Outra carta para uma amiga em parte incerta
Não se espante, querida amiga, do tom dorido desta carta que, agarrada a um laivo informe de esperança, envio para o éter, acreditando que, pelos misteriosos e ínvios caminhos da internet, a alcance.
Vai pois insegura porque isto do éter, da internet e de mais um par de coisas do mesmo teor, assenta em tantas improbabilidades quantas a da teoria da evolução do senhor Darwin.
E se, nos Estados Unidos, farol da civilização técnica, boa parte da população descrê absoluta e firmemente do homo sapiens, mais ainda do sapiens sapiens sem falar nessa abominação que foi, ou é, a tal Lucy (in the sky with diamonds?), Lucy essa, convém dizê-lo que não é mais que uma mão mal cheia de ossos de uma criatura baixinha e francamente simiesca, porque havemos de acreditar nestas coisas que agora o senhor Steve Jobs e o senhor Bill Gates nos querem vender como a última e definitiva maravilha da comunicação ?
Todavia, façamos um esforço e acreditemos que estas mal traçadas regras, que vou deitando a um ecrã azul do MacBook Pro (sim um Macintosh, dessa negregada apple que agora se enche à custa da musica alheia e do ipod), viajarão por céus nunca dantes navegados e, ventura indizível, a encontrarão, porventura em Calecut, jantando em casa do Samorim e discutindo bagatelas filosóficas do Kamasutra ou do Maharabharata (mas poderia igualmente tratar-se do Mahabhasya do grande Patanjali ou, até, audácia das audácias, do Manavadharmasastra esse grandioso texto jurídico em dez livros e 2685 estrofes, só na Índia prodigiosa é que se escreveria um livro de Direito em verso, mas enfim...). Seria sinal de que os portugueses de antanho estariam finalmente perdoados da manhosa descoberta do Gama, das bombardas de Diu, das inumeráveis mortes causadas por D Francisco de Almeida para vingar o filho Raul, mimoso adolescente, que o turco infiel, ou o indígena igualmente infiel, trucidou não recordo já em que circunstâncias.
Mas eu perco-me, como de costume, terei de o confessar, eu perco-me subitamente desviado pela epopeia de descoberta, enfim, da viagem que levou do torrão lusitano gente para as Índias, para as Ilhas das especiarias, para a Abissínia do Prestes João ou para o Tibete desse actual réprobo que se intitula Dalai Lama e que a reacção internacional coroou com o Nobel da Paz. Nem consigo entender como é que o deixaram pôr o pé, enfim a sandália, no território nacional. Bem avisado andou o Governo da Nação que o ignorou olimpicamente enquanto ele, sorrateiro destilava a habitual peçonha contra os actuais mandarins que governam o Celeste Império com quem Portugal mantém uma aliança tão antiga e profícua, uma aliança que em breve se traduzirá na inauguração de uma asseada chinatown que uma senhora doutora Nogueira Pinto, recentemente eleita vereadora de Lisboa (ai não foi eleita? Pois merecia! Mas elegem-na agora, nem que seja por postura municipal, que grosso favor fez ela à actual vereação fazendo cair a anterior, acho muito bem que lhe dêem o vice-reino da baixa pombalina já que provavelmente não lhe poderão conceder o grande colar da Ordem da Liberdade por espúrias razões ligadas ao devotado amor que a senhora nutre pelo falecido dr. Salazar, aquele que disse: em política o que parece é!).
Mas não querem lá ver que me perdi outra vez: ai do triste que navega na sua bateirinha pelo mar proceloso da internet à mercê de ventos alísios mas inconstantes, em demanda de Frau Kamikaze, a desaparecida em parte incerta, de que não há novas nem mandados há um largo tempo.
Que foi? Que não foi? A que se deve esta prolongada ausência deste palco que foi sempre seu, dos aplausos prolongados do respeitável público rendido às artes, às malasartes, duma Kamikaze cujo nome prometia e cuja acção cumpria sobradamente as promessas?
Terei eu, teremos nós todos, incursionistas, cometido, por pensamentos palavras ou obras, algum pecado capital entre os capitais, algum crime inqualificável, alguma afronta imperdoável, algum desleixo insólito e grave cujo castigo, o primeiro de uma longa lista, seja este desdém, tenaz e pungente, que sobre nós, sobre os nossos amigos, companheiros e compadres, sobre a inteira rede bloguista se abateu como um vento malsão, um maremoto daninho, um eclipse dessa inteira galáxia chamada K.?
Mas o que fizemos, ó mais ilustre das ex-juristas, ó provedora deste vosso aflito filho de Eva desterrado neste vale de lágrimas e que andava a tentar pedir-vos o favor de o ensinar a pôr um link, maldita palavra (maldita corvina diria, se arrotasse, o que não faço por educação antiga e respeito novo mas sincero por vós, ó maga, feiticeira, bruxa, endireita, se mais não puder ser, aí do bairro da Estrela ou do luminoso Allgarve onde volta e meia estadeais nesse centro cultural prestes a abrir) mas única, pelo menos não sei outra, aliás sei: links, ah palavra prenhe de esperança noutros tempos, links bin Ich, poderia dizer este ex-quase berliner que nunca, niemals, jemals, esqueci essa cidade marcada com uma cicatriz que era um muro, der Mauer, a prova provada que a memória antiga dos arames farpados, não espera senão uma oportunidade para reemergir das trevas onde a pensávamos para sempre remetida.
E lá me perdi de novo. Está a ver Kami, o que dá abandonar-nos aqui, nesta terra que, sem V., é terra de ninguém, como o romeiro do Frei Luís, também ele regressado de nenhures?
Dê-nos uma notícia, uma só, uma carta trazida em bico de rola, por um pelicano, pelo pássaro rok, esse mesmo, o desaparecido, pode até ser um bilhete postal, mas ilustrado por favor!, enfim qualquer coisa que nos acalme os humores, que nos arrefeça as saudades, que nos tranquilize os receios e que nos prove que se mantém viva e pronta a reentrar no seu avião e picar feroz e implacável sobre este nosso galeão das índias que pode estar cheio de pimenta e ouro e incenso e mirra mas que se perde seguramente nalgum malfadado sertão africano só povoado por cafres malignos à falta de timoneira.
Vosso, como sempre,
Mcr, grumete
na gravura: avião japonês da 2ª Guerra Mundial