28 fevereiro 2007

Au bonheur des Dames 53

Carlos Baptista cansado da guerra?

Descansem as leitoras gentis que o título é mais uma homenagem aos da minha geração coimbrã e, de passagem, a Jorge Amado, um grande entre os grandes malgrado o rictus desdenhoso de uma critica pelintra e os esquecimentos interessados da Academia Nobel.
Comecemos por esta que aliás não se “esqueceu” apenas do brasileiro (ou de Graciliano Ramos) mas de Proust, de Joyce e de Borges. Os suecos premiantes escrevem torto por linhas direitas e fazem uma gestão assaz curiosa do prémio gordo que dão: os seus eleitos devem fazer o mínimo de ondas possível e com sorte ser politicamente correctos. Depois, antes do reconhecimento do mérito absoluto, esteja ele onde estiver, fazem uma sábia dosagem politico-geográfica do galardão para salvar uma aparência cada vez mais fantasmática da realidade literária.
Alguma leitora mais ousada começará a dizer para os seus botões que nestas linhas anda bicheza política e doméstica e terei de lhe responder à sua muda pergunta com o clássico “morno, morno, quase quente” Como adiante se verá...
Passemos à geração e aos bons ventos que a trazem de novo a estas páginas melancólicas mas incorrigíveis.
E comecemos (arre é a segunda vez que uso o verbo) por uma cândida verdade. Todas a gerações acrescentam o seu grãozinho de sal à marcha humana. Todas ou quase, que algumas em vez de sal juntaram areia ...
Todavia a geração de sessenta teve a sorte de se cruzar com uma série de eventos históricos, muitos dos quais exteriores a ela e à sua acção-reacção, e isso tornou os seus membros primeiro, testemunhas e depois, actores (e algumas vezes vítimas) de um tempo e de um modo (como a revista, como a revista... ) que os marcaram fortemente. Política, estética e eticamente. A flower generation portuguesa marcou a música o cinema a poesia e a política do resto do século.
Teve ajudas evidentemente, juntaram-se a ela outros actores mais velhos e mais novos, sofreu influências e no seu percurso não nasceram apenas rosas. Mas globalmente não vale a pena contestar este facto que é mais do que uma evidência. As coisas correram-nos bem, tivemos sorte, muita sorte mas convenhamos também a soubemos merecer.
E é aí que entra o Carlos Baptista ele próprio e os muitos inúmeros Carlos Baptistas que encheram uma Coimbra buliçosa, entusiástica, indignada e que pintaram o cinzento sujo dos dias com umas fortes pinceladas de fantasia que foram um pouco mais do que o manto diáfano a que aludia um outro estudante de Coimbra cem anos antes. E que com uns escassos centos de amigos deu nome a uma outra geração redentora que mesmo quando se crismou de Vencidos da vida sabia que, de facto, estava a vencer a morte.
Carlos Baptista, portanto. Mas porquê este arganaz cachimbante, que já cachimbava umas fedorencias tabágicas na altura há quarenta anos atrás em reuniões que se prolongavam tumultuosas noite fora? Olhem, por nada e por tudo. Por nada, porque ele se vê o nome impresso, mesmo nesta etérea blogosfera é capaz de se assustar. Por tudo porque nele retrato o Barata, o Zé a João, o Sérgio os irmãos Moutinhos, a malta que comia na Adélia o Pedro (e a mãe Judite, Judite Mendes de Abreu uma agora nonagenária tesa como poucas e poucos que deu a cara, a casa a quem fugia, o dinheiro que não era muito a quem precisava, mulher de todas as ocasiões sobretudo das difíceis, das que exigiam muita mas muita coragem...) os Namorados todos e sei lá mais quantos. Já aqui falei de outros, dão-se por citados que senão a lista não acabava, felizmente éramos bastantes, e com o tempo, a teimosia, a militância política, académica e artística fomos pouco a pouco sendo mais, um rio, uma enchente ou o que, nesses tempos de vinho e rosas, de chumbo e lágrimas, mais se pareceria a isso num país de zombies, de vampiros e de meninos do bairro negro.
E tudo isto vem porquê?
Ora porque ontem, 27, fui de jornada até à Coimbra de lavados ares (bem, lavados ares é que não. Uma terra airosa que era está retalhada por monstros horrendos de cimento, uma enxúndia nova rica e grosseira de prédios feios que nos fazem pensar que ali ou não andou arquitecto ou então andou muito, mas muito, dinheiro, mal lavado tal é o aspecto da ocupação do solo do amontoado. Daqui a uns anos ou aquilo é arrasado por mera medida de saúde pública ou a Vila d’Este dos arredores do Porto ganha o prémio da urbanização por excelência!) para moderar mais um debate sobre os movimentos estudantis do decénio. Moderar, atenção! Falar pouco, dar a palavra aos preopinantes, suscitar alguma questão ou acertar agulhas no caso de... Os paleantes eram três, outros amigos de longa, longuíssima data, a saber o António Taborda, o Pedro Vasconcelos e o António José Remédios, actores respectivamente da crise de 62 e anos imediatamente anteriores (luta contra o decreto 40900, campanha Delgado e ascensão da esquerda coimbrã ao poder associativo) do rescaldo da crise de 69 e implosão do movimento estudantil nas lutas mais claramente políticas, mais radicais, e finalmente no terceiro caso um actor da luta de 69 com a vantagem de poder dar um testemunho de uma escola em mudança, a Faculdade de Letras e do curioso início da pequena mas determinada falange trotstkista. O moderador, este escriba aqui presente tinha a vantagem de unir as duas crises onde felizmente tinha metido o pé, a mão o entusiasmo com as consequências que essa impertinência conleva. Ou seja, dava as deixas e preenchia os espaços mortos. Foi bom? Foi mau? Disseram-se verdades transcendentes? Apareceu uma nova teoria? Francamente!... Foi apenas uma conversa, um lembrar que ainda por aí andamos, como um certo ex-primeiro ministro que ronda por aí (e que felizmente nada tem a ver connosco), um encontro com outros amigos, cabelos brancos que a idade não perdoa, mas com um brilhozinho no olhar (para não deixar o Zeca sozinho...) que é uma maneira também de ser solidário (outra...).
É claro que depois da funçanata propriamente dita, a conversa continuou como se voltássemos todos aos nossos vinte anos. Eu pela minha parte despedi-me do dos Baratas e dos Baptistas às cinco da matina com o pretexto de ter de dormir. A excitação era todavia tanta que não preguei olho: li o resto da biografia do O’Neil de que por aqui já falei e, às oito, reconfortado por um banhinho quente, ala que se faz tarde para o Porto.
Custa-me confessar que contas feitas por alto, e dado que cheguei a Coimbra ainda de manhã estive à conversa com o Zé Barata umas boas sete horas que depois do jantar conversante, da conversa com o povo ex estudantil se renovou por mais três ou quatro. É obra!
Devem andar por aí uns governantes e deputantes com a orelhinha gorda a arder. Estão com sorte porque se os tivéssemos apanhado a jeito, com a azia com que lhes estávamos, tinham tido direito a sermão e missa cantada. Alguma vez será que não perdem pela demora. É que os anos 60 não deram só malta porreira, era o que faltava. Também produziu o seu lote de arrivistas, oportunistas e outros sacristas que só rimam com os Baptistas do título porque foram nossos contemporâneos. Devem pensar que ganharam a guerra.
Estão muito bem enganados pois que a malta ainda não arrumou as botas e, muito menos, se deu por vencida. Ou, por outras palavras, ainda não estamos cansados da guerra, dessa guerra iniciada há quarenta anos em nome de uma indignação e que nos permite ainda hoje olharmos uns para os outros sem corar. E com alegria!

nota: notarão que eu agora estou a meter ilustrações. Burro velho aprende línguas, quand-même! Desta vez tem direito a uma paisagem do Staffelsee. A autora é Gabrielle Munter (Berlin 1877, Murnau 1962). Além de óptima representante de "Der Blaue Reiter" e de colega e amiga de Macke, Marc ou Kandinsky com quem, aliás, viveu, pintou muitas paisagens da zona de Murnau (Baviera, gebiet de Garmish Partenkirchen onde fui muito feliz há exactamente 21 anos. Com uma lembrança fortíssima para Kerstin.

27 fevereiro 2007

O Mistério das Universidades Privadas

De tempos a tempos surgem na praça pública denúncias e acusações sobre má gestão, abuso de poder, branqueamento de capitais, tráficos diversos e crimes vários nas universidades privadas, a maior parte das vezes descobertos no auge de verdadeiras lutas de poder entre clãs rivais. Foi assim, há muitos anos, na Universidade Livre, mais recentemente aconteceu também na Moderna e na Portucalense e, agora, é o mesmo filme que está em exibição na Universidade Independente.

O dinheiro dos (pais dos) alunos abunda, a atracção pelo poder é má conselheira e tramam-se na praça pública professores, gestores, directores e outros oportunistas. Coitados dos alunos que caem nas malhas desta redes e confiam a esta gente o seu futuro!

Depois da fase em que estas universidades se davam a conhecer sobretudo pela promiscuidade dos professores-turbo, que voavam entre as escolas públicas (garantias de carreira) e privadas (dinheiros), sem qualquer pudor, chegou a hora em que já começam a ser vistas como verdadeiras escolas do crime organizado. Não será o momento do Estado olhar para estas instituições e intervir nelas em defesa dos mais desprotegidos, os alunos?

Julgo que seria prudente estabelecer um quadro regulador de acompanhamento e tutela da actividade desenvolvida pelas universidades privadas, incluindo auditorias periódicas à sua gestão. Desse modo, o Estado teria condições para exercer a defesa do interesse público, criando inclusivamente um modelo de acreditação, que eliminaria as instituições que não dessem as garantias exigidas. Mais do que a intromissão do Estado na esfera privada, preocupa-me haver vítimas indefesas de comportamentos criminosos, que vão persistindo no tempo até “rebentar a bolha”.

