Não, não é o culto da personalidade.
Pelo menos ainda não é...
Leitorinhas gentis
Amanhã é dia de castanhas e jeropiga. Ou de vinho novo, como queiram. Eu não sei se essas velhas usanças (não vou ao ponto de falar em tradições) ainda estão vivas entre vocês, imagens delidas para lá deste ecrã que me olha amavelmente. Antigamente o dia de S. Martinho festejava-se forte e feio: castanhas, a dita cuja jeropiga, vinho novo na falta dela, e depois qualquer coisa mais para entreter. Algum paio, um chouriço assado, umas lascas de presunto, alguma febra de porco, o que houvesse. E S Martinho, o da capa rasgada, era honrado numa festa pagã, como competia a um santo de lenda. Para os mais sérios, honrava-se S Martinho “como Deus manda”. Traduzindo: dando-lhe ao dente e matando a sede ancestral com um copo de três. Se calhar vocês nem sabem o que é um copo de três. Eu também não, confesso. Calculo que seja um copo decente e não uma coisinha pífia dessas de enganar a sede.
Ah o S Martinho... Se eu vos disser, para alegrar o meu querido compincha Alexandre, hoje morador em Liége, terra boa e com dois rios, se é que me lembro bem, que no velho CITAC sob a égide do Victor Garcia montámos um “Auto de S Martinho” que fez chorar uma plateia francesa e snob pejada de artistagem teatral da mais celebrada que França tinha pelos idos de 68, vocês franzem o nariz e não acreditam. Acreditem, ó velidas soo aquestas avelaneiras frolidas, acreditem que é verdade, verdadinha. Aquilo foi um ver se te avias: palmas e mais palmas e nós esparvoados, então os francius gostavam mesmo do que nós fazíamos? Parece que sim. Ou então era milagre de S Martinho.
Há pouco a CG e eu começámos as celebrações sãomartinianas. Toma lá castanhas e um tinto bastante decente, à guisa de jantar. E lembrámos com ternura as aniversariantes de Novembro, a saber, Isabel Pinto, Teresa e Luísa Feijó, todas a fazer anos entre 4 e 11. Coitadas! Fazem anos na parte menos interessante de Novembro!... Bom Novembro só o do signo Sagitário, signo do que se assina, claro, se calhar queriam que dissesse mal do meu signo, era o que faltava, eu sou pouco dessas coisas mas que diabo, já que sou do Sagitário o melhor é dizer bem dele mesmo não acreditando. De todo o modo, parabéns a essas três velhíssimas amigas, flor e sal das amigas.
Mas eu não vinha falar disto, como a fotografia mostra. Vinha falar de livros!!! Como o título genérico da série seriamente demonstra. E vamos a isso que senão não acabo a encomenda. Hoje isto é um bocado melancólico. A culpa é do “Le Monde”. Ou melhor do suplemento semanal de livros. Então vejam:
Ninguém, enfim, quase ninguém sabe quem foi René Maran, um nome alto e sonante da negritude. Um antilhano que se atreveu a escrever um romance interessantíssimo “Batouala, veritable roman négre”, que sacou um goncourt no tempo em que isso não andava aos caídos. Bem se lixou o pobre do Maran que ao seu livro responderam com um coro de insultos. Maran punha causa a colonização francesa. Naquele tempo era preciso coragem. E ele teve-a. E era preciso desapego ao dinheiro. E ele perdeu o emprego. Parece que agora há quem comece a lembrar-se dele. Lembrem-se também vocês e leiam-no. Um escritor só serve para ser lido.
Sempre na onda do “monde” outra novidade: reedita-se num único volume a saga dos dois detectives negros criados por Chester Himes. Os detectives apelidados o Coveiro e o Caixão, enchem oito belíssimos livros policiais ambientados no Harlem post-jazz. Um must de inteligência, ferocidade, humor (negro, claro) e boa escrita. Os portugas inteligentes leram pelo menos “Assassinos a frio” (Puma editora, 1992?) e percebem do que falo: grande romance policial a ombrear com os melhores. A Gallimard reedita a saga num único volume na colecção “quarto” (25 €). Depois não digam que não foram avisados.
