As saudades do Império e os terrores da adolescência europeia
ou
A unidade vale bem todos os sacrifícios incluindo o das liberdades formais
ou ainda
Ai Jesus que vem aí a europa!
Uma das mais deletérias e duráveis ideias que boa parte dos portugueses tem de Portugal é a de que este jardim à beira mar plantado
não é exactamente europeu: a Europa seria algo que está para lá dos Pirenéus e da qual estamos separados pela Espanha donde não vem bom vento nem bom casamento. D. Afonso Henriques e o torneio de Arcos de Valdevez, Aljubarrota, os Filipes, as incursões espanholas dos séculos XVII e XIX, o Marquês do Pombal retorquindo ao embaixador de Espanha "
Mesmo depois de morto são precisos quatro homens para tirarem um homem de casa", Olivença, arreigaram entre a lusa e fera gente um natural sentimento de superioridade que os factos sempre desmentiram e o melhor da inteligêntsia de ambos os países nunca aceitou. Dito de outro modo: os portugueses, porventura até para resistirem ao centripetismo ibérico e iberista, insularizaram-se desde muito cedo e, rejeitados pela terra safara, lançaram-se ao mar, fixaram-se teimosamente onde puderem, aculturando e aculturando-se com espantosa rapidez ao contrário do que sucedeu com a grande maioria dos restantes colonizadores que não quiseram, ou não necessitaram, de fazer o mesmo.
O império arrastou-se penosamente durante cerca de quatrocentos anos mais por culpa dos autóctones que por virtude dos conquistadores que raras vezes viram a corte, o governo e o país demasiado interessados, ou sequer atentos, às suas necessidades, pedidos ou propostas.
Afonso de Albuquerque, António Enes ou Norton de Matos para não citar outros (e seria uma multidão) deixaram a esse respeito testemunhos insuspeitos e abundantes. O império lá seguia atraindo escassos emigrantes, enviando os ouros e as especiarias, comprando panos e pagando funcionários. Teciam-se neles as malhas da
riqueza alheia, funcionando os colonos como
capatazes de interesses estrangeiros e como intermediários entre as grandes multinacionais avant la lettre e os nativos que uma política de administração local brutal mas inteligente arrancara aos laços tribais quer pela mestiçagem quer pela assimilação. Não será demasiada ousadia pretender que a duração das colónias se deve mais a estes factores (e ao que então se chamava, desdenhosamente, cafrealização dos brancos) do que à política colonial.
O império durava e é isso que interessa para demonstrar que depois do sobressalto patriótico do Ultimato se reacendeu o slogan "
Portugal não é pequeno", frase que andava acompanhada de um pitoresco mapa da Europa coberto pelo das colónias mostrando á lusitana grei que, se tivéssemos querido, teríamos, eventualmente, tratado espanhóis, franceses, alemães e outros periféricos como pretos e que só a nossa vocação marítima nos tinha impedido dessa tarefa perfeitamente ao nosso alcance. O império acabou como se sabe, da mesma maneira dessorada e patética que fora seu apanágio enquanto persistiu: veio a tropa fandanga, enterraram-se os mortos, esconderam-se os feridos, premiou-se a oficialagem, silenciando-se os Wiryamus por lá praticados, a inépcia demonstrada na mata e nas cidades, celebraram-se soleníssimos acordos que não valiam sequer a meia folha de papel almaço em que fora rabiscada a sua primeira versão.
Vieram também -e ninguém contava com eles, nem sabia, de resto, quantos eram...- os
retornados. Brancos tisnados pelo sol, mestiços, mulatos, pretos, indianos, homens, mulheres e crianças, aturdidos pelos tiros de canhão que as diferentes facções se brindavam de esquina para esquina, surpreendidos por ainda se encontrarem vivos, desesperadamente agarrados a uma sacola com uma muda de roupa e um punhado de notas subitamente sem valor.