24 fevereiro 2007

23 fevereiro 2007

Diário Político 43

Peregrinatio ad loca infecta*

1. Ingrid Bétancourt: o nome diz pouco a quase toda a gente em quase todo o lado. Além de mulher, é colombiana (onde ficará tal sítio?) e isso bastaria para se passar pelo nome sem sequer o ver. Mas há mais. E pior! Ingrid Bétancourt está sequestrada há cinco anos por uma repugnante organização chamada Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (FARC). Estas FARC são, ou eram, se não erro, dirigidas por um ex-padre conhecido por “Tiro Fijo”. A mão que abençoava com magros resultados parece ter mais êxito quando faz pontaria contra um desgraçado qualquer.
As já referidas FARC são, soit-disant, de esquerda ou, de outro modo, reclamam-se ou reclamavam-se da esquerda. Bem sei que na América Latina dos Chavez e dos Morales ser de esquerda é um artificio para encobrir populismos messiânicos, peronismos vários sem Péron nem Evita (bom par de gatunos que conseguiram deixar um país de rastos e sob a bota de ditaduras militares várias, essas sim de direita pura e dura que agarraram num território doente e deixaram-no morto...) ou outras formas de poder pessoal de que só se pode falar de mão no nariz de tal modo é fétido o caso.
Deixemos para outras núpcias as ditaduras restantes e concentremo-nos nas “heróicas” FARC colombianas, o mais antigo movimento de guerrilha latino-americano. As FARC são uma grosseira e trágica farsa que não tem qualquer espécie de ideologia, um mero agrupamento vagamente político que prolonga a célebre “violência”, uma pústula que não sara nem mata (enfim!... não mata o país mas mata os habitantes, mormente os mais pobres, os mais desprotegidos, os que não podem pagar um resgate; ainda há pouco um professor primário prisioneiro destes beneméritos patriotas conseguiu a liberdade em troca de um ano de salários...). As FARC justificam-se ultimamente com a existência de grupos para-militares de direita, igualmente crápulas, igualmente assassinos e recorrendo eles também ao rendoso comercio da coca e às alianças com os carteis narco-traficantes.
Voltando à senhora de que falávamos: Ingrid era senadora no seu país, conhecida pela sua luta contra a corrupção e candidata à presidência da república. Foi raptada quando, justamente, andava em campanha. Há cinco que está presa. Volta e meia as FARC dão uma vaga notícia dela apesar de neste momento não se saber se está ou não viva.
Eu não acho que o facto de ser mulher lhe dê especiais direitos a tratamento diferenciado. Há na Colômbia cerca de três mil quinhentos e sessenta sequestrados por grupos terroristas para já não falar em milhares de desaparecidos que se presumem assassinados ou mortos dadas as condições de prisão no meio da selva.
E se aproveito o nome de Ingrid é tão só para me servir dela como emblema na exigência de erradicação rápida desta lepra política e moral que se chama FARC- Ejército del Pueblo.
Já agora dava jeito que a esquerda portuguesa se mobilizasse toda na mesma exigência. Sob pena de sermos considerados cúmplices “daquilo”.

2 Um blogger egípcio apanhou quatro misericordiosos anos de prisão por ter escrito que o Egipto tinha uma direcção política ditatorial (Credo! Abrenúncio!) e na passada ter dito que a célebre universidade de Al-Azhar era “a universidade do terrorismo” (oh não!...) e suprimia a liberdade de pensamento.
Arriscava-se a apanhar nove anos, teve um abatimento de grande saldo pelo que não se pode queixar. Tanto mais que a sentença foi dada em cinco minutos o que em boas contas corresponderia pelo menos a cinco anos pelo incómodo dos senhores juízes.
Como o seu blogue vai estar desactivado e parece plausível que mais uns tantos blogues egípcios entendam falar mais baixinho por causac das moscas, deixemos daqui bem repetidas e se possível ampliadas as acusações sacrílegas de Abdel Karim Nabil: o regime egípcio é merdoso, ditatorial corrupto, e a universidade de Al-Azhar é de facto um ninho de terroristas. Acrescentemos de nossa lavra que o Egipto, autoridades civis e religiosas confundidas é um exemplo de cobardia moral face ao que se passa no médio-oriente.
3. Apetecia-me falar do homenzinho da Madeira mas os dois anteriores assuntos deram-me a volta ao intestino e falar da demissionária criatura provoca-me vómitos. Para fossas já dei que chegasse.

O título deste apontamento é directamente retirado de um título de Jorge de Sena, publicado em 1969 (Portugália ed.)
d'Oliveira

mcr dá boleia a d'Oliveira por problemas no computador deste último

22 fevereiro 2007

adenda ilustrada a "Au Bonheur des Dames 51"

As leitoras estupefactas com a habilidade demonstrada por este escriba poderão ver na fotografia que se junta os quatro jogadores que deram azo à crónica publicada mais abaixo.
estão velhos!, dirá alguém. Claro que estão um pouco usados, direi eu, que a média de idades anda pelos sessenta e um ou mesmo dois.
O perigoso cavalheiro que está de frente é o condutor estravagante que andou a fazer o tirocínio para participar num rally pelo Portugal desconhecido.
A fotógrafa que me mandou esta foto e mais algumas, espantou-se por ter sido qualificada de meiga. Se o qualificativo não lhe agradar sempre poderá pensar que falei galego onde meiga quer dizer bruxa!!!
Ora toma!

O quarto de brinquedos

Depois da Vereadora do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa ter sido constituída arguida, depois do vice-presidente, Fontão de Carvalho, ter sido acusado de peculato pelo Ministério Público, eis que Carmona Rodrigues dá algumas luzes do conteúdo dum relatório, enviado para o Tribunal de Contas e Inspecção-Geral de Finanças, relativamente a graves irregularidades de gestão da Gebalis na altura em que Maria José Nogueira Pinto tinha a tutela dos bairros sociais.

A propósito desse relatório, Maria José Nogueira Pinto referiu que Carmona Rodrigues utilizava a Câmara de Lisboa como “um quarto de brinquedos”. Gostei da expressão. Ao ouvi-la, veio-me de imediato à ideia a figura de Alberto João Jardim e a antecipação das eleições na Madeira. Vi esta região como um grande quarto de brinquedos e AJJ, de bibe, a atirar a nova Lei das Finanças para o chão, a dizer que com aquele brinquedo não brincava.

É, de facto isto parece tudo uma imensa brincadeira. E é por essas e por outras que muitos anseiam por um pai autoritário que ponha ordem na casa. Eu, por mim, prefiro-o democrata, mas também com autoridade e, já agora, com um aspirador na mão para limpar toda a sujidade da casa, incluindo a do quarto de brinquedos.

Parece não vir a propósito mas vem: gostei da entrevista do Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro. Esteve muito bem. Contido, assertivo, transmitindo uma imagem de sinceridade, segurança e responsabilidade. Tomara que seja verdade. Precisamos de pessoas no poder com estas características. Além disso, focou um aspecto que considero essencial: o de cada um dos participantes no sistema assumirem a sua quota parte de responsabilidade no estado actual da Justiça portuguesa.

O poeta dizia que era urgente o amor. Eu acrescento: é urgente uma limpeza profunda e a instalação da confiança e da responsabilização neste país.

Au Bonheur des Dames 52

Inês posta em seu desassossego

Anda por aí um autor matreiro que escreveu qualquer coisa como “os almoços nunca são de borla”. Confesso que o título chama a atenção e desperta a curiosidade, mesmo se refere um “mundo cão” (título de um filme de há quase cinquenta anos que terá – se bem me recordo – um assinalável êxito. De todo o modo, há nesse pequeno cinismo literariamente servido uma visão do mundo que está nos antípodas do meu e do dos meus amigos. E é por isso mesmo que resolvi celebrar os almoços de borla. Mesmo os não comidos como se vai ver.
De facto aproveitei estes dias carnavalescos para ir ver a família e tentar encontrar a perigosa Kamikaze, bandeira das malas artes que anda muito arredia destas paragens com a desculpa que está a pôr de pé um centro cultural lá para o Reino dos Algarves. Vai-se a ver e está mas é a preparar a independência desse território além Caldeirão.
E a propósito de independência, antes de entrarmos no assunto que aqui nos traz, que tal darmos já a independência à Madeira, satisfazendo quiçá os apetites do soba local que se demitiu em protesto contra uma lei. Logo ele que nunca respeitou as leis da república e a que, no descoco verbal que pratica chama Cuba ao país que lhe sustenta as bizarrias, vem agora, fulminante, ameaçar com eleições! Que as faça, que diabo, e que vá chatear o indígena para Porto Santo mas que nos deixe em paz.
Algum leitor menos afoito (e reparem que disse leitor, masculino, que se isto fosse com as leitoras, já Alberto João estava há muito posto com dono...) e pouco dado a sangrias na pátria madrasta virá escandalizado dizer que a Madeira é como o Minho ou o Algarve. Falso, leitor, falso, refalso e contra-falso! A Madeira é uma espécie de fenómeno do Entroncamento, dirigida por um cavalheiro que só fala para pedir mais dinheiro, mais regalias, maior diferença. E se não lhe derem ameaça com a independência da “colónia” explorada por Lisboa.
Ora quem já descolonizou forte e feio pode fazer mais um esforço e deixar a “pérola do atlântico” nas mãos da sua ostra. E ala que se faz tarde, arreia-se a bandeira e o senhor ministro da república recolhe a penates. Aviado que está o senhor Jardim voltemos às nossas encomendas.
A minha querida amiga K. tinha-me enviado um mail onde ficávamos de nos encontrar, sic rebus stantibus, durante a minha estadia lisboeta. Sussurrou-se mesmo a ideia sempre fresquinha de um almocinho ainda que com a Kami, os almocinhos são sempre almoços, ágapes, como de resto a senhora poetisa aí de baixo pode confirmar.
O problema, nisto eu tenho um galo incomparável, azar antigo e severo, aquilo que um amigo meu chamava “crespo”, ou seja um galo que além de nítido, culposo e evidente acerta numa criatura e expande-se contra descendentes ou ascendentes (se os primeiros faltarem...) era a data do nosso encontro gastronómico. Claro que, os leitores já adivinharam que a data proposta pela Kami teria de coincidir com a minha completa impossibilidade. E assim foi. Eu a ter de regressar ao Norte na terça pela manhã e a Kami a acenar-me com um almoço nesse exacto dia.
Zás!, contratorpedeiro ao fundo, como se dizia nos saudosos tempos em que a escola era alegre e franca e os meninos, nós todos, ou pelo menos, alguns, jogávamos à Batalha Naval enquanto lá para frente o professor debitava coisas importantíssimas.
Mas isto não pára aqui, e por isso eu ser obrigado a qualificar de “crespo” o tremendo galo que me assolou na manhã de terça feira. Partimos de Lisboa com considerável atraso porque nisto de pontualidade a minha mais que tudo tem uma teoria definitiva: chegar ou partir na hora aprazada é de mau gosto e porventura prova de má educação... E daqui não sai, excepto quanto ao trabalho: aí o terror horário de um largo grupo de amigos e familiares, é definitiva: chega mais cedo mas compensa saindo mais tarde, muito mais tarde. Se isto fosse virtude, ela já era santa ou pelo menos beata. Mesmo antes de esticar! Condoo-me diariamente com a sorte dos seus (dela) subordinados.
Portanto, nós a caminho, já com a certeza absoluta que teríamos de parar durante a viagem para meter uma bucha que nos enchesse a malvada e toca, alvissareiro o telemóvel. Era a Inês ou alguém por ela a cominar-nos para um riquíssimo cozido à portuguesa para a hora do almoço. E nós longe, longíssimo, casa do catorze, cornos da lua, cu de judas!
Que isto de cozidos tem a sua hora certa, não pode esperar. Ora como a convidante, abençoada seja, calculava que estaríamos a menos de meia hora de caminho, telefonava para que déssemos à perna quanto antes para depois já refastelados darmos ao dente. Desta vez, sempre na metáfora da batalha naval, foi o porta aviões que apanhou com um porradão de zaragatoas. Impossível chegar a tempo, mesmo dando ao pedal. Lá se foi um cozido com todos os matadores...
Parámos para almoçar, tarde e a más horas, na Mealhada. Serviram-nos uma coisa a que, por ledo engano de alma (sempre a citar o épico, por via da querida Inês), teimavam em chamar leitão à moda da Bairrada. E às tantas estariam certos. Basta que o actual leitão tenha um vago sabor a sabão amarelo e a consistência de uma pastilha elástica de segunda mão (aliás de segunda boca, para ser mais (neo)realista. Uma ofensa culinária, triste e mesquinha (estão a ver...?) que nós comemos por mera cortesia e muita fome.
Quando finalmente arribámos ao Porto do nosso descontentamento, só parei para descarregar a luz da minha vida e respectiva herdeira, lavar a dentuça e, ala que se faz tarde, para Vilarinho onde, passado que estava o cozido se anunciava um bridge com três parceiros que esperavam ansiosos.
A leitora dirá que depois de um Lisboa Porto sempre a abrir, de um atentado gastronómico a meio caminho, nada justificava ir ao local onde deviam jazer os restos do cozido para jogar cartas. Engano, leitora, engano forte, vê-se bem que não é jogadora de bridge. Entre esta minoria esclarecida do referido jogo, há regras não escritas com o mesmo valor da Magna Carta britânica. Um jogador não deixa em caso algum três outros a olhar para ontem. Só excepcionalmente, em contadíssimos casos (morte de familiar muito próximo, tremor de terra de grau oito, tsunami ou erupção vulcânica de grandeza pompeiana) é que se pode faltar. Hoje em dia, tem-se desenvolvido a ideia que também é justificativo de falta a febre a mais de 38 graus, aneurisma, ataque cardíaco ou membros superiores partidos. Todavia, e como já disse, isto é uma teoria que ainda não obteve o consenso necessário para poder ser considera regra...
Portanto, uma alegre e galhofeira mesa de bridge em Vilarinho. Quatro amigos que andavam por aí um pouco à balda, sem se verem, a bater a bela cartolina durante umas horas. A meiga Inês tirava fotografias a tão insólito encontro. E nós a dar-lhe, usando e abusando de piadas velhas e gastas sobre o mau jogo do parceiro, o desastre dos adversários, enfim o trivial. Já o imortal Terence Reese, grande mestre de bridge, dizia que o melhor de cada partida é no fim podermos insultar copiosamente o parceiro pelas asneiras que cometeu.
O dia acabou como todos os outros. Era já noite cerrada, um de nós tinha de vir para o Porto, a maioria estava abarrotada de cozido, eu enjoado com a coisa que tinha metido para dentro, enfim soou a hora do regresso a quartéis.
Convém dizer que agora com a auto-estrada o percurso é diferente. Saí em último pelo que achei que podia limitar-me a seguir o Luís que ainda por cima tem um Mercedes desses todos desportivos e pequeninos. E de facto, durante os primeiros quilómetros ele ia com tal gana que pensei, descansado, este sabe perfeitamente o caminho do regresso. Oh que fui eu pensar! A viagem que deveria ser curta, dada a proximidade da auto-estrada, converteu-se num circuito por estradas desconhecidas, por entradas e saídas em urbanizações entretanto aparecidas com as últimas chuvas, todas feias, todas tristes, todas uivando de vazio e mau gosto. Um percurso que não deveria ser superior a vinte quilómetros transformou-se numa corrida de obstáculos pior que um safari na Bechuanalândia. Às tantas comecei a temer que estívéssemos perto de Bragança, ou de Chaves, talvez Viseu... Até que subitamente demos de caras com a auto-estrada praticamente às portas do Porto. Que alegria! Que descanso!
Decidi que doravante, não seguirei nenhum médico caçador de perdizes, pescador de trutas e que seja dono de um Mercedes por mais quitado que este seja. Aliás quem é que, no seu perfeito juízo, pode acreditar que um neurologista doutorado é capaz de se entender com as vicissitudes da rede viária nacional?
Pela vossa cara já vejo que a culpa foi toda minha, como a Crazy Grazy me disse quando lhe contei esta peregrinação pelo país desconhecido. Ou por outras palavras não há almoços de borla. Melhor dizendo: não há almoços de qualquer espécie. O mundo está feito para os régulos da Madeira e para quem os deixa continuar assim.