A terceira notícia, sacada do mesmo monde, enche-me de nostalgia. Trata-se de um artigo chamdo “Sartre et Benny” ou algo que o valha. O Sartre é o Sartre claro, quem é que havia de ser. E o Benny?, pergunta a leitorinha perigosa ali do fundo. Pois o Benny (Levi) é o Pierre Victor, um dos manda-chuvas da “Gauche Proletarienne” e episódico director do jornal revolucionário (enfim, era o que se dizia e o que a polícia e a censura acreditavam) “La Cause du Peuple” (eu acho que este título repete um outro do século XIX, um jornal e um livro ambos sob a égide de George Sand, mas deixo isso para mais tarde). Sartre foi convidado por Victor para director do jornal, vendeu-o nas ruas enquanto De Gaulle altivo mas inteligente proibia que o molestassem dizendo, ah as grandes frases...!, “não se manda Voltaire para a cadeia”. Por uma vez, Sartre teve um oponente à altura, bravo monsieur le general!
Victor entrevistou longamente Sartre e daí nasceram um ou mais livros bem interessantes. Conheci ambos em 1975, nesta cidade do Porto e durante dois inteiros dias guiei-os pelo pequeno universo revolucionário e sindical, pelas fábricas ocupadas, pelos campos minhotos, o Sartre bebia cerveja como um bávaro. O Victor era mais desconfiado e mais água mineral. Também terminou a comentar a cabala, em Jerusalém. Foram dois dias exaltantes, muita conversa, muito parlapié e um almoço memorável com o Eduardo Lourenço num tasquinho da rua do Bonjardim. Um gajo tem sorte, desculpem, muita sorte. Duma penada três cavalheiros que, nessa época louca, louquíssima, eu apreciava.
E isto vem a propósito do último livro: “Memorias em voo rasante” de Jacinto Veloso. Do general Jacinto Veloso! Ora toma! Na época da fotografia aí de cima o Veloso era alferes aviador e penava em Nampula. Anos de estúrdia lisboeta onde vagamente estudara medicina, creio, as mais das vezes num bar mal afamado, onde até as “meninas” tinham estatuto de antiguidades protegidas pelo IPPAAR da época, com outro amigalhaço, o “Perna” (nome ou alcunha?) levando os ossos da anatomia para uma mesinha do bar ao lado da orquestra dos ceguinhos e tentando em vão adivinhar os nomes dos buraquinhos dos ossos e a serventia dos mesmos, com um nulo resultado a favor das ciências médico-cirúrgicas, dera como resultado a tropa. Em 1962, eis o Veloso amigo no meio de um galhofeiro bando de estudantes universitários, todos sobreviventes da greve de 62, diga-se já para evitar mal-entendidos, num “garden-party” (toma lá!!!) na piscina de Nampula. O escriba está a meio como convém a tamanha personalidade e o Veloso à esquerda dele e já careca. Meses depois, metia-se num avião e “abria” em direcção à Tanzânia. E daí ao Estado Maior da Frelimo onde ainda estará. Onde é que andará esta malta? Bem, para a frente, se não isto começa na choradeira e não vale a pena. Naquele ano, tínhamos todos cerca de vinte anos, a greve fora cumprida galhardamente, mais prisão menos prisão e ali estávamos em Nampula, em Setembro, a receber a rapaziada do Teatro Universitário do Porto em digressão pelas áfricas. Esta fotografia foi tirada cedo, aí pelas sete, sete e meia da tarde (nos trópicos já é noite, claro) mas lá mais para o fim da noite o nosso aprumo era uma recordação nevoenta. Graças ao meu pai e aos outros antigos estudantes de Coimbra e do Porto, o champanhe correu a rodos. Pommery se bem me lembro e a coisa foi muito séria. Seriíssima!
Agora o Veloso conta a sua história, de ministro e tudo o mais num livro que não vou perder. Que querem, a juventude é uma doença que passa com a idade mas deixa cicatriz. Vou ler o livro, vou rir, chorar, irritar-me, mas vou lê-lo. E pensar, provavelmente, como no filme: “tão amigos que nós éramos...”
Esta, como se vê, foi mais uma pedrinha na construção do culto da personalidade de mcr. Ou talvez não: apenas um feixe de recordações de alguém que foi abensonhado* pela vida e pelos encontros. Fez por isso mas também teve boas surpresas. E permitam que mande um abraço aos amigos, Morgado, Carlos Vieira, Armando Ferreira, “o amigo da onça”, Zita, Jonet, Veloso, Teresa, Correia Mendes, Teresa Ferreira, João Oliveira e Lança. E desculpas ao primeiro da ponta direita: como é que te chamas, pá? Na fotografia falta Octávio Correia Ribeiro, onde é que o diabo deste meu irmão se terá metido? Será o fotógrafo?