste, rente à praia, bar do Ferreira. Onde muitas vezes eu e o Manel Simas tomamos um café com o Mário Brochado Coelho. E com a Laurinda, a Olga e a crazy Grazy.
Mas isto, o mar, o café no Molhe, Voltaire o gato, vem tudo porque me não atrevo a falar do Manuel Silva Araújo que foi hoje a enterrar. Era mais velho, eu sei. Mais sábio. Pertencia a uma geração diferente. Como o Luís Fortuna de Carvalho. Gente que frequentava a Leitura, a Árvore, o S. João, gente que também sonhou um pais livre e insubmisso. E fraterno. Gente que era o sal da terra. Gente que, como Voltaire, o gato, não tinha patrão, nem coleira, nem trela, mas que em lhes fazendo um favor, um mimo, podia ser, se caso fosse, “cão que conhece dono”, isto é gente que sabia distinguir a generosidade e sabia ser grata.
Morte, onde está a tua vitória?
Vai esta para a Maria Helena Silva Araújo e para a Xana Silva Araújo. Com um beijo e uma lágrima. Muitas lágrimas.
Os leitores e os camaradas de incursões que me desculpem. Ocupo demasiado espaço. Mas não sou eu que quero são as coisas que acontecem demasiado depressa.