Vai esta para a Inês Amorim, flor das hospedeiras amáveis e rainha dos cozidos à portuguesa e dos patés maison. E para o Zé Portocarrero sugerindo-lhe um bridge para breve.

21 fevereiro 2007

espero

dei-te os dias mais preciosos
as mãos e o corpo febris,
o pensamento lúcido,
os olhos lavados de ti.

esperei-te,
só se espera a vida.
as tuas palavras costuradas a mim
falavam-me do teu amor

escuto os dias
desde que me deixaste,
rumo a um deserto,
no silêncio do tempo.

o tempo, meu amor,
é um universo a dançar nos corpos
atravessados de angústia .

espero, ao olhar
a distância de um oceano,
que venhas.
a felicidade é um dia possível,
se estás.


silvia chueire

16 fevereiro 2007

Estes dias que passam 49

Um sentimentalão abençoado ouve blues

Já me chamaram muita coisas, algumas bem desagradáveis e nisso o prémio vai para uma inspector da pide que me apodou de “mentiroso incorrigível”, “alma danada da subversão académica” -!!!- e, pasme-se, “individuo com grossa actividade leninista-marxista (sic!). Matutei no silencio da minha cela com vista para o mar da Palha, sobre o que seria, no vocabulário policial “leninista-marxista”, expressão de que nenhum grupúsculo da extrema sinistra se lembrou só para se diferenciar dos outros trinta que se alimentavam de revolução, exaltação e anti-revisionismo. Perguntará alguma leitorinha amável sobre a “grossa actividade” mas juro que não a poderei informar condignamente. Eu e os meus amigos fazíamos o que podíamos mas podíamos pouco. Éramos mais para o artesanal, policopiar umas proclamações, organizar umas passagens pela fronteira, editar livros via Centelha (“uma centelha pode incendiar toda a pradaria”, estão a ver?, Centelha essa, claro, que era a tradução directa, ao que sei, da palavrinha russa “iskra”, nome de um dos jornais do finado camarada Vladimir Illitch). –quem quiser saber mais, bata à porta do temível Rui Namorado, tenebroso fundador da editora e maligno e operoso esquerdista coimbrão. Ele tem uma memória de elefante, eu que o diga, que cada vez que escrevo algo sobre os anos sessenta, olho metaforicamente por cima do ombro para ver se o Rui não está de sobrolho franzido a murmurar que, se calhar, não era de todo em todo errada a acusação de mentiroso incorrigível...-
Mas basta de empatar e vamos ao que interessa: agora, uma amiga chama-me “sentimentalão abençoado”. Se calhar tem razão, eu sou, ou gostava de ser, um tipo que se indigna diariamente, que se revolta idem, que chora (ai isso sou uma fonte: comovo-me por tudo e por nada e, zás!, bica aberta!) e que é caninamente fiel aos amigos. Será isto ser um sentimentalão? E abençoado? Eu, um incréu dos de antigamente, sem deus nem mestre? Às tantas, tem razão. E mais, adorei este “abençoado”. Eu sou demasiado europeu para expulsar do meu léxico pessoal certas palavras e frases que são do nosso comum domínio comum (assim mesmo!) E nisso estão “que Deus tenha” “ao lado direito de Deus” e “abençoado seja” para não dizer mais.
E agora passemos ao blues. “Azuis!” dizia, e diz, o Chico Guedes, esse mesmo, organizador das “Correntes de Escrita” da Póvoa e do novel festival literário de Matosinhos (literatura em viagem). Azul é uma palavra boa, como laranja, mar, verão, ternura... E a tudo isso poderíamos juntar blues (am I blues? Everiday I have the blues!, etc...). Pois a verdade é que me apareceu na Bertrand, um sumptuoso álbum de fotografias de cantores de blues, feitas por Giuseppe Pino, com o título de Black & Blues (ear books ed). Ai, minhas irmãs sob essas avelaneiras frolidas: Aquilo é lindo de morrer! E traz quatro discos, quatro! Do melhor blues que se pode ouvir, gravado ao vivo no festival de Montreux se não me engano. Ou seja por 30 euros há um belo álbum e quatro discos!
E quem diz blues porque não há de dizer jazz? Não é a mesma coisa, já sei, ò protestantes! Mas vem do mesmo ventre fecundo, abençoado ventre, Deus o mantenha, vivo e a respirar!
Pois na mesma Bertrand estava posta em sossego “The Virgin Encyclopedia of Jazz”, um tijolão enorme de capa azul (estão a ver?....) coisa para 40 euros mais cêntimo, menos cêntimo. Ala, que se faz tarde! Ora raspe aí o magro cartão de crédito menina!
E agora esta quase novidade: as livrarias Bertrand concedem 10% de desconto aos sócios do Automóvel Club de Portugal. Comecei já a amortizar as quotas. Mas há mais. A mesma Bertrand tem agora um cartão de leitor que, ao fim de uma determinada quantidade de pontos por cada euro, oferece um voucher de 20 euros. Não é muito mas antes isso que nada que a vida está difícil para quem não é dono da sonae ou do bcp ou de outras coisas do mesmo género. O cartãozinho da Bertrand é acumulável com o desconto para os associados do ACP de modo que nem tudo é para perder.

Finalizemos esta viagem sentimental, azul, com duas boas novas: O Eduardo já é detentor de um fígado novo, ou quase, digamos que em segunda mão, melhor do que o desastre que tinha, já saiu dos cuidados intensivos, uiva de fome, coisa altamente positiva para qualquer ocidental (isto não é a Etiópia ou o Darfur, que diabo!) e tudo indica que se vai safar. Deus me ouça e a Senhora da Encarnação também, que é santa muito milagreira e muito da nossa casa buarquense. Nossa, da Maria Manuel, do Nélito Pinguel, do Octávio, minha.
A segunda, igualmente alviçareira é sobre o nosso JAB, José António Barreiros, esse mesmo, o dos livros sobre espiões, o do “O 13º Passageiro”, banda desenhada sumptuosa, editada pelo “Mundo em Gavetas”. Pois bem, o JAB andou também afligido por males vários, doente mesmo, uma chatice! Pois também ele arriba, diz-me a minha querida Kami, refinada faltosa neste blog, vamos lá a ver Madame K. se mete coisa mais substancial aqui na barca incursionista.
E o JAB não só arriba mas vai em breve apresentar o “13º Passageiro” na Cinemateca, com luxuosa apresentação pelo João Bénard, velho compincha do MES e de outros carnavais. E a sessão será completada com um filme do Leslie Howard, outro luxo para cinéfilos do gabarito do M.S.P. leitor de Proust e de mcr, um abraço.
Os pormenores da sessão serão atempadamente postados aqui no blog por Kamikaze que eu já estou farto de dar ao dedo.


BREVES


A juíza Fátima Mata-Mouros volta aos livros com
‘Direito à Inocência’


habeas corpus - caso Esmeralda/CUSTAS:
fundamentação, por um dos juízes subscritores da decisão.