A direita nem sequer se podendo organizar para os receber, e a esquerda, tratando-os como pestíferos, forçaram-nos, discreta e rapidamente a entranhar-se pelos novos sertões da pátria quase desconhecida, sem organização que, unindo-os, os tornasse perigosos:
em Portugal não houve pieds-noirs mas apenas sobreviventes determinados a passar despercebidos e tornar-se economicamente independentes. A eles se deve o renascimento de muitos terrunho de província, sangrado pela emigração interior ou para as europas; a eles se deve o relançamento de muitas pequenas indústrias, o reforço da capacidade turística, algumas novas modas culinárias como essa inenarrável lampreia de caril ou a das codornizes ao piripiri; a eles se deve em parte a
saudade do império, compartilhada por muito boa gente que nunca, sequer, foi de longada até às Berlengas.
É dessa que tratamos, da terceiro-mundista que vê em toda a pele escura um sinal de inequívoca bondade natural, que abandonou a conferência de S. Vicente de Paula para se dedicar à causa dos explorados e oprimidos, que defende a nova ordem mundial da informação e compreende os excessos naturais de algumas revoluções em marcha. O chamado mundo ocidental é para esta curiosa espécie de apóstolos um depravado monte de riquezas pilhadas um pouco por todo o lado, um sócio leonino dos segundos e terceiro mundos, o reino secular da luciferina democracia parlamentar em oposição aqueloutro, futuro, em que as conquistas de uma dezena de revoluções não passam de liberdades formais. O Papa é um conservador autoritário enquanto Komeini é apenas um revolucionário excessivo que conduz o seu povo desde terras do Xá-Faraó até às colinas onde o leite e o mel correm de parceria com o
tchador, a
charia e a justiça dos
pasdarans. O dr. Soares é um aliado objectivo e subjectivo da direita revanchista enquanto o senhor Robert Mugabe do Zimbabue é o singular descobridor das virtudes objectivas, e adequadas às actuais circunstâncias históricas, do partido único. Para estas criaturinhas simples e piedosas o pé desmanchado da Luisinha Carneiro é realmente mais importante do que a fome na Etiópia. Chama-se a isto em linguagem de cassete
discutir primeiro Portugal e os problemas portugueses Há Walesas recalcitrantes no paraíso polaco? Trata-se apenas de uns catolicões trauliteiros e anti-aggiornamento!
A Amnistia Internacional publica listas gigantescas de perseguidos na Letónia? está infiltrada pela CIA e pelo FBI e propala atoardas inverificáveis que, no melhor, apenas se reduzem a amável admoestação a um punhado de nacionalistas exaltados, ainda impregnados do espírito dos antigos cavaleiros teutónicos! E etc... etc...
Compreender-se-á que a esta espécie de pessoas a entrada de Portugal na Europa,
fons omnia injustitia, desagrade. Não se resignam a ser parte de um todo muito maior, a ser dez entre trezentos milhões, a ser como os belgas ou os dinamarqueses para já não falar dos do Luxemburgo. O bom seria continuar a exportar os emigrantes, receber-lhes cá as divisas, mandar para lá o vinho, o concentrado de tomate e os têxteis e continuar o alegre carnaval político em que os
generais se mascaram de presidentes e os presidentes de oficiais às ordens dos generais; o melhor seria pagar os salários em atraso através dos cofres de estado e encher estes ao sabor da canção os ricos que paguem a crise; nada mais útil e produtivo para a nação do que ter empresas públicas falidas em vez de deixar reconstruir os monopólios.
O orçamento deve ter a forma de biberão e os cidadãos, na antecipação da tanga, devem usar fraldas sob o olhar atento, meigo e firme do Estado-nurse. Os artistas serão protegidos pelo expediente simples de só se passarem séries nacionais na televisão, a música portuguesa será obrigatória entre as nove da manhã e a meia noite, os teatros não precisarão de ter público para se manterem. Os buracos das ruas serão tapados com portuguesíssimas sardinheiras e todos, todos sem excepção terão direito a usar o dr. antes do nome e a aparcar o carro em zonas de estacionamento proibido.
