Carta a “o meu olhar”,
excelente camarada de viagem
Li com toda a atenção que os seus textos comprovadamente merecem o post sobre a ASAE. E fiquei um pouco atrapalhado. De facto, se o país for assim tal e qual o retrata, no que diz respeito a restaurantes e similares, a ASAE até carece de força: se por todo o lado imperar a falta de higiene e de condições, como V. afirma, então forneça-se à ASAE ainda mais poder e mais meios. Todavia, para surpresa minha, dos autos levantados e conclusos, extrai-se uma fotografia menos grave, muito menos grave. Um restaurante fechado durante uns largos meses acabou por pagar uma coima ridícula, coisa para vinte e tal euros. Outro, que começara por ser apontado à execração pública, viu-se livre de qualquer pagamento o que o não impediu de perder uma boa maquia pelo tempo de fecho, pela desconfiança de eventuais fregueses. E por aí fora...
Não tenho dúvidas que aqui e ali, há restaurantes a laborarem em condições deficientes. Penso, contudo que não só isso não é a regra mas que, cada vez mais, é a excepção.
Há para avaliação um largo par de milhares de autos. Bom trabalho, dir-me-á. Bom, só se se verificar o bem fundado do levantamento dos autos. Mau, se isso significar prepotência, erro de julgamento, falta de bom senso.
A ASAE é uma polícia. Antes fosse um serviço menos policial e mais adequado. Todavia é o que temos e o melhor é mexer-lhe apenas o necessário. E esse necessário passa pela formação dos agentes e dos dirigentes e não por uma preparação militar como se aquela boa gente fosse combater as guerrilhas das Filipinas, ou as FARC da Colômbia.
Ora, do lido e do respigado, parece poder concluir-se que “por vezes” a mão sai demasiado pesada, como referiu perifrasticamente o seu director. Outras vezes, o excesso de cautelas faz com que os agentes saiam para missões surpresa sem saberem bem como lidar com os alvos da investigação, sem conhecer exactamente, ou sem conhecer de todo, as especificidades do meio que vão investigar.
Mas passemos agora a um segundo ponto: o da contrafação. É verdade, mais uma vez, que um cristão passa por uma dessas feiras cheias de gente a mercar e vê contrafações. Aliás distinguem-se bem pelo ar ordinário e de contrafacão, para já não falar dos preços inacreditáveis de baratos. Parece que mesmo assim o povo, e o não povo, compra.
A ASAE entra por ali, olha à volta e, onde descortina um cigano, pimba! Umas vezes acerta, outras não. Nem todos os ciganos são vendedores de contrafação. Mas são sempre os primeiros a ser inspeccionados. É bem feito! A ciganagem que volte para onde veio que de leitura da buena dicha estamos fartos. Porém, ocorre-me uma pergunta: de onde vêm as “lacostes” falsas, as sapatilhas “nike” falsas eos jeans levi’s falsos? Não foram certamente os feirantes quem os fabricou. Ponhamos que alguma(s) fábrica(s). Ora bem: nós vemos, ouvimos e lemos que na feira de Carcavelos, na feira da Golegã, na feira de Espinho, enfim nas feiras todas do torrãozinho de açúcar se confiscaram peças de roupas, discos compactos, jogos de computador, vídeos, enfim tudo, à ganância. Por falsos, refalsissimamente falsos. Força, direi eu (coisa que por acaso não digo, porque não caio na esparrela dessas ucharias a rastos de barato. Milagres, minha excelente amiga, já houve o das rosas mas isso foi chão que deu uvas. Nestes tempos de falta de fé, de incredulidade maldosa e redobrada o único milagre é o de haver casinos onde se pode fumar...
Íamos, penso, nas contrafações vendidas por aí (e não só em feiras...) por ciganos ( e não só, bem antes pelo contrário). Não acha curioso que nunca se oiça falar dos fabricantes das mesmas que, pelo menos, no caso dos têxteis e calçado, são (eu apostava dez contra um...) nacionais?
É que se apanhassem o fabricante, fechava-se em parte a torneira. Um fabricante dá trabalho a cem, duzentos feirantes. Um fabricante não produz dez, cem, mil unidades mas uns larguíssimos milhares. Cesteiro que faz um cesto...
Porventura estarei enganado mas parece-me que a ASAE teria menos trabalho e mais proveito em se dedicar à caça grossa em vez de andar por aí a dar tiros a tordos. Claro que a caça grossa é outro mundo. Ele há influências, dinheiro (como nos casinos...), empregos, poder (incluindo o político) e isso poderá eventualmente arrefecer o entusiasmo do caçador.
Não seria a primeira vez...
A terceira parte desta maçadoria é o estilo. O estilo far-west da ASAE. O aparato. O pôr-se a jeito para a fotografia. O alvoroço. A desmesura. E tudo o que isso implica em arrogância, em abuso, em incontinência verbal (aquela declaração do senhor Nunes, “alto funcionário da administração central” (será isso ou é apenas um cavalheiro nomeado por comissão de serviço, recrutado por aí fora, na privada, por exemplo?) que, no seu alto critério, fechava metade dos restaurantes da pátria doente e corrupta. Num país menos civilizado do que o amorável Portugal, Nunes estaria já de partida para outro destino. Por cá, está, estará e pronto. Porque o seu estilo se coaduna com o estilo dos seus mandantes: primeiro arreia-se e depois logo se vê.
Nunes, na comissão parlamentar, defendeu a actuação dos seus (cow-)boys com o respeito pelas leis e regulamentos. Nunes e os seus cumprem ordens. Claro que cumprem. A PIDE idem, aspas, aspas, como se pode ler no belo livro de Irene Pimentel. Mais: raras vezes se excedia. E quando isso ocorria, os agentes eram punidos. Por excesso. O problema é que no cumprir as tais ordens e regulamentos já havia violência que chegava e sobrava.
As “ordens” que se cumprem, o “dever” que é cumprido tem saias compridas para debaixo das quais tudo se varre. E varre-se muito, demasiadamente.
E é isso que alguns portugueses, uma clara minoria, uma menosprezável minoria, acham. E que seria possível ter uma ASAE eficiente mas discreta. Capaz mas sensata. Determinada mas prudente.
Um país que viveu quase todo o século XX entre autoritarismos vários desde João Franco a Afonso Costa, desde Pimenta de Castro a Sidónio, até cair definitivamente debaixo da mão pesada do dr Salazar, pode estar habituado a viver sempre ao som do chicote. Pode até aceitar isso. Todavia a democracia é também, exactamente, a recusa disso, do chicote e do estado de espírito que ele inspira. Ou seja é preciso, uma vez por todas, alguma sensatez, alguma polidez, algum sentido critico quanto ao dever. Ou como os romanos, ou alguém por eles, diriam: est modus in rebus.
Um abraço
mcr