15 fevereiro 2007

O tempo esse grande simplificador 6

O Zeca a saque

“Senta-te aqui que te quero apresentar um gajo porreiro!” – disse-me certa tarde o Jaime Magalhães Lima, no Mandarim de saudosa memória. O Mandarim agora é um mac-qualquer coisa ou um entreposto de hamburguers , nem sei bem. Naquele tempo era um café, snack bar e restaurante como devia ser, estava aberto até às duas da matina, hora em que, cabisbaixos decidíamos atravessar a Praça da República e desaguar no Moçambique (“capital de Angola, é uma homenagem”, dizia o Fontes, seu proprietário). “Os senhores doutores emborracham-se no Mandarim e vêm vomitar para o meu estabelecimento." –outra vez o Fontes (em frase imortal dirigida ao João Amaral que Deus tem e ao Zé Quitério que ainda por cá anda sempre de olho onde se come bem semanalmente à disposição dos fregueses com aquelas crónicas inteligentes e bem escritas. Saravah Zé!).
Cortemos a eito esta digressão para introduzir o personagem desta crónica: o Zé Afonso chegado não sei donde por via de um exame qualquer de Pedagógicas ou coisa semelhante, com um par de poemas a tiracolo e entre eles o “ Meninos do Bairro Negro”. Eu o Jaime lemo-lo em primeira mão aturdidos, comovidos, entusiasmados e mais sete adjectivos que alguma leitora caridosa queira emprestar. Éramos, dizia o Zeca, os primeiros leitores, vejam só! Isto é uma medalha que trago guardada há quarenta e tal anos.
O Zeca não me era inteiramente desconhecido, claro, que Coimbra era uma aldeia, mas, de facto, nos primeiros sessentas aparecia de fugida, porque já dava umas aulas não sei bem onde. Todavia conheciam-se-lhe uns fados, a Balada do Outono, que o meu Pai, coimbrinha dos quatro costados, todo associação dos antigos estudantes lá pelas áfricas, muito faduncheiro, achava de grande qualidade. Ou seja, o Zeca fazia a ponte entre a tradição pura e dura e os novos tempos de que ele seria o grande cantor.
A partir desse momento tive mais uma amigo e o Zeca mais um admirador.
A partir daí fomo-nos encontrando sempre assim, quase de surpresa, num recital, numa vinda a Coimbra, num disco novo.

2 E nisto de discos novos, muito haveria que contar. Por exemplo: anunciava-se sigilosamente um disco do Zeca. O segredo, claro, era manteiga em focinho de cão: meia hora depois cinquenta indivíduos ensimesmados encontravam-se por acaso na Casa Neves, na Baixa, encomendando em voz baixa o disco. A menina do balcão puxava de um caderninho e dizia, igualmente conspiratória: "fica com o nº 96." Porra, pensávamos já há quase cem à minha frente, como é que isto foi possível? E saíamos recatadamente, sob o olhar invejoso dos que estavam na bicha, para ir beber um café à Brasileira. Aí, sempre do lado esquerdo de quem entrava, em mesas carregadas de oposicráticos, bichanávamos: vai sair mais um disco do Zeca! "Já encomendei”, respondia invariavelmente o António da Cunha Pinto, autor (sob o nome de Lionel Brim) excelente de livros que ninguém lê por serem difíceis!!!

3 Uma noite no Avenida, eu e o Anto, nem acreditávamos no que ouvíamos: O Zeca cantava coisas completamente diferentes do que lhe conhecíamos (a formiga no carreiro etc... e o António Lopes Dias, arrepiado, murmurava: "este gajo! Este gajo!" E ia nesta ladainha um respeito, uma admiração, um saber do ofício de poetar que nem vos conto!
E o resto da malta? Pois o resto da malta, passada a primeira e abissal estupefacção, habituava-se, aplaudia e no dia seguinte já cantavam num café, numa república ou em qualquer outro sítio as novas coisas do Zeca. Com naturalidade! Como se sempre as tivessem ouvido. E nisto, de ouvir, decorar, cantar, havia duas criaturas espantosas: o António Mendes de Abreu e o João Nazaré (um morto e saudoso e outro vivo e igual ao que era!). Foram estas duas fadas madrinhas que, num recital fabuloso nos jardins da AAC que recordaram ao Zeca uma cantiga de que ele se esquecera: “...ouvem-se já os rumores , ouvem-se já os clamores...” etc. O Zeca, muito sério só dizia: "Ó pá isso até nem é nada mau!" Previdentemente, eu já tinha o texto escrito, “Toma lá, vê se o não perdes”.

4 Numa manhã ensolarada subia eu a rua de Santo António –desculpem-me lá mas eu prefiro o doutor da igreja mesmo franciscano e santo, à homenagem à revolta do 31 de Janeiro, erro estúpido e trágico provocado pelo voluntarismo carbonário de uns quantos republicanos de cabeça quente. - e dou de caras com o César Oliveira que vinha triunfante: Ele e o Mário Brochado Coelho tinham negociado um excelente contrato para o Zeca com uma editora do Porto (seria a Orfeu?). Se bem me lembro aquilo dava por mês uns tostões interessantes. Pela primeira vez, asseverava-me o César, o Zeca é decentemente pago.

5 Em Junho de 77, estava em Madrid com um par de amigos e militantes de uma coisa passageira que se chamou MSU (Movimento Socialista Unificado) e que mais não era do que a última tentativa de ex-militantes do MES, da LUAR e da FSP de organizarem um grupo político entre o PC e as extremas esquerdas maoístas, trotskistas e similares. Amigos espanhóis falaram-nos de um concerto onde o Zeca seria a grande estrela. Tenho ideia de que terá sido em Vallecas grande zona de concentração operária e emigrante. O Zeca entusiasmou-se com a multidão que era quase toda constituída por activistas políticos de duas boas dezenas de partidos minoritários e autonomistas. Vai daí largou, entre duas cantigas, um par de insultos ao establishment local e português onde um filho da puta rimaria com dois merda. Quando lhe fui falar, o Zé, sempre pundonoroso, perguntou-me se não teria sido excessivo. “Ó Zé deixa-te disso, pá, estes gajos não dizem duas sem um caray e um coño só para fazer de virgulas, pá!”. – “Ai, fico mais descansado!

6 Em Maio de 1983, a Delegação Regional do Norte da Secretaria de Estado da Cultura, atreve-se, no meio de um escândalo murmurado pelos corredores lisboetas, a programar José Afonso no Auditório Nacional Carlos Alberto. Foi a primeira vez que um cantor de intervenção pisou um palco nacional. Só a história do contrato com o Zé daria uma novela. Por ele, estava tudo bem, desde que lhe pagassem um cachet de 30 contos! Mas nós queríamos pagar mais, ou melhor, queríamos pagar-lhe como pagávamos a qualquer artista que vinha ao ANCA. Em resumidas contas, achávamos que deveriam ser pagas as despesas de transporte no foguete e em primeira classe, o alojamento num hotel e as refeições. Espantado, o Zé perguntava se aquilo não era um abuso. Que não dizíamos, é o que se paga a qualquer concertista que cá vem. Obtido com algum esforço o acordo com o Zeca (Olhem que eu não vos quero causar chatices! Isto assim fica caro!) fizemos as contas ao total da despesa, dividimo-la pelo número de lugares do ANCA e fixamos à justa o preço dos bilhetes. Naquele tempo, achávamos que não era preciso ganhar dinheiro. Convinha apenas não o perder. Os dois concertos foram um êxito absoluto. Salas cheias, gente sem bilhete nas coxias, enfim um delírio. O Zeca entusiasmado. Nós já cheios de projectos para os outros cantores. E um balde de água fria: um ardiloso jornalista de um jornaleco miserável conseguiu convencer o Zeca de que o tínhamos explorado. Ou pelo menos de que viera cantar “por meia dúzia de cascas de amendoins” (sic).
Imaginem-me, desvairado, a correr para Lisboa, para dizer duas fortes ao Zeca. Cartas para os jornais, enfim, o habitual. O Zeca já nem se lembrava dos amendoins. “- Ó pá eu disse isso? Não acredito! Mas desminto, queres?”
Que é que se pode fazer a um tipo destes? Convidá-lo para jantar na “Trave” com o Sérgio, o Vitorino, e o Zé Mário que só diziam: nós queremos ser tratados como o Zeca!
E foram.
Nos corredores da SEC os murmúrios indignados subiam de tom. “Aquela gente lá de cima...”

7 Os anos foram passando, o Zeca voltou ao ANCA, nunca mais ninguém falou de amendoins, lá jantávamos, falando disto e daquilo mas a doença ia minando aquele corpo frágil e gasto. Até que um dia, de Fevereiro de há vinte anos a notícia correu. Ou melhor: nesse dia cumpriu-se um antiga ameaça, vivida irremediavelmente por quem ia sabendo daquele mal tenaz que o desfazia pouco a pouco, que o matava lentamente.

8 Vinte anos depois que resta disto tudo? Muita música da melhor que se fez em Portugal. Um par de poemas dignos de figurar em qualquer antologia. A sombra vacilante de um homem generoso que se expôs a tudo. E isto bastaria para justificar o Zeca. Porque é muito, é do melhor que por aqueles anos cinquenta, sessenta, setenta e oitenta se fez.
Não é preciso dizer que o Zeca é maior do que os Beatles porque não é, nem nunca quis ser. Não é preciso dizer que o Zeca é o Bach ou o Mozart português, porque não o é nem o poderia ser. E se ouvisse alguém dizer isso, primeiro rir-se-ia, depois ficaria sufocado e finalmente talvez dissesse, a tempo e com razão, o palavrão de Vallecas em 77.

O José Afonso foi um cometa. Seminal, no sentido em que abriu portas a muitos outros com o seu exemplo, a sua determinação o seu amor pela música a sua imensa bonomia e a sua generosidade ainda maior. Fez-se musical, politica e culturalmente em Coimbra desde os bancos do D João III até à Faculdade de Letras. Bebeu da tradição popular, da Beira aos Açores, da cantiga coimbrã e de alguns ecos do Lourenço Marques onde viveu. Há naquele ouvido privilegiado muita “marrebenta”, muito, ou algum, kwela da África do Sul tudo temperado por uma solidariedade nunca desmentida com a população negra. Há também, queiram ou não, bastante surrealismo, boas leituras, as melhores diria eu, e essas foram sem dúvida adquiridas, pensadas, mastigadas numa Coimbra que, como a tantos, o atraía e repelia.
Para a minha geração, o Zeca foi um porta voz, uma voz de esperança e um apoio absoluto. Não foi beattle nem Mozart. Não sabia, não poderia, não queria sê-lo.
Não o diminuam com essas comparações.

Vai esta em memória de três justos, de três amigos do Zé Afonso e meus: César Oliveira, António Mendes de Abreu e João Amaral.
E com um abraço para alguns vivos: Mário Brochado Coelho, José Quitério, João Nazaré e Rui Pato , grande acompanhante do Zé.

14 fevereiro 2007

Os artistas da Invicta

Lê-se as pérolas destes senhores e não se acredita. O “Público” (agora mais light, mais limpo, com mais fotografias e menos texto, mais adaptado a um tempo em que o tempo escasseia) diz-nos que Luís Filipe Menezes terá dito por aí que José Sócrates foi o grande derrotado no referendo de Domingo, porque a sua iniciativa “foi reprovada por cerca de 80 por cento dos portugueses”. Menezes quer mostrar a todo o custo que existe e que tem ideias para o país, Gaia já é pequeno para os seus sonhos e o Porto está ali tão longe, mas a pressa é tanta que volta e meia atrapalha-se, o pé foge-lhe para o chinelo e o desacerto é total.