A forma mais radical desta mansa loucura consiste em, reclamando-se da herança lusitana, acentuar a especificidade dos heróis do mar nobre povo em oposição à Europa e, especialmente, à CEE.
De facto consta que neste capítulo ninguém se conforma com as perdas de Arzila ou de Luanda. Vigora o mito dos povos irmãos (que, entretanto, arranjaram outros familiares bem menos fraternos, diga-se de passagem...), a ideia de um radioso futuro compartilhado que se resumiria ao regresso aos trópicos para se voltar a
acocorar à sombra da árvore das Patacas.
E de nada serve argumentar que, em menos de vinte anos, emigraram mais portugueses para o triângulo França, Luxemburgo, Alemanha do que em século e meio para África.
Dizer que em cinco anos entraram mais portugueses em Espanha do que em quatro gerações em Cabo Verde, S. Tomé, Guiné e Timor é despiciendo. "Para África e em força" (Salazar dixit) é a palavra de ordem. Perguntar como, para quê, porquê e com quem é considerado ofensa e não merece resposta.
A Europa é que não! Ou porque a CEE é apenas um aglomerado para mais trocas comerciais, ou porque é o fim da nossa identidade cultural ou finalmente porque a unificação europeia é, apenas e só, a tentativa desesperada e derradeira de salvar o capitalismo para construir um bloco (outro!!!) contra o estado do proletariado e os seus aliados.
Do outro lado também há quem se desgoste da Europa que aí vem.
Treme-se pela perda do bolo-rei e pela desnacionalização do cozido à portuguesa. Essas europas nórdicas, que aí vêm, decotam-se em demasia, têm a mania da igualdade dos sexos (e de oportunidades) descrêem do poder divino dos senhoritos e do poder temporal dos senhores abades.
Parece que fornicam a qualquer hora e por mero desfastio e não, como se deve, para cumprir a exigência bíblica "crescei e multiplicai-vos". Credo! Livres-pensadores! Pedreiros livres! Só lhes falta ser democratas!!!
Por enquanto, e para prevenir, vão-se aliando democraticamente e pondo o anel ppd no dedinho mimoso cds. Amanhã, se tudo lhes correr de feição, põem-nos a nós uma argola no nariz e mandam-nos para a engorda até ao dia, clemente e misericordioso, em que a choupa do magarefe nos acutilar o cachaço. É pró que estamos!
Dezembro 1981
Nota: celebra-se por estes dias o “dia da Europa”. O clima é, dizem-me, de desencanto: os lusitanos que deram um salto gigantesco no tempo e na modernidade graças aos dinheiros europeus (e mesmo assim mal aproveitados!) parece que andam também desanimados. As modas tem destas coisas: há que estar sempre com a última de Paris ou Londres. Por outro lado, entre o indigenato local corre, expande-se como mancha de azeite, uma perigosa ideia de rever o passado, de esquecer as responsabilidades, tratando de alijar borda fora quer o colonialismo cretino quer o anti-colonialismo pateta que foram moda até há pouco. Paciência! E uma outra bem mais perversa: os emigrantes que vêm cá fazer o que (desde Nicolau Clenardo) ninguém quer fazer são um mal, sejam eles pretos – os piores – brasileiros – tudo prostitutas! – romenos –ladrões – chineses –perigosos ou outros de difícil classificação. Há países e povos que conseguem ser pequeninos em tudo, chiça!
2. Uma leitora, Olá Cristina!, num e-mail amável, previne-me que não há diário político nº 13. Tem carradas de razão: tratava-se de dois textos sobre Clinton enquanto galã atrevido que estão prontos a ver se têm lugar aqui. É que são um pouco desbragados, se é que está a ver o que quero dizer...
Eu sei que no parco de leitores que me atura há um, o dr Cabral Mendes a quem alguns dos meus arreganhos sobressaltam. Todavia, educadamente, vai-me dando a réplica. Não se espantarão se lhe dedicar este texto que terá (suponho) mais de metade da idade dele!