Num outro prisma, o mesmo jornal dizia que o notável líder da concelhia do Porto do PS, Orlando Soares Gaspar, admite uma coligação nas próximas autárquicas com o CDS-PP, no caso de Paulo Portas chegar à liderança deste partido e as mudanças se precipitarem. Gaspar está de costas voltadas para os actuais autarcas do PS e as suas preocupações estão já centradas na preparação das listas para daqui a dois anos e meio! E diz que vai exigir o cumprimento rigoroso dos estatutos, para que ninguém brinque com os seus imensos poderes.

Enfim, mais episódios lamentáveis que devem fazer rebolar a rir os senhores do poder instalados na capital. Enquanto a paródia continuar e os protagonistas políticos derem provas destas, o Norte continuará a ser um parente pobre, a definhar e a perder terreno em todos os indicadores de desenvolvimento.

13 fevereiro 2007

O leitor (im)penitente 11

Um metro de estante, um

Foi o meu caríssimo confrade JCP quem, pela primeira vez, aqui chamou a atenção para a colecção “Reis de Portugal” editada pelo Círculo de Leitores. Também não admira: o JCP, aparte o defeito de ser um portista ferrenho, daqueles que vão às Antas (“A Catedral”) e põem como o sócio o filho acabadinho de nascer, tem fortes qualidades: é bem disposto (e isto meus caros é hoje em dia um bem precioso), trabalha desalmada e desinteressadamente na Assembleia Municipal da sua terra, fuma charutos gigantescos desses que ainda são enrolados nas pernas morenas e pecadoras das charuteiras cubanas (e nisto vai um tsunami de pecados os mais variados mas seguramente todos capitais) e é um bom conhecedor de História, disciplina onde se licenciou. Também é um bom garfo e um homem de espírito! Compreende-se melhor o seu entusiástico anúncio da colecção. Aquilo dizia-lhe respeito e vinha colmatar uma forte falha das edições históricas grande público em Portugal.
Ora, agora que já só falta a rainha Maria Iª convém avisar o estimado público, as senhoras e senhores da assistência, as excelentíssimas autoridades religiosas civis e militares de que estamos perante empreendimento digno, mesmo que, num ou noutro volume, se possam apontar fragilidades, discrepâncias e tudo o mais que vos vier à cabecinha mimosa. A verdade é que o portuga interessado, culto e moderno tem aqui ao seu alcance uma boa carrada de história pátria. Exactamente um metro de livros na estante. É obra: um metro de livros, medidos tant bien que mal cá pelo cronista. Já tirei a bissectriz a um par de exemplares e estou a babar-me perante a hipótese de umas férias calmas, muito mar, muito peixe, marisco q.b., umas cervejinhas para aviar esta encomenda. Do que folheei fiquei com boa impressão ainda que tenha a clara ideia de que me irei enfurecer com certas teses aqui e acolá. É bom um leitor enfurecer-se, é sinal que está vivo e não come gato por lebre. De todo o modo, leitoras excelentes, força na história dos nossos reis.

2 Ele há escritores assim, subterrâneos como certos rios no deserto. Volta e meia, dão um arzinho da sua graça, mostram-se, criando um oásis e depois mais uns quilómetros de metropolitano. São escritores, cujo nome, passa de boca em boca, de amigo em amigo, como um segredo só revelado a quem merece. Raras vezes os citam, mas a gente vai de casa em casa e descobre maravilhado e comovido, na estante o livro, os livros do autor em causa. Puxa-se por um e notam-se claras marcas de leitura.
Dantes as leitoras do estilo da avó Dora Heinzelmann (leitora de poetas parnasianos franceses e italianos) punham uma folhinha, um flor seca a marcar o trecho que as comovera. Algumas anotavam a lápis qualquer coisa, como um balão de S. João enviado para o futuro e para outros olhos e outro entendimento semelhantes. A avó fazia ainda mais: na sua letra elegante poetava à volta do trecho, umas vezes em francês outras no espanhol aprendido na Buenos Aires da sua infância. Eu, burro velho mas chorão, comovo-me com estas imperceptíveis marcas, esta herança que ela me deixou e perdoou-lhe mesmo o exacerbado romantismo com que baptizou o meu pai que, claro me pôs o mesmo nome. Tu Marcellus eris, cantava Virgílio (Eneida VI, 861-887) mas não seria este sobrinho favorito de Augusto o causante dos nossos nomes. A avó Dora acharia simplesmente que o nome era prometedor e ainda por cima italiano.
Deixemos este devaneio com a antepassada e voltemos à vaca fria: petas reincidentes, recorrentes. Falo, claro do O’Neil (Alexandre) de que agora saiu uma biografia. A autora é Maria Antónia Oliveira e a acreditar na fotografia, além de inteligente será bonita. O cavernoso Manuel Sousa Pereira já vai quase no fim da biografia e ontem confidenciou-me que estava deliciado. O MSP é bom leitor, valha a verdade, tem bom gosto, mas agora anda a surpreender-me com as leituras avulsas que vai fazendo. Óptimas todas, claro mas bem reveladoras: aliás anunciou-me meio envergonhado que começou a ler o Proust (outro Marcelo!) e “sabes uma coisa, Tio? Estou a gostar!” - Claro Manecas, claro, só um tonto é que não gostaria. Dele e de mais uns tantos, olha, o Musil para não ir mais longe, mas isso fica para outra ocasião...
Leitoras e leitores, façam um favor a vós próprios e rapem do O’Neil (ele mesmo na Assírio e Alvim) e da biografia da Oliveirinha que está bem esgalhada.

3 O novo Público. Estou um bocado embaraçado com a nova apresentação do Público. Valha a verdade que a gente demora a habituar-se, sobretudo se é um leitor desde o nº 1. Para já uma perda tremenda: o Vasco Pulido Valente não consta da lista dos comentadores. Isto é, simplesmente, um terramoto. VPV escreve um português admirável, tem vigor, substância e invulgaríssima qualidade. Eu, volta e meia, fico pior que uma barata, ao lê-lo. Porque o safado com aquele estilo insuperável e aquela inteligência cortante, é um perigo público. Mas, depois, acalmo e penso, cá para os meus botões, que bom que seria haver mais um forte quarteirão de VPV a estragar a festa da mediocridade e da bem pensância!
4 Entretanto, e já que se fala no Público, atenção à colecção que está a sair sobre a história do blues. Muita atenção mesmo que aquilo é bom até dizer chega!

Nota: a minha ex-cunhada nº1, a Zé Albarran, manda-me um mail sentido sobre a morte do Manuel João Gomes, critico de teatro e homem de cultura. Choro com ela esta morte injusta. Como aliás foi a da Luísa Neto Jorge, mulher do MJG e poeta excelente. Ora aqui está outra “subterrânea”. Apanhem-na se puderem e depois façam o favor de me agradecer esta dica. A Luísa sabia o que fazia e fazia-o muito bem. Senão vejam:
a alegria redundando nisso, um no outro, violação
das fronteiras onde poisar vivo.

(in “O Ciclópico Acto”, Paris, Galeria 111, Lisboa, 1972. Ah, ah, ah, está esgotadíssima esta edição maravilhosa que em seu tempo me custou dez brasas! Oferecia-a a mim mesmo pelos meus 48 aninhos).
Ou:
O poema ensina a cair
sobre os vários solos/...
Numa curva delgada e subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
In Os sítios sitiados, Plátano ed. Lisboa 1973

12 fevereiro 2007

Diário Político 42

Serviço é serviço e cognac é cognac

A máxima que dá título a este postal vem direita dos meios castrenses, que é uma maneira fina de falar da tropa. Eu, que sou um paisano convicto, confesso que sempre achei que a servitude et grandeur militaires não era coisa assim tão despicienda como as “juventudes” partidárias entenderam fazer passar.
De facto, talvez por me considerar herdeiro directo dos princípios da revolução francesa, da ideia da Nação em armas, tempero o meu anti-militarismo com duas fortes colheradas de anti exército profissional. A meu ver, este, especializado, dependendo de voluntários é bem pior que o outro, o que juntava toda a malta durante um par de meses a marcar passo e a aprender outras inutilidades. Aprendia-se também a manejar uma arma, coisa que agora está reservada aos tais “voluntários”. Ora eu sempre pensei que isto de ser voluntário para “carne para canhão” trazia água no bico. Não consigo desfazer-me da ideia que os tais voluntários são gente violenta e por isso perigosa. Um exercito baseado nestes voluntários corre severos riscos de se transformar em casta repressora do civil. Coisa que parece mais fácil se os paisanos, como eu, não souberem sequer dar um tiro de pistola de alarme.
Feita esta introdução para explicar algumas idiossincrasias militares, convém dizer que a antiga tropa, altamente infectada de milicianos e de recrutas à força, averbava no seu especial léxico algumas pérolas dialectais tais como a que dá título ao post. E estoutra, maravilhosa: desenfiar-se. “Desenfiar-se” era ao fim e ao cabo um quiddam baldar-se sigilosamente, pé ante pé, como quem não quer à coisa. Não confundir com “passar à peluda” que apenas queria dizer, ser desmobilizado.
Portanto a tropa à antiga portuguesa, tudo como dantes quartel general em Abrantes: cognac é cognac e serviço é serviço queria dizer que não se devem confundir planos e muito menos misturar o prazer com o trabalho. A frase deve provir do antigo quadro de oficiais porque, o pé rapado que ia para soldado bebia –se bebia – bagaço vulgar do baratinho, vá lá uma ginginha com elas ou uma amêndoa amarga em dia de saída mais festiva. A oficialagem é que se podia dar ao luxo dos brandys Constantino, das “Carvalho, Ribeiro & Ferreira” (fortificante tónico que me foi apresentado por dois amigos em fim de comissão militar nos trópicos.) ou de uma que outra francesice caríssima ou então passada aos direitos. Aliás penso que muita messe militar tinha contrabandistas fornecedores para esses espirituosos mais internacionais.
Continuando: esta chamada da tropa antiga à colação vem apenas para tentar perceber o resultado do referendo sem ter de ler dúzia e meia de páginas dos jornais. Em poucas palavras: O sim ganhou forte e feio. Disto não restam dúvidas de qualquer espécie.
Vir dizer, como arengava um pobre diabo pediatra e parvo que os abstinentes devem ser contabilizados como votos a favor do statu quo antigo ou é burrice supina e incurável ou má fé peçonhenta. E mais perigosa. O anormal pediatra a quem uma tv qualquer concedeu um minuto para regorgitar a asneirola nem sequer se lembrou do voto referendário da Constituição de 33, onde de facto constava que que quem estivesse de acordo poderia não pôr os pés na secção de voto. Mas isso eram manhas do dr Salazar que, coitado, bem se deve arrepelar, ao ver os cretinos que lhe sucederam. Andou um homem quarenta anos a moldar um país, a tentar criar uma elite, a destroçar os oposicráticos com “uns safanões dados a tempo” e aparece agora uma azémola ajaezada de pediatria a burrificar o conceito!
Razão tinha o Joaquim Namorado, quando propunha um Código Civil com um artigo e um parágrafo únicos:
Artº Iº e único: É proibido ser burro.
§ único: fica revogada toda a legislação em contrário.

Infelizmente esta legislação breve não foi acolhida e o resultado está à vista: entram-nos em casa as parvoíces que qualquer cavalheiro sofrendo de dores de mau perdedor entende dizer.
Quem votou, votou e merece todo o respeito pelo acto praticado. Quem não votou apenas –e na melhor das hipóteses – veio dizer: estou de acordo com o que decidirem porque, ao fim e ao cabo me estou nas tintas para o assunto discutido. Ponto e parágrafo!
A segunda consequência do voto parece ser esta: o PS terá de apresentar em tempo útil um projecto de lei que ponha preto no branco, e sem astúcias parolas, este desiderato afirmado pelos portugueses. Claro que tudo isso poderia e deveria ter sido feito há muito no Parlamento mas como já tive oportunidade de dizer aquilo “deveria ser demasiada areia para a camioneta dos senhores deputados”. Pronto, não se fala mais disso e ao trabalho.
A terceira consequência que há a tirar disto é que de 98 até hoje diminuiu o número dos abstencionistas. Ou, se calhar, chegaram seis novas levas de jovens que, mais expeditos que os antepassados, acharam que era altura de nos pormos mais ou menos a par com a Europa, onde ficam a subsistir três únicos representantes do aborto igual a crime. Do aborto tal e qual está definido, com as competentes semaninhas e as condições já conhecidas. De todo o modo convém salientar que quer o sim quer o não beneficiaram deste aumento de eleitores.
A quarta consequência é esta: a Igreja foi desservida pelos seus apóstolos leigos, claramente mais papistas que o papa e, sobretudo menos prudentes que o Senhor Cardeal Patriarca. Com uma sub-consequência: boa parte dos católicos votaram sim. A secas e sem problemas de consciência. A menos que os tais noventa e tal por cento de católicos seja um mero voto piedoso sem correspondência com a realidade.
A quinta constatação é esta: o mapa do não restringe-se ao Minho e a Trás os Montes com umas bicadas no douro litoral e na Beira interior. E, ia-me esquecendo, boa parte do distrito de Aveiro. As grandes cidades votaram esmagadoramente sim e isso fez a diferença. Há um mundo rural cada vez menos visível onde a tradição, a religião, tem algum apoio. E basta!
Uma nota final: foi visível a disparidade de meios publicitários entre o sim e o não, pelo menos no que toca à publicidade pesada, grandes cartazes por todo o lado. O facto das empresas de “comunicação” que trabalharam para o não não terem levado nada pelos seus serviços não chega. Cada um daqueles outdoors custa a bagatela de quinhentos contos antigos e isso foi pago por alguém. A malta do sim ou estava muito convencida da vitória ( e também não era difícil tal convencimento, apesar de tudo isto anda...) ou estava mal de dinheiros porque não esteve à altura neste duelo.
O que permite juntar esta notinha final: o famoso período de reflexão das 24 horas sem propaganda parece perder cada vez mais importância: os cartazes aí estão imóveis mas visíveis a lembrar aos mais distraídos que a propaganda está lá nessas vinte e quatro horas abstinentes e infelizmente por mais um par de semanas como é costume.
Espera-se, com paciência mas também com alguma impaciência que o PS faça o trabalho de casa, se é que já não está feito para que daqui até à aprovação da lei não haja mais um par de pobres mulheres a passar pela vergonha do tribunal e anexos escândalos. Será pedir muito?

11 fevereiro 2007

surpresa

sentas sobre mim os olhos quietos,
a cara crivada de perguntas,
e na calma esperas
que eu te diga a verdade dos humanos

não tenho a nas mãos a verdade.

a verdade sobe delirante
pelos elevadores da megalópole,
pela megalomania dos loucos,
e foge de nós.

tenho nas mãos a angústia,
alguma lucidez reservada,
e agarrada na face a surpresa cotidiana
do humano: sua grandeza impensável,
sua insuportável pequenez.



silvia chueire

Estes dias que passam 48

763 de pressão, tempo variável

O senhor que conserta barómetros olhou-me muito sério e disse: “Sabe o que tem aqui?” – “Um barómetro –respondi-lhe. – Um barómetro mais velho do que eu, se calhar até mais do que o meu pai, se fosse vivo.” O senhor –repontou-me – tem aqui uma máquina fabulosa. Estas letras PHBN indicam uma marca fora de série. O J.A. Ribeiro Lisboa é apenas o comerciante que os importava. Nunca tinha visto um barómetro destes. Fazia-me jeito para a minha colecção.” “E para a minha - retruquei, a fechar conversa. - É uma herança. Juntamente com um samovar lindíssimo, uma fruteira arte nova e um guache de Diogo Macedo, oferecido pelo autor à minha avó Dora. Coisas que irão para os sobrinhos com a condição de não saírem da família, sabe como é?”.
O senhor dos barómetros sabia. E mostrou-me peças magníficas que, também ele, não venderia por preço nenhum.
Já restam poucos destes homens que atrás de um pequeno balcão trabalham peças delicadíssimas, inventam ferramentas (não estou a fantasiar) e amam o trabalho bem feito. – “Olhe para este astrolábio” – disse-me – tem cento e tal anos, talvez cento e cinquenta. Repare na perfeição da gravação dos décimos de grau, na beleza dos números...”
E nesta loja modesta, da rua Mousinho da Silveira, quase em frente da bolsa, respirava-se (respira-se) um gosto cidadão e civilizado pelo trabalho bem feito, pelo bom gosto. Respira-se orgulho profissional. Quase nem acreditamos que isto é o Porto melancólico e em perda de velocidade. Há aqui eco do velho espírito da cidade burguesa e pouco inclinada à autoridade de bispos ou fidalgos.

2 Senti o mesmo hoje de manhã quando fui votar. Maldisse vinte vezes o sítio para onde me mandaram, tanto mais que da mesma freguesia há aqui a duzentos metro um par de secções de voto. Só que estas são as mais recentes enquanto a velhada onde me conto foi transferida para cascos de rolha. Mas passemos: na escola secundária Maria Lamas (olha houve quem se recordasse dessa grande senhora, dessa figura tutelar da resistência e da democracia!... às dez de um dia de nevoeiro cerrado e sebastiânico havia já muitos votantes. Gente maioritariamente idosa que gosta de cumprir o seu dever cedo e depois descansadamente ir á missa ou até um café para ler o jornal.
E havia nessa centena e meia de pessoas, vestidas com algum cuidado, com o ar sério de quem se preparou para um acto solene e cidadão como é do voto popular, uma gravidade e uma solenidade que comovem o mais pintado. Estas mulheres e estes homens, quase tudo classe média baixa, trazem no olhar a expressão concentrada de quem sabe que foi chamado por um único e irrepetível momento à governação da polis. E por isso, porque sabem isso, o seu ar é sério. A cidadania sabe que esta é a festa possível da democracia e da liberdade. Mesmo que a pergunta que lhes fazem seja mal feita, quase abstrusa, elas e eles sabem. Cabe-lhes escolher e elas e eles não cedem a sua voz ao conforto da casa quente, da cama preguiçosa. São dez horas da manhã, o nevoeiro é de cortar à faca, há mesmo uma chuvisca miúda e massacrante mas elas e eles estão aqui, pacientemente nas bichas das secções, à espera da sua vez. Serão muitos? Serão poucos? Não tem importância: elas e eles estão aqui, serenos, a cumprir um dever cívico. Isto meus caros leitores e leitoras é Portugal no seu melhor. Como é também o senhor dos barómetros, atrás do seu balcão a fabricar uma ferramenta impossível para consertar um velho microscópio feito em Jena na Alemanha há mais de setenta anos. Essa ferramenta que lhe moeu a cabeça durante dias e dias até uma madrugada triunfante (“aí pelas três da manhã acordei e dei com a solução” –contou-me) vai permitir consertar uma velha peça de grande precisão e salvar um pouco, um poucochinho, do passado.

3 A Maria Manuel manda-me uma mensagem brevíssima: o Eduardo é hoje operado. Que seja depressa e bem, desejamos os de cá de casa. Que tudo isto não tenha passado de um susto, secundam a minha mãe e o meu irmão e o resto da tribo lisboeta.
Quem for religioso que reze uma ave pelo restabelecimento do Eduardo, que bem merece. Os restantes, fazemos figas como quem não quer a coisa mas, durante breves momentos, a voz sai-nos embargada pela comoção.
Força Eduardo!
Força Maria Manuel!

4 Depois de votar, fui num salto até à foz. Não que quisesse ver o mar que mais se adivinhava do se via. Fui até lá só para ouvir a ronca. A ronca do nevoeiro da minha infância descuidosa e feliz, em Buarcos, terra de peixeiras e pescadores da pesca longínqua. E por um breve instante, ao ouvir a ronca, vi, claramente visto, com estes que a terra há-de comer, um mulher antiga e grave persignar-se. Nossa Senhora da Encarnação, olha pelos nossos que andam no mar!
E por este incréu comovido à beira água! E pelo Eduardo à espera de um fígado novo! E pelos homens e mulheres que afrontaram o nevoeiro, a morrinha e o frio para votar porque essa é a tarefa dos cidadãos, na Atenas antiga ou no Porto, hoje.

10 fevereiro 2007

Estes dias que passam 47

Correspondência entre dois amigos: os jornais deste fim de semana são abundantes no elogio ao Fernando Assis Pacheco que teria feito setenta anos. E pela pena de Inês Pedrosa, Jorge Silva Melo e Manuel de Freitas vem dizer o que eu sempre soube: que o Assis era um enorme poeta. Isto para mim era verdade desde o primeiro poema que lhe li na Via Latina em coimbra no meu ano de caloiro. Numa corrida pus-me em campo para o conhecer e ele, afável e generoso, lembrou-me que os nossos pais já eram amigos. Acho que também nós o fomos: amigos que só uma estúpida morte interrompeu o dialogo. Em 95 ano da tripla morte do Zé Valente, do Pedro Sá Carneiro Figueiredo e do Assis
Para esquecer as tristezas do presente aqui se dão à estampa mais duas cartas trocadas entre mcr e Assis no ano de 1994, por ocasião da operação do segundo.


À FAMÍLIA PACHECO
(MULHER, FILHAS, FILHO & CÃO
SEM FALAR NO IMPACIENTE DOENTE)



Constou que o vosso exemplar marido, estremoso pai, e afável dono teve que mudar, asinha,asinha, a canalização.

Dele esperava-se (e espera-se...) tudo, mas jamais um aneurisma. Não é doença para um cultor das belas letras e (antigo?...) olhador de mulheres bonitas. Ao que o Fernando metia para dentro esperar-se-ia uma britânica apoplexia (que teve os seus momentos de glória entre os literatos isabelinos..) ou uma aristocrática gota. Agora um sofisma em forma de aneurisma (e ainda por cima rebentado,,,) não passa pela cabeça de de qualquer leitor quanto mais de um amigo já tão antigo!

O único precedente que conheço para a operação sofrida pelo operoso jornalista, conversador impenitente e prolífico cidadão é o de Diogo Lopes Pacheco, matador da linda Inês, a quem Pedro o Cru terá mandado arrancar o coração pelas costas.

Há, porém, diferenças, e de peso! O Pacheco medievo limpou o sarampo (outra doença desaconselhável a quem já passou dos cinquenta...) à barregã do rei enquanto o mimoso Pacheco de que falamos não acerta numa perdiz a dez passos..

Sussuram-me, todavia, que, talvez, tudo isto (o sinapismo em forma de aneurisma neurasténico, as facadas no lombo luso-galego e o que mais vier...) é consequência daquele assado de andaluz à padeiro com que começa o romance do Prada

"Ai o gajo chamusca andaluzes?" -terá perguntado o senhor Deus dos Exércitos a quem se conhece o facataz pelo "cante Jondo"- . -"Entonces que lo jodan bien jodido, cortem-lhe os untos, remexam-lhe bem remexidas as vísceras nobres e demais miudezas que é para o maganão tomar juízo e não se desbocar!".

Como se verifica pelo celeste naco de prosa coloquiado que se reproduz, o criador dos poetas e dos enfermos hospitalizados é raiano, fronteiriço d'entre Melgaço e Ribadavia, terras muito dadas à produção de contrabandistas e "guardiñas"...

Mas voltemos às nossas devoções:
Convém significar -se possível com severidade- ao acamado vate, agora recauchutado, que se lembre da promessa feita, urbi et orbe, de produzir um romance sobre o avô negreiro para já não falar numa antecipadamente festejada colheita de poemas fesceninos que haveria de conhecer a glória da impressão, o rubor de escassas donzelas e o escândalo público, por estes meses mais próximos.

Dizem-me que está sentado e não prostado no leito de dor -boa posição para escrever, ou ditar (caso não queira utilizar o dedinho dactilográfico...), a versalhada licenciosa. Para isso lhe enviei, não faz ainda três meses, farta dose de cantáridas literárias sob o inocente título de "Romans Libertins"...


E agora, que a página se finda e a mão me doi, leiam-me bem cônjuge, filhos e demais clientela do Jazente (boa, esta...) aturem-no como puderem que o homem -se as informações são boas- deve estar com uma dose de mimo capaz de afogar um hipopótamo!

E Saúde (muita)

Vosso amigo Marcelo*

* Fornecedor de vinhos licorosos ao Assis e de aguardente reserva ao pide Fausto



PS
Assis, Velhão

Quem está aneurismático, pelo menos da corneta, sou eu que me esqueci desta página, toda em branco, digo em creme ou lá que raio de cor é esta! Põe-te bom, mano e depressa que o ano se afigura de boa pinta para o tinto e eu tenho em fumeiro um porradão enorme de alheiras (das verdadeiras, oh Assis Chateaubriand como o bife, das veras alheiras d' antanho com sua perdiz, sua galinha, seu coelho, seu porco -claro que sempre levaram porco e o resto...-) para já não falar em salpicões e outros mimos porcinos. O bicho que estas e outras especialidades vai dar era conhecido de uma das minhas enteadas. Foram elas quem sabiamente ajudaram a fazer de um cerdo de 15 arrobas um rosário infindável de acepipes.

Estás na lista das ofertas mais os teus editores -aproveita a ocasião para, se precisares, reforçar a dentição se ela te faltar.

Mais abraços do

Marcelo


Lisboa, 15.3.94

Doutor Subtil,

Conheço mal este papel que a minha filha Ana, a copista do Benito Prada, me confeccionou há anos; e tão-pouco o manuscrito sai a contento por influência dos vapores anestésicos, que deixam traço até no modo de a gente se pôr a mijar, quanto mais a escrever aos amigos. Razões por que peço alguma absolvição. E sigo.
Tem o Doutor Subtil toda a pertinência em falar da vingança divina: desde o princípio que eu mesmo lancei essa hipótese, certo de que o mais modesto destempero feito aos deuses é para pagar dobrado no mínimo. Não me alongo sobre tal item, mas à evidência que fui escoicinhado; resta saber se por Apolo , se por algum comparsa menor.
A marca do coice, vista aos raios X, aconselhou imediata correcção do alveitar. O qual no próprio dia e hora retalhou neste corpinho com toda a sanha, deixando-me um lanho do esterno ao coiso, que é maravilha de ver, e só não ando por aí a mostrar às pessoas porque não quero cair na crónica dos namorados tarados. Quem inventou o Latim Vulgar fottere sabia o que fazia!
Doutor, vossos cuidados são amavios, vossos conselhos ordens, vossas ofertas –em livros e derivados – reparos generosos à minha pouca educação. Tudo vo-lo agradeço, mais a promessa de uma extensão ao fumeiro que não sei como hei-de honrar, pois (ainda os deuses!) devo safar-me algo restringido no capítulo dentário. Deixemos ao futuro.
Aproveito para desejar-vos, a vós e a quem vos aqueceu no último inverno, alegria e força natural. Se olhardes bem, já os passarinhos correm de árvore em árvore fornicando velozes na posição romana: ontem, num breve passeio com minha senhora, foi o que mais vimos em Campo de Ourique. É a Primavera, caro Marcelo! Tenhamos fé.
O abraço certo deste que se identifica
Fernando Assis Pacheco, versejador, copista & fraca figura.

Nota: as referências que se fazem, andaluz chamuscado, Prada etc..., têm como alvo o romance de FAP, "Trabalhos e paixões de Benito Prada". A ler com urgência, leitoras atrevidas!

Au Bonheur des Dames 51

Um voto de má vontade mas um voto

Ando nisto há muitos anos para desperdiçar a ida às urnas domingo.
Ando nisto deste que “andar nisto” significava ficar apontado pelo dedo vindicativo das polícias como “desafecto ao regime”.
Ando nisto com bem menor entusiasmo do que há quarenta ou mesmo trinta anos.
Dói-me a cobardia do parlamento, dói-me a cobardia dos partidos, dói-me a cobardia dos cidadãos, mas, mesmo assim, ando nisto.
Horrorizou-me a tacanhez do debate público, as caixas de Pandora que se abriram, a acusação gratuita e malévola que foi lançada (e quase não respondida) pela direita: que a esquerda e os partidários do sim eram pura e simplesmente assassinos.
Dói-me particularmente ver que uma direita acéfala e desmemoriada não perceba que tal acusação se pode virar contra ela: ou não é verdade que com todo o seu arsenal de leis, de polícias de juízes e de prisões, bom ano mau ano, aconteceram quarenta mil abortos clandestinos neste país?
Dói-me ver uma esquerda quase envergonhada fugir ao debate como o diabo na cruz, incapaz de responder à saloíce dos cartazes do “arrepender-se toda a vida”, do pagar impostos para as malvadas abortarem etc...
Ando nisto há muito tempo para, nem que seja por preguiça legítima, deixar de ter a maçada de ir meter um voto desencantado na urna.
Ando nisto há muito tempo para agora, por raiva a um partido socialista mais amarelo do que um carro eléctrico, incapaz e frouxo, deixar de ir votar um sim tristonho e murcho.
Ando nisto há muito tempo para, com o meu silêncio, a minha preguiça, o meu desprezo por toda essa deputadoria que gasta fundilhos e saliva em S. Bento (e se leva muito a sério, todos iguais nos seus fatinhos cinzentos de mau corte, nas suas impossíveis gravatas que nunca acertam com as camisas e muito menos com as peúgas, Jesus que gosto tão pindérico, tão bairro económico do antigo regime... que gente! ) achar que isto não é comigo. É! apesar de tudo é comigo, também.
Ando nisto há tanto tempo que me não posso esquecer que são os calados desta discussão, os excluídos deste debate, os únicos interessados de facto mesmo que, como boa parte dos marchantes histéricos pela vida videirinha, não saibam exactamente o que está em jogo. Ou melhor talvez saibam que talvez não seja necessário ir à “desmanchadeira” ou meter um par de agulhas de tricot vagina acima para evitar mais uma boca, mais uma desgraça mais um sinal inominável de violência.
Ando nisto há demasiado tempo para deixar que as coisas se resolvam sem o meu miserável voto. É só um voto, quase um zero à esquerda mas é também um grito, um uivo, uma vaga ideia de que ainda estou vivo.

Não sei se as minhas companheiras de blog mo permitem mas gostaria de lhes dedicar este texto. As mulheres dizia um certo Mao Zedong, de fraca memória, são a metade do céu. E nisso acreditei sempre, desde que ando nisto...


Um voto que se quer vinculativo

Finalmente, terminou a campanha para o referendo de domingo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Já não sobrava paciência para tanto militantismo e radicalismo, numa matéria que, a meu ver, merecia mais recato, mais ponderação, mais discrição.

aqui expressei as minhas razões para votar Sim no referendo do próximo domingo e por isso não vou voltar a esse arrazoado. Julgo, contudo, que seria bom que se registasse uma forte participação dos portugueses neste acto referendário, de modo a podermos validar com força vinculativa a opção maioritária, qualquer que ela seja.

Se os portugueses quiserem efectivamente mudar a Lei vigente sobre a interrupção voluntária da gravidez devem dar um sinal claro da sua vontade aos nossos responsáveis políticos e parlamentares.

06 fevereiro 2007

Diário Político 41

O pior debate dos últimos anos

Começo a estar farto de ler os jornais. E isto torna-se mais grave porque não oiço rádio há anos e vejo a televisão nacional em dose mais que homeopática. Digamos que já não me lembro de olhar para a SIC e para a TVI, que só muito longinquamente é que me recordo que há o canal 1 e que não passarão de duas as meias horas que dedico semanalmente à 2.
Já sei que isto é uma falta de patriotismo estrondosa, que eu devia ser azorragado três vezes ao dia enquanto recitava padres nossos e salvé rainhas na proporção de 3 para 1. Nasci assim: anti-patriota, feio, porco e mau. Porco não, que tomo banho todos os dias, lavo a dentuça depois de cada refeição e pratico as restantes abluções obrigatórias ou facultativas sempre que necessário. Mas mau e feio não tenho dúvidas. À uma porque no meu tempo os homens queriam-se feios e com pelos no peito. A minha pilosidade é escassa mas enfim, aceita-se pelo que tive de redobrar em fealdade para poder estar bem na pele do macho lusitano, edição da 2ª guerra mundial, mais exactamente último ano do avanço alemão. Depois porque tenho este vício malsão de não tomar por certo tudo o que me vendem sobretudo se embrulhado em papel de lustro verde e vermelho. Nada tenho contra as cores da bandeira republicana mas, sem cair em excessos legitimistas, não a acho melhor do que as anteriores fossem elas quais fossem.
Portanto, e voltando à vaca fria, pouco tenho visto, lido e respigado, sobre o instante problema do aborto. Francamente aquilo para mim nem é discussão que mereça mais de dois bocejos. A questão com que a população se irá defrontar brevemente é algo que desde há muito está nos costumes europeus. E mais que está nos costumes das classes dominantes, nacionais, indígenas.
Direi mesmo que nesta discussão há dois pontos que qualificaria de vergonhosos se não fossem pura e simplesmente escandalosos.
O primeiro tem a ver com a cobardia dos partidos políticos maioritários que, esquecidos dos lugares que ocupam no Parlamento, transferiram a discussão para a praça pública, sujeitando-a a toda a espécie de truques populistas como não podia deixar de ser. O parlamento deu mais uma vez, graças ao PS e ao PSD, mostras de ser incapaz de discutir qualquer coisa que não seja o preço dos genéricos ou a compra de duas fragatas em segunda mão. Esta discussão incumbia aos pais da pátria (Deus nos livre!) a essa tropa fandanga que elegemos à molhada e de quem as mais das vezes não sabemos sequer o nome. Os ilustres par(a)lamentares baldaram-se à discussão com medo do que as “bases” lhes poderiam dizer. E vai daí, toma lá referendo. O referendo é uma instituição sem qualquer tradição que se veja no nosso sistema político se é que de sistema se pode falar. Serve para lavar as mãos e evitar berbicachos.
Uma vez um mal intencionado amigo, o José Luís Nunes, apanhou-me numa almoçarada por ele paga no “Tavares” e disparou-me: E você não gostava de ser deputado? Ia-me dando uma coisa má: então o safado convida-me para comer bem e caro e no fim está-me a cravar para deputado? Fiz das tripas coração e propuz-me pagar a minha parte da refeição desde que o convite fatal não viesse: Ó Zé Luís, por quem é? Eu? A Deputar? Antes um ataque de carraças!
O Zé, aviou mais umas sardinhas de escabeche (ainda estávamos nos entrantes) e concordou: “Não. V não. Era maldade a mais!
Mas sempre me foi dizendo que aquilo de deputar, era tiro e queda. O Parlamento era manso e não tinha uma especial obrigação patriótica para legislar a sério. Isso era com o governo. Ou com o referendo, poderia ter dito se se tivesse lembrado.
Portanto esta finta parlamentar que endossa para as massas, em nome de uma inominável democracia, certas escolhas é truque de segunda que deve ser denunciado.
A segunda questão é ainda mais canalha: a despenalização anda a ser discutida por uma gentinha que se está nas tintas. São as classes altas, “cultas”(?) e educadas quem discute algo que finalmente ocorre entre a ralé, os pobres, os ignorantes, os que desconhecem que em Badajoz há a clínica dos Arcos e na Avª da Boavista do Porto uma outra que também faz anjinhos aos milhares. O Dr Rebelo de Sousa pode dizer tudo o que lhe vier à cabeça mas se olhar para o lado, para as meninas e madames do seu meio, logo encontrará farta dose de idas discretas a essas clínicas, quando tudo o resto falhou desde a camisinha, à pílula do dia seguinte ou o dispositivo intra-uterino.
Nestas classes ( e sei do que falo porque são as minhas e dos meus) o aborto é apenas um incómodo que se paga com umas dezenas de contos, cá ou lá consoante se quer decoro e privacidade ou apenas mais uma operaçãozita.
Um cavalheiro chamado Karl dizia há cento e tal anos que a Europa era percorrida por um fantasma que entre outras maldades advogava a luta de classes, ou pior: a existência de classes. E isso significava interesses contraditórios. Como os de hoje: os ricos cagam postas de pescada mas são as pobres que vão à abortadeira. Os ricos filosofam e as pobres abortam num vão de escada. As ricas viajam para as clínicas e as pobres respondem em tribunal.
Eu não queria, juro, sequer deter-me cinco minutos nisto. Mas o “arruído” dos que chegam aos jornais, à rádio e à televisão, dos mesmos de sempre, trate-se de aborto, de corrupção ou de medalhas para pagar favores, é tal que me surpreendo a vir a terreiro pedindo em nome dos que nem sequer tem acesso a um blogue, um pouco de silêncio. Pela minha parte já disse tudo o que tinha a dizer. Boa tarde, senhoras e senhores.

Au Bonheur des Dames 50

A honra, a amizade, exemplos de vida

O sénior Heinzelmann chegou a Coimbra para frequentar a Faculdade de Medicina nos meados dos anos trinta, provavelmente em 36/37 ano em que, segundo ele, não houve caloiros por via da guerra de Espanha. Esta de não haver caloiros no nosso ano de caloiro é "calista". Nunca ninguém foi caloiro em Coimbra por razões variadas, fantasiosas e fortíssimas. O Oliveirinha, meu colega de curso trinta anos depois, afirmava convictamente que, no nosso ano, não houve caloiros porque tinha sido o ano da grande revelação. Descansem as leitores que não é do 3º segredo de Fátima que lhes falo mas tão só do aparecimento em filme inominável, do seio atrevido da Brigitte Bardot, um esplendor, Jesus, Maria, José! Que pedaço de mau caminho era a BB nesse ano soturno em que aportámos à Coimbra de lavados ares! E logo nós, caloiros (caloiros não, primeiranistas!...) bisonhos a contas com o frio cortante dos invernos conimbricenses, as trupes, a lonjura de casa (nanja para mim que, vindo de um campo concentração colegial, aquilo parecia o paraíso em mais feio mas mais livre) e os apertos financeiros que eram moléstia juvenil mais forte que o acne.
Não sei se as leitorinhas gentis e perversas (ai o que eu gosto dessa perversidade, agora que caminho para a idade canónica!) passaram por estes apuros monetários quando andaram pelas universidades. Naquele tempo podia haver muito rock’n’roll, muito Domenico Modugno (“nell bli dipinto di blu”), muita balada coimbrã, mas o carcanhol (o taco, o pilim, o cacau, enfim o que lhe queiram chamar) era escasso. Mais escasso que a passagem do cometa de Haley e tão etéreo como ele. As famílias davam pouco e de má vontade, e a rapaziada suava forte e feio para chegar ao fim do mês (ao fim do mês? Ao fim da quinzena e já era bom).
Bem, depois de me ter perdido pelos ínvios caminhos da agonia financeira, eis-me de volta ao Heinzelmann sénior recém-chegado a Coimbra nos idos de 36/37.
Filho e neto de gente do vinho do Porto, conservador q.b., amante do desporto e da cantilena coimbrã, Heinzelmann sénior lá cumpriu o cursus honorum coimbrão com algum aprumo. Namoros, os possíveis, muito andebol, muito fado à noite, às meninas e aos gatos, uma breve passagem pela república “Penúria Constante” e um largo leque de amigos que incluíam alguns porto-riquenhos escapados da Espanha em plena guerra civil. E muita liberdade, que ele também passara pelo colégio Almeida Garrett, ali à praça Coronel Pacheco. Os tempos eram agitados, uma geração de jovens rebeldes assentava arraiais no neo-realismo, nos amanhãs que cantam, na aliança intelectuais-proletários e na oposição a Salazar. Heinzelmann sénior passou por tudo isso incólume. Vinha de meios conservadores, gastava a sua energia no desporto, nas ceatas com amigos e no gargantear faduncho coimbrão pelas claras noites da dos lavados ares.
Formou-se com uma nota suficientemente decente para poder ser convidado para assistente de um conhecido professor da Faculdade de Medicina e um dos pilares mais activos da nova ordem salazarista. Um convite destes, para quem acaba de se formar, quer casar e ser independente, era o paraíso. O convite porém vinha com uma condição sine qua non.
O impetrante havia de cessar relações, de resto não especialmente calorosas, com um companheiro de casa, tido por oposicrático, reviralhista e comunista (GVB dão-se só as iniciais do candidato a preso). Heinzelmann sénior (um conservadorão na expressão bem humorada de Joaquim Namorado que foi quem me contou esta historieta pela primeira vez) espantou-se com o pedido. GBV não passava de um colega ligeiramente mais novo, vivendo na mesma casa, com quem de vez em quando jogava uma bilharada, comia uma sardinhada na época dela, ou escorripichava um copinho de amêndoa amarga depois de alguma serenata dificultosa. A vulgata coimbrã: companheiros de casa, vagos amigos, nada mais do que isso. Cortar relações com um fulano assim parecia por um lado extraordinário por outro ridículo. Heinzelmann sénior desejoso de preencher o lugar de assistente do “grande professor” mas também de saber a razão de tanta sanha, pediu explicações. Que lhe foram dadas. O GVB é comunista!
Heinzelmann sénior ficou varado. À uma porque nunca percebera essa evidência. Depois porque era a primeira vez que se sabia colega de uma tal aventesma vermelhuça e comedora de criancinhas cruas. Finalmente porque, para ele desportista e cantor, coimbrinha dos quatro costados (Viva a Académica, efe-erre-á etc..) aquilo parecia-lhe contrário aos costumes académicos e à ruidosa e alegre solidariedade da Academia.
Foi para casa matutar. A prebenda assistencial daria para aguentar os primeiros tempos de casado, algum filho, estabelecer nome, criar freguesia, fazer a especialidade. Cortar relações com GVB, as poucas relações episódicas e meramente circunstanciais, poderia não ser coisa grave. Terá perdido o jantar (e logo ele pessoa de forte apetite!) e a noite, varando-a a pensar na vida, no mundo e no futuro.
Conhecendo, como conheci, Heinzelmann sénior e a sua pouca inclinação para a metafísica, avalio bem o que terá sido essa noite de Walpurgis.
De todo o modo, a verdade é que pela manhã, barba feita e vestido com o melhor fatinho, Heinzelmann sénior apresentou-se ao ilustre, grande e magnânimo professor, que o recebeu com a bonomia habitual.
Foi curta a entrevista. Heinzelmann comunicou pesaroso que não podia aceitar o convite dada a condição infamante com que vinha envolvido. O Grande Mestre bem lhe terá dito (Joaquim Namorado, sicut) “mas ó homem de deus V. nem sequer é grande amigo dele!”.
É verdade, respondeu Heizelmann sénior, mas sou meu amigo e daquilo que diariamente vejo ao espelho e isso me basta para não me atrever a ver-me de outra maneira”.
E assim se cumpriram os fados: Heinzelmann desterrou-se para uma pequena cidade costeira e, a pulso, começou a sua vida de João Semana. GBV curiosamente acabou por ir para a mesma cidade e com mais um par de médicos lá se foram encontrando aqui e ali até que a morte os juntou a todos sob a areia volátil que recobre a memória do mar e dos filhos.
Que trazem esta pequeníssima historieta de Heinzelmann como brasão familiar agora passada a croniqueta.
Vai esta em memória de RS, FT, GVB e MHCR médicos e amigos. E para os filhos deles. E para os filhos dos filhos...


Nota: GBV só soube destes acontecidos vinte e tal anos depois. Entretanto, tinha, como se deve, sido preso um par de vezes. Quis pôr à filha o nome de Natália mas não lho permitiram por ser muito russo. A rapariga acabou por ficar Olga!

05 fevereiro 2007

Sempre sempre por amor à causa


«A procuradora [Maria José Morgado], frisou, “odeia” andar de carros: “Só ando neles por amor ao Ministério Público e à investigação criminal.»

In: mais uma entrevista, aqui

04 fevereiro 2007

Marcelo Rebelo de Sousa - assim não!



Para ilustrar as palavras de O Meu Olhar, em post abaixo, nada melhor que Marcelo em "discurso directo", via Gato Fedorento: um must!